Este blog busca problematizar a Realidade mediante a expressão de linhas múltiplas e signos dispersos.
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025
"DELIRA-SE O MUNDO"
Peguem uma coisa, uma simples experiência objetiva como a da música, a música que vocês escutam. Em quê se pode falar de um fascismo potencial na música, se se pode falar de um fascismo potencial? É que a música, me parece, é o processo em estado puro. É por aí que, de todas as artes, essa seria sem dúvida a arte mais adequada, a mais imediatamente adequada. Para apreender sob a pintura um processo da pintura, é preciso muito mais esforço. Quer dizer, apreender os fluxos da pintura é muito mais difícil que apreender imediatamente o fluxo sonoro da música. E, ainda aí, eu diria que, para mim, a música não é uma questão de estrutura, nem de forma, mas de processo. Penso, muito rapidamente, para fazer aproximações, que um dos músicos que mais pensa a música em termos de processo é John Cage. Bem, quero dizer, a música é processo. De certa maneira, ela é amor à vida, fundamentalmente.
Ela é mesmo criação de vida. Ora, será por acaso que, ao mesmo tempo, eu devo dizer o contraditório, que a música nos inspira, em certos momentos, e que não há música que não nos inspire, em certos momentos, um bastante bizarro, um estranho desejo, que é preciso chamar de abolição, um desejo de extinção, um desejo de extinção sonoro, uma morte tranquila? E que na experiência musical mais simples – e aí não há privilégios de uma sobre outra; eu penso que é verdade de toda música. Que é verdade da música pop, que é verdade da música clássica … Que são os dois ao mesmo tempo, e um pego pelo outro, uma criação vital sob forma de linha de fuga ou sob a forma de processo, e implantado lá dentro um risco constante de conversão do processo numa espécie de desejo de abolição, de desejo de morte. E que a música carrega tanto esse desejo de morte quanto deixa de trazer o processo. De modo que, nesse nível, trata-se realmente de uma parte muito incerta, que cada um joga sem saber. Nunca se está certo de que não é sua vez de quebrar, quem pode dizer? E, ainda uma vez, não se quebra sob muito forte agitação visível. Quebra-se, talvez, no momento que, de certo ponto de vista, é o melhor. Não se sabe, não se sabe.
Simplesmente, parece-me que a psiquiatria e a psicanálise não prestam serviço, cada vez que se propõem a esses fenômenos de interpretação que podem ser vistos como interpretações pueris. Isso desonra as pessoas … Acontece que as pessoas ficam contentes. Elas aguentam escutar a isso. É assunto delas, uma vez que funcione. Mas eu penso que é desonroso aceitar escutar – ao menos é preciso muito sofrer para suportá-lo – durante horas e horas tudo isso: “É porque você não está de acordo com seu pai e sua mãe que tudo isso se dá”. “Pois há alguma coisa que se passa da parte de seu pai”. Seja em termos de estrutura, seja em termos de imagem de pessoa. Ainda uma vez, personologia e estrutura, isso me parece tão parecido que, de qualquer maneira, deve-se ter, me parece, a elementar dignidade de adoecer, ou de se tornar louco, à necessidade de muitas outras pressões e muitas outras aventuras que não estas.
Então, nesse sentido, eu respondo, se bem compreendi a questão: a ideia da esquizofrenia como processo implica que esse processo resvale incessantemente na produção de uma espécie de vítima do processo. Pode-se ser, a todo instante, vítima do processo que se carrega em si. E, por processo, ainda uma vez, eu invoco – pois, aí, torna-se uma linguagem comum, que nos pertence a todos – os grandes nomes como Kleist, Rimbaud, etc. Bom, Rimbaud, o que dizer de Rimbaud? O que é esse homem? Ele sai pela Etiópia, ou seja, ele prolonga sua linha de fuga. Mas ele o faz de que maneira? Essa espécie de renegação de todo seu passado: é algo que não é mais suportável para ele. O que isso vai virar? Como vai virar? É sobre esta linha que ocorre um verdadeiro devir, ainda uma vez. Ora, esse devir também pode virar um devir mortífero. Então, se há uma lição, é que não se trata somente de desenredar as linhas que compõem alguém. É tentar, por não importa qual meio, impedir que as linhas se tornem linhas de morte.
Ora, nesse ponto, não há solução milagrosa. Creio apenas que há uma espécie de complacência que é extremamente duvidosa: a complacência ao discurso psicanalítico faz nossa desonra. Há muito tempo que o romancista Lawrence dizia que havia uma espécie de reação amena à psicanálise. Ele dizia: “Mas tudo isso é repugnante”. Lawrence é muito forte, vocês compreendem? Pois não é alguém a quem se possa dizer: “Ah, você está chocado pela sexualidade”? Ele não estava chocado pela sexualidade, ele até mesmo encabeçava uma espécie de descoberta, e uma singular descoberta, da sexualidade. Mas ele tem a impressão de que a psicanálise é repugnante. O que ele quer dizer? De qualquer forma, não é Lawrence que dirá: “Eu protesto contra a ideia de que tudo seja sexual”. Pelo contrário, isso não o incomoda. Ele diz: “Mas, vocês percebem o que eles fazem da sexualidade? Vocês se dão conta”? “Mas é uma vergonha!”, ele diz. A sexualidade? Ela tem relação com o quê? Bom, ele diz a mesma coisa que acabo de dizer sobre o processo. Ele diz: “A sexualidade? É evidente que tem a ver com o sol”. É uma questão de delirar o mundo, e, de modo algum, se faz uma concepção romântica da sexualidade. É assim aquilo que vocês querem, aquilo que se gosta. Por exemplo, o tipo de mulher ou homem que se persegue, aquilo que se espera: vai muito além das pessoas tudo isso.
Delira-se o mundo. Com efeito, dependendo, pode ser tanto um oásis, quanto um deserto, quanto tudo o que vocês quiserem. Em todo caso, a ideia de que tudo isso remonta a Édipo, ou seja, a uma constelação pai–mãe, mesmo que se adicione a Lei, é algo de escandaloso. Isso tudo é desonroso. É evidente que a sexualidade não é isso. Quando o presidente Schreber diz, literalmente: “Eu tenho raios de sol no ânus”. Ele os sente. Ele sente os raios do sol. Ele os sente dessa maneira. Bom, se tentamos remeter essas relações a seu pai, eu penso que corremos o risco de não compreendermos coisa alguma nisso. Nesse momento, o que é toda a sexualidade então? Quando Lawrence protesta contra a psicanálise, ele diz: “Mas eles não querem nada além do sujo segredinho? Um pequeno segredo miserável. Realmente miserável essa história de querer matar seu pai e dormir com sua mãe. É miserável”. Então, pode-se interpretar em termos de estrutura: continua sendo miserável. Vocês se dão conta? Não, mas, jamais, jamais … É uma ideia corrompida essa. Quero dizer, é preciso reagir contra a psicanálise e contra a psiquiatria psicanalisante em nome da sexualidade. Pois é inteiramente outra coisa. Na sexualidade há um verdadeiro processo que, também nesse caso, pode tomar um rumo mortífero. Muito bem, eu queria dizer tudo isso. Então, eu continuo. É por isso que um ano…
(...)
Gilles Deleuze, aula:O Anti-édipo e outras reflexões, Vincennes, 27/05/1980
domingo, 23 de fevereiro de 2025
O que é psiquiatria? (1)
A psiquiatria é uma especialidade médica surgida na França em fins do século XVIII. Ai se dá a passagem (conforme Pinel) dos asilos aos manicômios.
No entanto, sua origem mais longínqua remete à existência de asilos no século VII (cultura árabe) e no século XVI (ocupação árabe na Espanha). Desde então passam a ser chamados de hospícios e se espalham pela Europa.
Sendo assim, a origem da psiquiatria se confunde com a origem dos asilos, dos hospícios e dos manicômios. Tudo se prepara para encolher as mentes.
A lógica dos asilos é o DNA da psiquiatria.
Já o século XIX, chamado século dos manicômios, dá origem aos hospitais psiquiátricos conforme o modelo atual.
São conhecidas as agressões e os horrores perpretados contra pacientes nos manicômios desse século. Foucault descreveu com detalhes as torturas científicas.
No Brasil, entre outros horrores, o hospital psiquiátrico de Barbacena é um registro histórico como modelo da barbárie consentida.
No período do estalinismo na União Soviética (1927/1957) presos políticos (quantos?) foram internados em hospitais psiquiátricos.
No período da ditadura brasileira (1964/1979) presos políticos (quantos?) foram internados em hospitais psiquiátricos.
A psiquiatria tem uma história pouco edificante.
No Brasil, veio a reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial. Diferentemente, no campo da medicina não se tem notícia de alguma reforma cardiológica, pneumológica, nefrológica, etc.
De fato, trata-se de uma especialidade que pede um método para além do biomédico.
A psiquiatria (psicopatologia) não dispõe de uma teoria dos afetos, apesar da extrema importância desse conceito para o trabalho clínico, ou seja, da gestação do vínculo com o paciente.
O paciente psiquiátrico muitas vezes não quer ser atendido pelo psiquiatra, sendo levado à força por familiares ou terceiros. Na clínica médica, não se tem notícia de tal recusa por vezes hostil e agressiva.
O objeto de pesquisa e intervenção clínica da psiquiatria é invisível, impalpável e abstrato. Chamado de “mente” , não há nada parecido em pesquisa médica. A mente não é o cérebro.
Nos hospitais psiquiátricos (ainda existem!) é muito comum pacientes fugirem. Por que fugiriam do tratamento? Em contraste, nos hospitais gerais (clínicos) isso não existe. Pelo menos, que se saiba.
A alta e a cura são dispositivos raros na psiquiatria clínica.
Sim, uma estranha especialidade essa.
A.M.
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025
Transição
ao tirar o sutiã soltava os peitos
o recheio todo feito de algodão
precisava ser mulher de qualquer jeito
o seu corpo foi fazer revolução
começou por arrancar aqueles pelos
que habitavam suas pernas sua cara
e deixou que lhe crescessem os cabelos
e vestiu roupa de flor — a que sonhara
já não era decassílabo o soneto
muito menos o heroico alexandrino
travestiu-se de mulher algo divino
caminhava pelos becos pelo gueto
como fosse a mais bela das rainhas
e ostentasse uma coroa com espinhos
Líria Porto
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025
OUTRA POÉTICA
Uma poética como estilo político funciona nas dobras da alma. Isto significa dizer que ela segue os "grandes " acontecimentos do mundo trazidos pela mídia internética que se alojam em linhas subjetivas. Estas são tensionadas por um fluxo incessante de informações. Tudo é enlouquecedor. Então a poética se faz produção de imagens e textos disformes em tempo "integral". O efeito prático é o da aceleração dos versos em prol de um curto-circuito do pensamento enquanto consciência. Sabemos que há muito tempo não há mais consciência, razão e eu, mesmo que pareça. No entanto, o coração (fábrica do desejo), mantém o ritmo e as batidas da sobrevivência.
A.M.
domingo, 9 de fevereiro de 2025
Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo engulo imediatamente
Do jeito que for, desembaçado de amor ou aversão.
Não sou cruel, apenas verdadeiro –
O olho de um pequeno deus, de quatro cantos.
Na maior parte do tempo medito sobre a parede em frente.
Ela é rosa, pontilhada. Já olhei para ela tanto tempo,
Eu acho que ela é parte do meu coração. Mas ela oscila.
Rostos e escuridão nos separam toda hora.
Sylvia Plath
sábado, 8 de fevereiro de 2025
O QUE É A DIFERENÇA
A diferença não é um objeto sólido, visível, palpável, identificável em alguém ou em algo à nossa frente.Ela não se presta à relações estabelecidas pelo senso comum, ou pior, pelo bom senso das razões intelectuais, mesmo as mais elevadas. Nada mais baixo que ela vive ao nível da terra, nada mais sutil que ela, quase imperceptível. Olhar de lince: a diferença. Ela se dá e se doa apenas a sensibilidades em estado selvagem, a animalidades circulando nos corpos da rua, na luz das veias inundadas por desejos sem órgãos, sem sistemas, sem métodos, sem deuses, sem respostas. A diferença é o bicho. Vive na espreita e da espreita. Surge quando menos se espera e não compactua com percepções grosseiras das formas do mundo adulto e acabado. Por isso e muito mais assusta os idólatras e os escravos das ordens mortuárias quando bem o dia está raiando num cheiro de acácias. A diferença, ela própria, não tem uma identidade, uma definição, nunca ninguém a fotografou. Não é uma imagem, ao contrário, ela é quem faz e tece imagens. Não tem um rosto pois é quem o fabrica. Ela se torna, então, alegria aos montes vivendo no equilíbrio precário das linhas da arte. Inventa algo, alguma coisa pequena, ínfima, pura criação no e do tempo, ou o próprio tempo em "estado puro", a diferença, uma criança.
A.M.
domingo, 2 de fevereiro de 2025
Mundo Pequeno I
O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco,
os besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa.
Ele me rã.
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.
Manoel de Barros