quinta-feira, 27 de março de 2025

MINHA ALEGRIA


minha alegria permanece eternidade soterrada 

e só sobe para a superfície 

através dos tubos alquímicos 

e não da causalidade natural. 

ela é filha bastarda do desvio e da desgraça, 

minha alegria: 

um diamante gerado pela combustão, 

como rescaldo final de incêndio.


Waly Salomão

segunda-feira, 24 de março de 2025

QUEM É DE ESQUERDA?

Num tempo em que a esquerda é demonizada e reduzida a clichês midiáticos, convém partir da vivência de alguém "ser de esquerda". Aqui, no coração do desejo, a ética (como força de viver) torna possível escapar do dualismo direita/esquerda que humilha o pensamento. A partir de G. Deleuze, ser de esquerda implicaria em 1-perceber o mundo começando pelo cosmos, depois a Terra, o continente, o país, a cidade, o bairro, a rua, a casa: um endereço postal; 2- conectar-se com as minorias e não com as maiorias; estas pressupõem um modelo a ser seguido, obedecido;  as outras não tem modelo, e sim processo; algo se move; 3- nunca dizer que se é de esquerda; fugir de uma identidade e entrar num devir-imperceptível.


A.M

La idea de placer es una idea completamente asquerosa -hay que ver los textos de Freud al nivel deseo-placer, donde nos dice que el deseo es ante todo una tensión desagradable. Hay uno o dos textos donde Freud dice que, despues de todo, hay tensiones agradables, pero no va muy lejos. A grosso modo, el deseo es vivido como una tensión completamente desagradable que, necesita... palabra horrible, horrorosa, para salir completamente, pues ese asunto es malo... es necesaria una descarga. Y esa descarga es el placer. La gente tendrá paz, y después, el deseo renace, y habría una nueva descarga. Los tipos de concepciones que, en términos eruditos, llamamos hedonistas, a saber la búsqueda del placer, y los tipos de concepciones místicas que maldicen el deseo, en virtud de que es, fundamentalmente, carencia, yo quisiera que ustedes sientan hasta donde, de todas maneras, ellos consideran el deseo como la única cosa que nos despierta, y que nos despierta de la manera más desagradable, es decir, sea poniéndonos en relación con una carencia fundamental que puede ser entonces apaciguada con una especie de actividad de descarga, y después tendríamos la paz, y después recomenzará... Cuando se introduce la noción de goce -vean como estoy intentando hacer un círculo, muy confuso, un círculo piadoso, un círculo religioso de la teoría del deseo-, vemos hasta que punto el psicoanálisis está impregnado de ella, hasta que punto la piedad psicoanalítica es inmensa. Ese círculo, uno de sus segmentos es el deseo-carencia, otro segmento es el placer-descarga, y, una vez más, eso está completamente ligado. Y me digo de golpe: ¿qué es lo que no va con Reich? Hay dos grandes errores en Reich: el primer error es el dualismo, entonces cambia de lado, es el dualismo entre dos economías, entre la economía política y la economía libidinal. Si se habla del dualismo entre dos economías, se podría siempre prometer hacer el empalme, el empalme nunca se hará. Y este error del dualismo repercute a otro nivel: el deseo está también pensado como falta y entonces el placer es pensado todavía como unidad de medida. Y Reich le ha dado a la palabra placer una palabra más fuerte y más violenta, lo llama orgasmo, y precisamente toda su concepción del orgasmo, que intentará volver contra Freud, consiste en plantear hasta el límite que el deseo como tal está ligado completamente a la carencia, que si no se llega a obtener la descarga que lo apacigua, va a producirse lo que Reich llama los estasis. El deseo está fundamentalmente relacionado con el orgasmo, y para que se relacione el deseo con el placer o con el orgasmo, es necesario que se lo relacione con la carencia. Es exactamente la misma cosa. Una de las proposiciones es la inversa de la otra.

(...)

G. Deleuze, aula em 26/03/1973, Vincennes

ELLEN ALTFEST


 

TEMPO, ARTE, PENSAMENTO

Um dos traços marcantes da filosofia de Gilles Deleuze é a sua constante intercessão com as mais diversas formas de produção artística. Por meio de cineastas, pintores e literatos, o filósofo francês buscou assinalar determinado modo de pensar, certo devir-artístico do pensamento, em que este último se constituiria ao longo de um movimento ou percurso do pensador/artista. Entretanto, este percurso ou movimento encontra-se, invariavelmente, relacionado a um tempo ou linhas de tempo constituídas por forças e signos que violentam o pensamento, sendo impossível ao sujeito, em um primeiro momento, tomar ciência destas diversas forças que o compõem. Deleuze nos mostra então, por meio de seus estudos, como a arte em sua relação privilegiada com o tempo, permite ao artista/pensador/sujeito reconstituir sua trajetória, isto é, atingir os diversos mundos e pontos-de-vista que o constituem, mostrando assim que a obra de arte, em última instância, revela um processo ou processos de subjetivação que, ao menos inicialmente, são imperceptíveis àqueles que os vivenciam.


Maurício Mangueira/ Eduardo Maurício in "Arte, subjetividade e tempo em Gilles Deleuze" do site "Artefilosofia", acessado em 24/03/2025

terça-feira, 18 de março de 2025

DESPERDÍCIO


prima dirce vê a vida

pela fresta


ela adora futebol

e vai à missa


seu pecado foi cheirar

lança-perfume


prima dirce borda borda

mas não pinta


Líria Porto

segunda-feira, 3 de março de 2025

O RESSENTIMENTO E SUAS MÁSCARAS

O homem do ressentimento traveste sua impotência em bondade, a baixeza temerosa em humildade, a submissão aos que odeia em obediência, a covardia em paciência, o não poder vingar-se em não querer vingar-se e até perdoar, sua própria miséria em aprendizagem para a beatitude, o desejo de represália em triunfo da justiça divina sobre os ímpios. O reino de Deus aparece como produto do ódio e da vingança dos fracos. Incapaz de enfrentar o que o cerca, o homem do ressentimento inventa, para seu consolo, o outro mundo. Assim também procede o "filisteu da cultura", que só pode afirmar-se através da negação do que considera seu oposto: a própria cultura. Ou então, o homem da ciência, que a si mesmo opõe um outro: o pesquisador, que pretende comportar-se de maneira impessoal, desinteressada e neutra diante do mundo, para chegar a abordá-lo com objetividade. E ainda o filósofo que, na elaboração de suas ideias, acredita poder desvinculá-las da própria vida, não se reconhecendo como advogado de seus preconceitos. 

(...)

("Para além de Bem e Mal", parágrafo 2)


F. Nietzsche

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

"DELIRA-SE O MUNDO"

Peguem uma coisa, uma simples experiência objetiva como a da música, a música que vocês escutam. Em quê se pode falar de um fascismo potencial na música, se se pode falar de um fascismo potencial? É que a música, me parece, é o processo em estado puro. É por aí que, de todas as artes, essa seria sem dúvida a arte mais adequada, a mais imediatamente adequada. Para apreender sob a pintura um processo da pintura, é preciso muito mais esforço. Quer dizer, apreender os fluxos da pintura é muito mais difícil que apreender imediatamente o fluxo sonoro da música. E, ainda aí, eu diria que, para mim, a música não é uma questão de estrutura, nem de forma, mas de processo. Penso, muito rapidamente, para fazer aproximações, que um dos músicos que mais pensa a música em termos de processo é John Cage. Bem, quero dizer, a música é processo. De certa maneira, ela é amor à vida, fundamentalmente.

Ela é mesmo criação de vida. Ora, será por acaso que, ao mesmo tempo, eu devo dizer o contraditório, que a música nos inspira, em certos momentos, e que não há música que não nos inspire, em certos momentos, um bastante bizarro, um estranho desejo, que é preciso chamar de abolição, um desejo de extinção, um desejo de extinção sonoro, uma morte tranquila? E que na experiência musical mais simples – e aí não há privilégios de uma sobre outra; eu penso que é verdade de toda música. Que é verdade da música pop, que é verdade da música clássica … Que são os dois ao mesmo tempo, e um pego pelo outro, uma criação vital sob forma de linha de fuga ou sob a forma de processo, e implantado lá dentro um risco constante de conversão do processo numa espécie de desejo de abolição, de desejo de morte. E que a música carrega tanto esse desejo de morte quanto deixa de trazer o processo. De modo que, nesse nível, trata-se realmente de uma parte muito incerta, que cada um joga sem saber. Nunca se está certo de que não é sua vez de quebrar, quem pode dizer? E, ainda uma vez, não se quebra sob muito forte agitação visível. Quebra-se, talvez, no momento que, de certo ponto de vista, é o melhor. Não se sabe, não se sabe.

Simplesmente, parece-me que a psiquiatria e a psicanálise não prestam serviço, cada vez que se propõem a esses fenômenos de interpretação que podem ser vistos como interpretações pueris. Isso desonra as pessoas … Acontece que as pessoas ficam contentes. Elas aguentam escutar a isso. É assunto delas, uma vez que funcione. Mas eu penso que é desonroso aceitar escutar – ao menos é preciso muito sofrer para suportá-lo – durante horas e horas tudo isso: “É porque você não está de acordo com seu pai e sua mãe que tudo isso se dá”. “Pois há alguma coisa que se passa da parte de seu pai”. Seja em termos de estrutura, seja em termos de imagem de pessoa. Ainda uma vez, personologia e estrutura, isso me parece tão parecido que, de qualquer maneira, deve-se ter, me parece, a elementar dignidade de adoecer, ou de se tornar louco, à necessidade de muitas outras pressões e muitas outras aventuras que não estas.

Então, nesse sentido, eu respondo, se bem compreendi a questão: a ideia da esquizofrenia como processo implica que esse processo resvale incessantemente na produção de uma espécie de vítima do processo. Pode-se ser, a todo instante, vítima do processo que se carrega em si. E, por processo, ainda uma vez, eu invoco – pois, aí, torna-se uma linguagem comum, que nos pertence a todos – os grandes nomes como Kleist, Rimbaud, etc. Bom, Rimbaud, o que dizer de Rimbaud? O que é esse homem? Ele sai pela Etiópia, ou seja, ele prolonga sua linha de fuga. Mas ele o faz de que maneira? Essa espécie de renegação de todo seu passado: é algo que não é mais suportável para ele. O que isso vai virar? Como vai virar? É sobre esta linha que ocorre um verdadeiro devir, ainda uma vez. Ora, esse devir também pode virar um devir mortífero. Então, se há uma lição, é que não se trata somente de desenredar as linhas que compõem alguém. É tentar, por não importa qual meio, impedir que as linhas se tornem linhas de morte.

Ora, nesse ponto, não há solução milagrosa. Creio apenas que há uma espécie de complacência que é extremamente duvidosa: a complacência ao discurso psicanalítico faz nossa desonra. Há muito tempo que o romancista Lawrence dizia que havia uma espécie de reação amena à psicanálise. Ele dizia: “Mas tudo isso é repugnante”. Lawrence é muito forte, vocês compreendem? Pois não é alguém a quem se possa dizer: “Ah, você está chocado pela sexualidade”? Ele não estava chocado pela sexualidade, ele até mesmo encabeçava uma espécie de descoberta, e uma singular descoberta, da sexualidade. Mas ele tem a impressão de que a psicanálise é repugnante. O que ele quer dizer? De qualquer forma, não é Lawrence que dirá: “Eu protesto contra a ideia de que tudo seja sexual”. Pelo contrário, isso não o incomoda. Ele diz: “Mas, vocês percebem o que eles fazem da sexualidade? Vocês se dão conta”? “Mas é uma vergonha!”, ele diz. A sexualidade? Ela tem relação com o quê? Bom, ele diz a mesma coisa que acabo de dizer sobre o processo. Ele diz: “A sexualidade? É evidente que tem a ver com o sol”. É uma questão de delirar o mundo, e, de modo algum, se faz uma concepção romântica da sexualidade. É assim aquilo que vocês querem, aquilo que se gosta. Por exemplo, o tipo de mulher ou homem que se persegue, aquilo que se espera: vai muito além das pessoas tudo isso.

Delira-se o mundo. Com efeito, dependendo, pode ser tanto um oásis, quanto um deserto, quanto tudo o que vocês quiserem. Em todo caso, a ideia de que tudo isso remonta a Édipo, ou seja, a uma constelação pai–mãe, mesmo que se adicione a Lei, é algo de escandaloso. Isso tudo é desonroso. É evidente que a sexualidade não é isso. Quando o presidente Schreber diz, literalmente: “Eu tenho raios de sol no ânus”. Ele os sente. Ele sente os raios do sol. Ele os sente dessa maneira. Bom, se tentamos remeter essas relações a seu pai, eu penso que corremos o risco de não compreendermos coisa alguma nisso. Nesse momento, o que é toda a sexualidade então? Quando Lawrence protesta contra a psicanálise, ele diz: “Mas eles não querem nada além do sujo segredinho? Um pequeno segredo miserável. Realmente miserável essa história de querer matar seu pai e dormir com sua mãe. É miserável”. Então, pode-se interpretar em termos de estrutura: continua sendo miserável. Vocês se dão conta? Não, mas, jamais, jamais … É uma ideia corrompida essa. Quero dizer, é preciso reagir contra a psicanálise e contra a psiquiatria psicanalisante em nome da sexualidade. Pois é inteiramente outra coisa. Na sexualidade há um verdadeiro processo que, também nesse caso, pode tomar um rumo mortífero. Muito bem, eu queria dizer tudo isso. Então, eu continuo. É por isso que um ano…

(...)

Gilles Deleuze, aula:O Anti-édipo e outras reflexões, Vincennes, 27/05/1980