terça-feira, 31 de outubro de 2023

A DIFERENÇA NA SAÚDE MENTAL 

Para discutir a diferença na saúde mental há uma questão conceitual básica. A "mente" não é o cérebro. Ninguém nunca viu a mente, ninguém nunca pegou, mediu ou pesou a mente. Lidamos com um objeto abstrato, ou seja, com o sem-forma. Para acessá-lo, o método científico da psiquiatria  não só é limitado como muitas vezes se faz nocivo ao paciente. É que em função do lugar de poder que ocupa, o discurso psiquiátrico produz verdades subjetivadas como transtorno mental. Num quadro conceitual que representa a saúde mental como saúde do cérebro, como inserir a diferença? Ora, a diferença concebe a mente enquanto mundo, já que o mundo não tem uma forma única, não tem modelo. Ao contrário e bem mais, o mundo é composto de processos sociais (forças) que se cruzam, se aliam, se destroem, se alimentam, configurando o que chamamos de inconsciente-produção no sentido em que Deleuze-Guattari trabalham. A diferença está imersa no inconsciente. "O inconsciente é órfão, ateu e anarquista". Bem entendido, não o psicanalítico, mas o inconsciente- produção e sem-forma (a mente) que se corporifica em práticas sociais concretas (a clínica). 


A.M.

domingo, 29 de outubro de 2023

TULIPAS ETERNAS


 

Direito? O que é 'direito'? Uma linha pode ser direita, ou uma rua. Mas o coração de um ser humano?


Tennessee Williams

UMA ESTRANHA ESPECIALIDADE 

O que é involuntariedade em psiquiatria? É o fato do paciente não se achar doente, não se perceber como um doente, não se sentir doente, e, portanto, não querer tratamento. A aproximação de um técnico que lhe ofereça ajuda (talvez um psiquiatra) lhe provoca rechaço, negativismo, indiferença, ou até hostilidade/agressividade. Este é um dado muito comum observado no campo da psicopatologia clínica, o qual, entre outros efeitos concretos, atesta a insuficiência do modelo biomédico nas práticas de saúde mental. Citando ao acaso, é possível incluir os quadros de transtornos da personalidade, dependências de drogas, demências graves, retardos mentais, psicoses de variadas etiologias e semiologias (com sintomas positivos ou negativos, em especial as esquizofrenias), delírios sistematizados crônicos, transtornos do humor  (formas de mania excitada e mania psicótica, e até mesmo depressões), entre outros quadros mal diagnosticados, com diagnóstico obscuro, ou até sem diagnóstico. O essencial a considerar é que a maioria não quer tratamento, nem sabe do que se trata, ou do que se passa. Ora,  como é possível que exista uma especialidade médica cujos pacientes não apenas não querem tratamento, como também não se sentem doentes? Na maioria dos quadros arrolados, a busca de tratamento é, sim, da família, ou dos que estão à volta (amigos, colegas, vizinhos, etc) e não do próprio paciente. Por que?


A.M

A vida é uma ferida?

O coração lateja?

O sangue é uma parede cega?

E se tudo, de repente?


Eduardo Pitta

sábado, 28 de outubro de 2023

Guerra Israel x Hamas: as principais imagens do 22º dia de conflito.

O CÉREBRO MENTE

A psiquiatria é uma especialidade médica híbrida. Funciona na zona de fronteira entre as ciências humanas e as biológicas. Contudo, mais importante para a prática clínica (ou seja, aos efeitos sobre o paciente) é  o fato de ser ela uma forma social que se nutre dos códigos sociais estabelecidos. Exemplo simples é o da moral. A psiquiatria guia-se pela moral como pressuposto implícito dos seus enunciados diagnósticos, os quais inscrevem-se no fenômeno mais amplo de medicalização da sociedade. Para que tal empreendimento "dê certo",  conta com a reverência das pessoas em geral a uma neuro-cientificidade reducionista e à figura do psiquiatra como ponto de subjetivação mantenedor da ordem. São linhas semióticas (produzem significados) que circulam entre os técnicos de saúde mental num circuito de naturalização a-histórica da medicina, e por extensão da própria psiquiatria. Daí, a assepsia tecnocientífica da psiquiatria biológica esconder a função da clínica-do-remédio-químico como produtora social de fármaco-subjetividades. Para o paciente e familiares, vulneráveis aos fluxos da loucura, a saída terapêutica passa a ser o psiquiatra que apenas medica, ainda que isso mortifique o desejo. Ou justo por isso. O chamado paciente crônico é produzido, estigmatizado como crônico pelas vias do diagnóstico "cidológico" e pela farmacoterapia contençora dos processos subjetivos singulares.


A.M.

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Há uma película fina que nos separa do mundo e seus horrores humanos. Tudo está por um triz. Ao mesmo tempo tal película é o único modo de experimentar amanheceres. Não há escolha possível a não ser a não escolha. É que os mil signos dos deuses da natureza animam os corpos em seus encontros maravilhosos. São os nômades do espírito. 

A.M.

 


segunda-feira, 23 de outubro de 2023

O FIM DO EU

As tecnologias da imagem, veiculadas pelos equipamentos de informação e comunicação (internet, celulares, tablets, TVs, etc) produzem formas de sentir, perceber, pensar e agir que chamamos subjetividade contemporânea. Este fato social atualíssimo alterou profundamente a consciência, o eu, a razão, os afetos, enfim, elementos psíquicos que respondiam outrora pelo que se chamava "pessoa", "indivíduo". O chamado "mundo interno", então constituído como território existencial de si mesmo, espécie de autonomia individual do ser-no-mundo, se desfez, se desfaz e desmorona a olhos vistos. Considere o aumento explícito da morbidade dos transtornos mentais. A fenomenologia e todas as doutrinas do pensamento calcadas no poder da consciência (inclusive o materialismo histórico) ruiram sob o efeitos da era da Tecnologia, ao que parece irreversível. Veio para ficar. Nós não somos mais nós mesmos. De toda a parte, fluxos de notícias, comunicados, informações, imagens, chegam sem cessar, funcionando como recheio subjetivo para acontecimentos que não nos dizem respeito e ao mesmo tempo nos dizem respeito. O tempo não é mais a temporalidade de uma vivência e sim, ao contrário, a vivência,  submetida ao Tempo Mundial (que importam os fusos horários?)se transfigura em éter o que era tão certo como este corpo-aqui-visível-de-carne. Há uma rachadura nas certezas do eu, uma erosão do sentido. As crenças vacilam. Não mais existe "o tempo vivido", mas o tempo mundial descarnado, evaporado, codificado, por exemplo,em mensagens do zap, a confluir naquilo que Paul Virilio chama de cataclísma. Trata-se de uma mudança "espiritual" muito mais profunda do que se imagina, já que as comodidades objetivas (o mundo-em-mim-sem-sair-de-casa) escondem e legitimam a vertigem da loucura do cotidiano normal. Não mais é possível resgatar a nostalgia dos tempos idos (bons tempos, hein!) sob pena de afundarmos numa depressão coletiva. Sabe-se que depressão é luto. O que fazer? Além de consumir vorazmente, consumir (até mesmo consumir esse texto ora escrito), não se tem a mínima ideia....! O estilhaçamento da subjetividade abre um vazio insondável. Em suma, as tecnologias da imagem nos fabricam à sua imagem e semelhança qual um deus profano que se expressa e se impõe pela ubiquidade, simultaneidade e pelo desaparecimento do passado e do futuro, portanto, da História. Se há um devir-revolucionário (sempre há!) ele é tragado pelas ondas gigantescas das imagens planetárias.Um novo conservadorismo sociopolítico emerge. A esquerda se desorienta! A direita, munida do argumento do caos, da decadência dos valores e da dissolução dos códigos sociais, se resguarda à sombra de fascismos religiosos. No fundo, o axioma do progresso técnico e da pureza moral se expressam como religião do deus-capital disfarçada pela aura de um salvacionismo militante. E suicida. Todos rezam, mesmo os ateus.

A.M.

sábado, 21 de outubro de 2023

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Rehearsal world premiere - Micaela Taylor (NDT 2 | Illuminate)

NÃO HÁ MAIS FORA

A passagem da sociedade disciplinar à sociedade de controle se caracteriza, inicialmente, pelo desmoronamento dos muros que definiam as instituições. Haverá, portanto, cada vez menos distinções entre o dentro e o fora. Trata-se, efetivamente, de um elemento de mudança geral na maneira pela qual o poder marca o espaço, na passagem da modernidade à pós-modernidade. A soberania moderna sempre foi concebida em termos de território – real ou imaginário – e da relação desse território com seu fora. É assim que os primeiros teóricos modernos da sociedade, de Hobbes a Rousseau, compreendiam a ordem civil como um espaço limitado e interior que se opõe à ordem exterior da natureza, ou que dela se distingue. O espaço circunscrito da ordem civil, seu lugar, se define por sua separação dos espaços exteriores da natureza. De modo análogo, os teóricos da psicologia moderna compreenderam as pulsões, as paixões, os instintos e o inconsciente metaforicamente, em termos espaciais, como um fora no âmbito do espírito humano, como um prolongamento da natureza bem no fundo de nós. A soberania do indivíduo repousa, aqui, em uma relação dialética entre a ordem natural das pulsões e a ordem civil da razão ou da consciência. Por fim, os diversos discursos da antroposofia moderna sobre as sociedades primitivas funcionam, freqüentemente, como o fora que define as fronteiras do mundo civil. O processo de modernização repousa nesses diferentes contextos, na interiorização do fora da civilização da natureza.No mundo pós-moderno, entretanto, essa dialética entre dentro e fora, entre ordem civil e ordem natural chegou ao fim.

(...)

Michael Hardt

sábado, 14 de outubro de 2023

VELOCIDADES SEM DONO

Os  devires (conteúdos do desejo) são processos nos quais o desejo engata em algo, mesmo que seja a coisa mais insignificante do mundo. O conceito de multiplicidade permite ultrapassar a linha de fronteira destes processos situados entre o orgânico e o não orgânico, e desse modo mobilizar forças de auto-movimento. Devir-pensamento, devir-cérebro, devir-mundo. Ora, o Encontro se dá exatamente na linha dos  devires. É um trânsito, uma passagem. Sendo assim, quem trabalha com o paciente  (um terapeuta) muda na medida em que é afetado pelas multiplicidades que vêm de fora. Não é um encontro interpessoal, já que a  chamada “pessoa”,  conceito molar, está ausente. É um encontro entre devires, inclassificável, velocidade de pensamento que escapa do enquadre clínico convencional.

A.M.

HAMAS X ISRAEL - QUEM SOFRE?


 

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

A FORÇA MAIOR

A alegria é, por sua própria definição, de essência ilógica e irracional. Para pretender ao sério e à coerência, sempre lhe faltará uma razão de ser que seja convincente ou mesmo simplesmente que possa ser confessada e dizível. A língua corrente diz muito mais à respeito do que geralmente se pensa quando fala de "alegria louca" ou declara que alguém está "louco de alegria". Expressões desse tipo não são apenas imagens; elas devem ser entendidas literalmente. pois exprimem a verdade mesma: não há alegria senão louca - todo homem alegre é necessariamente e a seu modo um desatinado.

(...)

Clément Rosset in Lógica do pior

domingo, 8 de outubro de 2023

PAVEL MITKOV

 


SEIS SONETOS SOTURNOS - III


E durma-se com um barulho desses,

engulam-se os sapos necessários.

Resolução? Final feliz? Esquece.

Por outro lado, tudo está bem claro,


nada é ambíguo, e nas entrelinhas

é só espaço em branco. Noves fora,

não há saída. A coisa não termina.

A hora chega, e ainda não é a hora,


ou já é tarde e Inês é morta. Não,

não adianta mais. E no entanto

há que seguir em frente, sempre. Mãos


à obra, sim. Conforme o combinado.

Igual à outra vez: táticas, planos,

metas. É claro que vai dar errado.


Paulo Henriques Britto

sábado, 7 de outubro de 2023

Después de Lucía - Trailer Oficial

ISSO NÃO PÁRA

Movimento islâmico armado bombardeou Israel neste sábado, deixando centenas de mortos e milhares de feridos. Conflito já dura mais de 70 anos

O movimento islâmico armado Hamas bombardeou Israel na manhã deste sábado (7), pelo horário local, em um ataque surpresa considerado um dos maiores sofridos pelo país nos últimos anos.

(...)

Por g1, 07/10/2023, 10:49 hs

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

O RISCO DA INSÂNIA

Tomemos a psiquiatria biológica: uma compreensão da mente a partir do funcionamento cerebral não é um erro. É só uma visão incompleta e reducionista da realidade psíquica. E mais: pelo lugar de poder que a psiquiatria ocupa, tal manobra se transforma em danos irreversíveis sobre o paciente. Estamos na área obscura dos biopoderes que formigam por todos os cantos. Desse modo, fabrica-se em escala industrial um organismo físico-químico que consome verdades prontas. "Tome esse comprimido que é para o seu bem". A invisível engrenagem semiótica,  para funcionar e funcionar bem (asséptica e sem travamentos), conta com a adesão (inconsciente) de segmentos sociais "bem intencionados" em suas respectivas subjetivações. Um padre, um juiz, um delegado, um burocrata, um pastor, um pai de família, um empresário, um diretor de RH, um médico, um professor, uma mãe, entre outros, são personagens sociais que sustentam o desejo de ordem e harmonia. Alguém que ouse quebrar o circuito afetivo da normalidade naturalizada arrisca-se a mergulhar nas trevas da insânia.


A.M.

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

QUEM DELIRA?

O delírio é considerado um sintoma (perigoso) pela psiquiatria. Por isso é hiper-vigiado e controlado via psicofármacos. Na fenomenologia ele é um modo de existência, um ser-no-mundo. Para Freud, uma defesa contra o desejo homossexual. Já Lacan o via como uma espécie de "buraco" no simbólico, mais elegantemente chamado de foraclusão. São todas elas concepções atadas ao espaço psíquico. Pensamos outra coisa: através das linhas desejantes abstratas (sem forma) de Deleuze-Guattari, acessamos o delírio como produção coletiva. Neste sentido, todos podem delirar, restando saber onde, quem, quando, como, por que e para que. Observe os tempos internéticos on line, ainda mais no universo político. O desejo, em seus mil agenciamentos, se expressa... e delira... Isso põe o técnico em saúde mental (não só o psiquiatra) para além dos neurônios e das sinapses, ou seja, no real. Ou "na real". 


A.M.

JESUS, ESSE DESCONHECIDO

O cristianismo será realmente o Anticristo: ele violenta Cristo, proporciona-lhe à força uma alma coletiva; em contrapartida, propicia à alma coletiva uma figura individual de superfície, o cordeirinho.


Gilles Deleuze - in Crítica e Clínica : Nietzsche e São Paulo, D.H. Lawrence e João de Patmos.

terça-feira, 3 de outubro de 2023

João Bosco - Desenho de Giz (Compositores Unidos)

O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu.

Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens e das coisas.

Eu imaginava que o mundo visto de uma borboleta seria, com certeza,

um mundo livre aos poemas.

Daquele ponto de vista:

Vi que as árvores são mais competentes em auroras do que os homens.

Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças do que pelos homens.

Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do que os homens.

Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que os cientistas.

Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do ponto de vista de

uma borboleta.

Ali até o meu fascínio era azul.


Manoel de Barros

Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar | Trailer Oficial

domingo, 1 de outubro de 2023

SOBRE A DIFERENÇA

Pergunta-se o que é a diferença.  A diferença não é o indivíduo, não é a pessoa, não é algo fixo e estável onde se possa ancorar o corpo e a alma exaustos. Nem tampouco é ver, assuntar, medir, pesar, adjetivar, qualificar. Ela não é do campo do substantivo nem do adjetivo, ou de alguma substância dura, pétrea, imóvel, formatada em ideais do valor de troca. Nada a ver com a troca, pilar e essência do capital em seu cortejo mortuário. Tampouco é o ser-diferente, até porque não há o ser. Não é o estranho-em-nós. Já somos de antemão  e suficientemente estranhos, estranhos a nós e ao mundo. Não há, pois, medidas para identificá-la. Ela é desmedida. Quando há cálculos, dão sempre errado, as contas não fecham, tudo se frustra e se decompõe. Ao inverso, bem mais além e aqui mesmo, há somente corpos, corpos de corpos, corpos no interior de corpos, devires, processos, passagens, relâmpagos, vertigens, intensidades, frêmitos, respirações, ardores, ardências, viagens anômalas no mesmo lugar. Da diferença não se alimenta o narcisismo porque também não existe o narcisismo no seu universo, este sim, verso encantado, encantador e cantador em estradas desertas. A diferença é o bicho. Não tem forma, não é identificável pela percepção de representações exatas ou imagens-clichês. A diferença é o bicho na espreita. Percorre o mundo em linhas finas de sensibilidade e arte. Com delicadeza foge de todos os dualismos, de todos os títulos, de todos os senhores, de todas as pátrias, de todas as pretensões e boas intenções da racionalidade, da consciência e do pensamento da autoridade, mesmo a mais admirável e mansa. Brinca com o poder,  a morte e  o amor. Faz disso a própria natureza do seu percurso invisível e silencioso pelos caminhos desconhecidos do Encontro. Composta de multiplicidades ingênuas e  encravada na irreversibilidade do tempo, se tece e se faz inglória e pura. Mas quem a suporta?



A.M.