sábado, 30 de setembro de 2023

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Como nascem as manhãs


O fundo dos olhos da noite 

guarda silêncios. 

Esconde na retina 

a menina que corre descalça em campo aberto. 

Pálpebras cerradas, a noite emudece. 

A menina com medo 

faz um furo no escuro com a ponta do dedo. 

Cai um pingo de luz. 


Amanhece.



Flora Figueiredo

FUNCIONÁRIOS DA VERDADE


Eles estão em toda a parte. Talvez sejam a maioria. 

São funcionários porque funcionam, operam, agem. Sustentam o mundo estabelecido dos humanos.

Iremos citar alguns exemplos como tentativa de caracterização objetiva e subjetiva. São linhas existenciais que os constituem e se misturam. Por isso um lusco-fusco na expressão prática se impõe como camuflagem de crenças. 

Os funcionários administram o acaso para que seja possível a manutenção da ordem. E apelam para a verdade como referência única.

Essa verdade pode ser várias,  mil, cem mil. Permanece, contudo, sendo uma verdade.Os funcionários precisam de uma certeza, assim como os pulmões de ar.

Encontramos na grande política funcionários vitalícios. Tanto os que dominam quanto os que são dominados. Há quem chame estes últimos de massa.

Começamos pela política porque aí a história da humanidade é a de um pesadelo do qual não se acorda.Mas poderia ser outro começo.

Por exemplo, a religião: nela os funcionários (ou fiéis) costumam ser ungidos acima dos mortais, na medida em que cultuam a imortalidade.

Mas há muito mais, já que a verdade ajuda (e muito) a viver.

A universidade, e sua forma que vem da Idade Média, usa dos seus para promover a verdade do pensamento. A sociedade fica abaixo no quesito intelectual.

A verdade da academia exporta seus seguidores para a ciência. Ou o inverso, tanto faz. 

Para complicar a questão da verdade, o capital e o seu método, o capitalismo, fabrica uma verdade única, a mercadoria. Esta se expande e se disfarça nos poros abertos do corpo social. Uma longa história atualiza a barbárie planetária do horror econômico. Ou seria político?

A pessoa humana (conceito cristão) naturaliza o funcionamento da verdade como crença no eu, na consciência e no céu como eterna promessa. O futuro não chega.

As massas consomem  e gozam palavras-de-ordem veiculadas pela mídia.

Fake news são verdades, mesmo não sendo. 

Em casos extremos, funcionários da verdade tornam-se fascistas. Querem tampar o buraco de sentido das sociedades de controle. Uma crispação paranóide se anuncia como crise política.

No amor, o romantismo traz o tom adocicado da verdade para os amantes da fantasia. Isso não funciona mais, exceto como arcaísmo.


A.M

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Rehearsal '27'52" ' - Jiří Kylián (NDT 2 | Souls made apparent)

AFETOS NÔMADES

Os afetos são o que impulsiona os modos de subjetivação (pessoa). Eles funcionam em dobras e misturas subjetivas de toda ordem, ao ponto de alguém dizer: "não sei o que estou sentindo". São fruto das relações humanas e inumanas. A psiquiatria tecnológica, sob a grosseria semiótica habitual no trato com eles, despreza-os, já que não escuta o paciente, ou só escuta atrás de uma grade nosológica. No entanto, o que importa para uma clínica psicopatológica que enfatize a diferença, é que os afetos são inomináveis, por isso mesmo expressão trágica (não comunicável) e extrema (radical) da condição humana. O acesso à existência do outro só se fará, então, por meio da linguagem da arte e da poesia, mesmo que não sejamos artistas ou poetas. Para "chegar" ao paciente, é preciso um devir-outro , um devir-alma, um devir-alegria para inventar linhas de risco ao conteúdo do desejo. Elas funcionam em expansão incessante ao mundo (como na criança) criando-o enquanto território singular.


A.M.

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Sérgio Sampaio - Cala A Boca Zebedeu (Ao Vivo, 1973)

SEM  CORPO,  SEM  AFETO

A psiquiatria produz o corpo-organismo, tomando-o como base da propedêutica clínica: o que fazer com (do) o paciente ? Este organismo tem uma forma que lhe autentica a “natureza” do humano, algo que interage com o mundo fabricando a chamada subjetividade. A inscrição do mecanicismo no funcionamento do organismo é estabelecida pelas relações entre os sistemas (renal, endócrino, nervoso, cárdio-circulatório, etc) que supostamente “antecedem” a realidade do mundo. Portanto, quando em psiquiatria se fala em desejo é em nome de sentimentos humanos que constituem o “estar vivo”. A equação sentimento=alma=espírito é dada como natural, ultrapassando a animalidade em prol de uma espécie de divinização do humano através da instituição da Consciência. “Só o homem tem uma alma”. Desse modo, o que se chama “organismo” é automaticamente ligado à “consciência” como lugar da verdade. Tal percurso conceitual (invisível, pois está encravado em práticas institucionais) une a ausência de corpo à ausência de desejo. Uma psiquiatria sem corpo e sem desejo é possível? Como isso funciona? 

A psiquiatria funciona não funcionando. Tal paradoxo operacional compreende alianças institucionais poderosas. Citemos 5: a família, a escola, o direito, o estado e a polícia. Há outras...  Usamo-las como referência à produção de um organismo-verdade ajustado aos funcionamentos de manutenção fisiológica e bioquímica que lhe dizem respeito. “Não funcionar” significa estar sem corpo e sem afeto e ao mesmo tempo produzir organismos centrados na consciência. O filho, o aluno, o réu, o cidadão e o bandido (respectivos às instituições nomeadas acima)  oferecem um organismo e uma consciência como suportes de verdade à psiquiatria esvaziada de conceitos, mas prenhe de poderes. É que ela  se insinua e se inscreve num campo social capturado pelo capital semiótico hegemônico (significância) e só funciona graças a esses suportes (territórios) expressos no visível (organismo) e no dizível (consciência). Buscamos outra coisa: criar síndromes psiquiátricas a partir da escuta e do olhar clínico mais diretos: um estado selvagem  ético-estético.  Uma psiquiatria da diferença ou a diferença na psiquiatria.


A.M.


terça-feira, 19 de setembro de 2023

sábado, 16 de setembro de 2023

A vida é uma ferida?

O coração lateja?

O sangue é uma parede cega?

E se tudo, de repente?


Eduardo Pitta

SEM ANESTESIA

O conceito de medicalização da sociedade é tributário do capitalismo industrial avançado. Possui um alcance planetário, na medida em que a tecnologia médica, sustentada pela ideia de progresso, avança como oferta de produtos a serem consumidos em meio ao estilo de vida contemporâneo. Tal estilo tem como base a produção subjetiva correlata à produção econômica. Ou seja, cada vez mais inexistem divisões entre os vários setores da vida social, fazendo desta uma mera extensão dos processos do capital (sempre mais lucro, mais domínio, mais controle e exploração...), no caso médico uma semiologia do organismo doente adaptada às necessidades de controle propedêutico pelos equipamentos de saúde. Daí as soluções de problemas sociais se afiguram através o uso da terapêutica médica precedida pelo diagnóstico cada vez mais estabelecido por imagens (exemplo da USG). A medicalização não é, pois, um fenômeno médico, pelo menos na sua origem, mas um produto do funcionamento científico das relações capitalísticas, totalizadas na figura subjetiva do consumidor-padrão. A medicina segue e “obedece” ao processo histórico-social porque ela mesma é uma forma social no sentido de uma instituição poderosa que emplaca um discurso humanitário às custas da produção-consumo de pacientes. Medicalizar é, pois, um ato político antes de ser técnico.


AM.

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Prefácio

Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) —

sem nome.

Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.

Insetos errados de cor caíam no mar.

A voz se estendeu na direção da boca.

Caranguejos apertavam mangues.

Vendo que havia na terra

dependimentos demais

e tarefas muitas —

os homens começaram a roer unhas.

Ficou certo pois não que as moscas iriam iluminar

o silêncio das coisas anônimas.

Porém, vendo o Homem

que as moscas não davam conta de iluminar o

silêncio das coisas anônimas —


passaram essa tarefa para os poetas.


Manoel de Barros

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

O QUE É UMA  PSIQUIATRIA MENOR? 3ª parte 

Ela se divorciou da psiquiatria maior (neuro-biológica). Não sob tumulto ou oposição tipo "melhor ou pior", mas como linha prática e clínica produzida na relação com o paciente.  Antes de ser técnica, uma aposta ética lhe move ao fazer o Cuidado cuidar.

A psiquiatria menor intervêm no universo oculto ou semi-oculto dos humilhados afásicos. Isso inclui os excluídos ao ar livre, os que vegetam, trastes familiares, párias da mente. Cárceres privados são só um exemplo.

A saúde mental é o objeto de pesquisa dessa psiquiatria (talvez inglória) que se deixa afetar por gritos de angústia, fobia e pânico e por delírios, alucinações de fim de mundo, apocalipse e suicídio.

Uma psiquiatria menor funciona, pois, em equipe, em grupo, no coletivo, mesmo quando o psiquiatra está só. Principalmente quando está só.

Ela não busca reconhecimento científico, intelectual, acadêmico, pretígio, poder, money.  Opera no silêncio dos encontros, no risco das terapêuticas criativas e na loucura do mundo.

Não faz política porque em si mesma já é política, inteiramente política, dos pés à cabeça política e por isso mesmo cultiva alma clandestina e corpo guerreiro. Nem mesmo o grande abraço das camisas de força farmacológicas a intimidam.

Quando sente que o  barco vai virar (ou já virou)  sai a nado em direção a outros mares. Sem terra à vista.


A.M. (20/02/2022)

CARYBÉ


 

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

ela só me chega

sem imagem

sem rosto

sem nada

e ao mesmo tempo

tão dentro de tudo

tão dentro de mim


A.M.

ANARQUISMO : O INFINITO LIBERTÁRIO

 


Primeiro levaram os negros, Mas não me importei com isso. Eu não era negro. Em seguida levaram alguns operários, Mas não me importei com isso. Eu também não era operário. Depois prenderam os miseráveis, Mas não me importei com isso, porque eu não sou miserável. Agora estão me levando. Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo.


Bertolt Brecht

SOBRE O ÓBVIO

Saúde mental não é saúde do cérebro. A mente não é um órgão. A mente é um construto teórico composto por mil processos afetivos e semióticos que circulam livres para o funcionamento dos códigos sociais. Mente é trabalho, família, política, saúde, escola, mídia, entre outras instituições. Assim, tal questão conceitual (simples mas essencial) estabelece condições de enunciação para a prática da psiquiatria e dos saberes chamados psi. Falamos da clínica e seus efeitos sobre as pessoas.


A.M.

domingo, 3 de setembro de 2023