terça-feira, 29 de junho de 2021

O REAL ARTIFICIAL

A psicose é uma síndrome psiquiátrica em que o paciente apresenta basicamente um rompimento, em maior ou menor grau, com a Realidade.  Esta realidade constitui o território vivencial onde ele estabelece a verdade de si e do mundo. Trata-se de um sistema complexo de valores produzidos por instituições (formas sociais) inacessíveis à consciência e à razão. É possível dizer que, sob as condições da modernidade, tais instituições é que fabricam (como numa linha de montagem) a consciência e a razão. Tudo vem de fora... A clínica mostra que a experiência psicótica implica em certezas tão mais inquestionáveis quanto maior a gravidade do caso. Ora, no universo de sentido atual, não só no Brasil, mas em todo o mundo, as certezas vacilam. O caso da política é exemplar, já que os termos "direita" e "esquerda" se prestam a usos cada vez mais distantes dos significados da Revolução Francesa. Entramos e estamos num mundo de dissolução do sentido, e por extensão, de aniquilamento da subjetividade como forma identitária. Descartes já não respira. Usando a psicopatologia clínica como referência da análise social, os processos sociais e suas expressões linguísticas fazem, mais e mais do homem comum, o psicótico. Não o psicótico reduzido pela psiquiatria biológica a sintomas (delírios e alucinações) mas o psicótico, digamos, integral, o que é intoxicado full time por imagens virtuais autenticando a suposta vida real. Assim, essa Realidade se dissemina por todos os cantos, todos os poros, como imagens descarnadas, ocas, fugidias, anêmicas. Já não é mais o psicótico (a pessoa) que rompeu com a realidade. É a Realidade que rompeu-se, destruiu o eu e chega sem o corpo, a corporalidade, a carne, o afeto, a alma, o desejo, enfim, como sinal dos tempos de uma vida decadente, esvaziada de potência. Oh Spinosa !


A.M.

sábado, 26 de junho de 2021

Rápido e Rasteiro


Vai ter uma festa

que eu vou dançar

até o sapato pedir pra parar.


aí eu paro

tiro o sapato

e danço o resto da vida.



Chacal

quinta-feira, 24 de junho de 2021

UM ENCONTRO DIFÍCIL

O organismo físico-químico, visível, palpável e mensurável, é o objeto da medicina, onde ela de fato intervêm, e, caso obtenha êxito terapêutico (principalmente por isso), retira mais-valia de poder. No entanto, junto a esse organismo e fora da relação linear causa-efeito, funciona o corpo das intensidades livres. Não é visível, não é palpável, não é mensurável, nem segue os mapas fisiopatológicos vistos em exames por imagem. Distinto da consciência que sempre obedece ordens, ele não obedece, é rebelde e alterna com o organismo fluxos atuais e/ou antigos de afetos nômades. São estes que impulsionam a vida, que são a vida : potência sem forma. Em face desse real estado de coisas, tal corpo traz grandes dificuldades à pesquisa. Como acessar algo que não se vê não se toca nem se mede? Na clinica psicopatológica há um "corpo que não aguenta mais" e que se expressa em sintomas álgicos (por exemplo, cefaléias crônicas - simbolismo do órgão?), mas também como multiplicidade de sintomas que resumimos sob o nome de angústia. Aqui não se trata de usar a psicanálise como doutrina ou método de trabalho, mas de roubar deste saber a hipótese de um inconsciente para além da representação de papai-mamãe. Um inconsciente "órfão, ateu e anarquista", inconsciente-corpo. Não é fácil encontrá-lo.


A.M

sábado, 19 de junho de 2021

EVITÁVEIS


 

Toda vez que encontro uma parede

ela me entrega às suas lesmas.

Não sei se isso é uma repetição de mim ou das

lesmas.

Não sei se isso é uma repetição das paredes ou

de mim.

Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?

Parece que lesma só é uma divulgação de mim.

Penso que dentro de minha casca

não tem um bicho:

Tem um silêncio feroz.

Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.


Manoel de Barros 

domingo, 13 de junho de 2021

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Me sinto bem em não participar de nada. Me alegra não estar apaixonado e não estar de bem com o mundo. Gosto de me sentir estranho a tudo...


Charles Bukowski

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Reunião do Gabinete Paralelo, com Médicos Pela Vida, coma participação d...

ONDE VIVE A DIFERENÇA

A diferença não é um objeto sólido, visível, palpável, identificável em alguém ou em algo à nossa frente.Ela não se presta à relações estabelecidas pelo senso comum, ou mais, ou pior ainda, pelo bom senso das razões intelectuais, mesmo as mais elevadas. Nada mais baixo que ela ao nível da terra, nada mais sutil que ela, quase imperceptível. Olhar de lince: a diferença. Ela se dá e se doa apenas a sensibilidades em estado selvagem, a animalidades circulando nos corpos da rua, na luz das veias inundadas por desejos sem órgãos, sem sistemas, sem métodos, sem deuses, sem respostas. A diferença é o bicho. Vive na espreita e da espreita. Surge quando menos se espera e não compactua com percepções grosseiras das formas do mundo adulto e acabado. Por isso e muito mais assusta os idólatras e os escravos das ordens mortuárias quando bem do outro lado o dia está raiando num cheiro de acácias. A diferença, ela própria, não tem uma identidade, uma definição, nunca ninguém a fotografou. Não é uma imagem, ao contrário, é ela quem faz e tece imagens. Não tem rosto pois é quem o fabrica. Ela se torna, então, alegria aos montes vivendo no equilíbrio precário das linhas da arte. Inventa algo, alguma coisa pequena, ínfima, pura criação no e do tempo, ou o próprio tempo em "estado puro", a diferença, uma criança.


A.M.