Este blog busca problematizar a Realidade mediante a expressão de linhas múltiplas e signos dispersos.
sábado, 31 de maio de 2025
A CANÇÃO DO LIMPA-VIDROS
eu, um peixe de aquário, gordo,
consumindo o que surge dessas águas turvas.
os passantes lá embaixo como polvos de patins,
uma menina com um buraco-negro a tira-colo e chicletes.
ao lado dos jornais de internet,
meus cactos morrem em sua compulsão por água.
os ursos polares serão extintos pelas geladeiras.
na Austrália, baleias se suicidam na areia.
continuo consumindo qualquer coisa que brilhe um pouco,
eu, um peixe a apodrecer gordo nessas águas sujas.
Ana Rusche
sexta-feira, 30 de maio de 2025
quinta-feira, 29 de maio de 2025
ADMIRÁVEL MUNDO NOVO
Profecia nietzschiana: o mundo caminha para se tornar um grande manicômio de portas abertas. Há uma banalização coletiva do que é chamado de transtorno mental. Quem é louco? A psiquiatria cumpre a função de tratar/adoecer à medida em que recolhe os sintomas e os neutraliza com fármacos. Devidamente protegida pela neutralidade científica, lucra com a falta de saúde mental ad infinitum. Tornou-se uma agência do controle social das condutas. O significante Deus só é ultrapassado pelo discurso psicótico. ("eu mandei Deus criar o mundo"). Um tempo fora dos eixos faz do progresso a pura velocidade (Virilio). Talvez se chegue a um ponto onde cada um de nós será terapeuta do outro. E vice-versa.A mercantilização da alma já não necessita dos valores de troca do mercado. Ela, a alma, é cada vez mais o próprio Mercado íntimo da angústia por viver, abstração concretizada em imagens de imagens de imagens. Na análise do capital, só a grandeza de Marx percebeu a fraude cósmica... a Coisa.
A.M.
terça-feira, 27 de maio de 2025
segunda-feira, 26 de maio de 2025
HORA DO CÉU
Esse fundo da tarde me apavora,
Esse sol morrendo,
Essas nuvens fugindo apressadas,
Fugindo para onde? fugindo de quê?
Que irá acontecer?
O mundo vai sumir?
Eu vou desaparecer?
Vem, amor, e me abraça.
Acalma, com voz suave, a minha doença.
E me ensina a rezar,
Como a um filho,
Uma oração que me faça perdoar,
Perdoar sem compreender,
Nesta hora em que o céu abafa a terra.
Sinto faltar-me a respiração
Sob o peso do céu.
Tenho vontade de fugir da paisagem
E ir-me esconder no seio de uma mulher,
Imensa mãe
De mãos grandes,
Ventre quente.
Dante Milano
sábado, 24 de maio de 2025
A anti-escuta - 2
Num certo contexto de análise, não se trata aqui da acuidade auditiva. Isso é assunto de técnicos especializados.
Trata-se de outra coisa: "escuta" como sensibilidade social.
Ou, pode-se dizer, de uma percepção do mundo que vaza das linhas endurecidas da chamada pessoa humana, invenção cristã.
A Escuta é a percepção sensível e sensitiva do Outro no campo de um coletivo planetário.
A chamada pessoa não existe se não como forma estável e necessária à conservação da vida. É sua expressão reativa.
Reativa às mil vulnerabilidades egóicas.
A Escuta é um agenciamento que atravessa o macrocosmos em direção ao microcosmos e vice-versa.
Iso significa dizer que a Escuta não é apenas se colocar no lugar do Outro, mas tornar-se o Outro numa tarefa inglória e arriscada.
Na civilização moderna, prenhe da pulsão de morte disfarçada de Vida, não parece haver lugar ou tempo para a Escuta, ao contrário.
Daí as doenças...
A. M.
quarta-feira, 21 de maio de 2025
terça-feira, 20 de maio de 2025
O que é técnico em saúde mental?
Não existe uma Faculdade do “técnico em saúde mental”. É que não há identidade profissional... Como reconhecê-lo?
A formação do técnico em saúde mental se dá no Encontro com o paciente. Não no encontro com a pessoa do paciente, mas no encontro com a loucura do paciente. Isso faz toda a diferença.
Mais: no encontro com a loucura dele mesmo, o técnico.
Se há um Encontro, pois, é com a loucura.
É bom lembrar que “loucura” não é um conceito psiquiátrico. A psiquiatria (historicamente) humilhou e escorraçou a loucura.
Tentemos situar (apesar das dificuldades) esse conceito.
Loucura é uma realidade sem nome, ou uma dissolução do nome, a ausência do sentido, os mil afetos em rodopios, o império do non sense...
Isso e muito mais, é loucura.
Curioso como a palavra pode ter significados opostos: 1- “Você não foi à festa. Perdeu. Foi uma loucura”. 2- “Meu amigo, não faça isso. É loucura.” No primeiro caso, “alegria, prazer”. No segundo, “ algo ruim, talvez suicídio.”
Entre os opostos, o nosso eu oscila como um pêndulo. Quem, pelo menos no pensamento e/ou no sonho, não experimentou loucuras?
O técnico em saúde mental só aprende a trabalhar lidando com isso (em si e nos outros), que no fundo é a mesma coisa: loucura do mundo.
Qualquer um pode entrar nessa “vibração louca sem estar louco”. É condição ética para escutar e cuidar do paciente. Nesse campo de ação prática tão escorregadio, só sensibilidades finas interessam.
A.M.
O JARDIM
Existe um jardim antigo com o qual às vezes sonho,
sobre o qual o sol de maio despeja um brilho tristonho;
onde as flores mais vistosas perderam a cor, secaram;
e as paredes e as colunas são idéias que passaram.
Crescem heras de entre as fendas, e o matagal desgrenhado
sufoca a pérgula, e o tanque foi pelo musgo tomado.
Pelas áleas silenciosas vê-se a erva esparsa brotar,
e o odor mofado de coisas mortas se derrama no ar.
Não há nenhuma criatura viva no espaço ao redor,
e entre a quietude das cercas não se ouve qualquer rumor.
E, enquanto ando, observo, escuto, uma ânsia às vezes me invade
de saber quando é que vi tal jardim numa outra idade.
A visão de dias idos em mim ressurge e demora,
quando olho as cenas cinzentas que sinto ter visto outrora.
E, de tristeza, estremeço ao ver que essas flores são
minhas esperanças murchas – e o jardim, meu coração.
H. P. Lovecraft
segunda-feira, 19 de maio de 2025
A anti-escuta - 1
A Escuta, sob as suas várias formas, é o cerne do trabalho em Saúde Mental.
Mas é possível escutar o Outro?
Vivemos tempos capitalísticos.
Que foram codificados num sistema de lucro infinito obtido às custas da ação de domínio de uns poucos humanos. Sobre a maioria.
Nenhuma novidade. Apenas lembrar que a notícia chega com precisão científica por meio de um alemão do século XIX.
Ele desnaturalizou o real mediante cálculos precisos.
Sob tais condições, como falar em Escuta?
Escutar o Outro?
Anh?
Se a Escuta implica o socius como condição essencial para existir, não mais... existe.
O capital, aos poucos, infiltrou-se no corpo social e fez o próprio corpo social como inconsciente, linguagem e verdade Única.
O alcance é planetário e microscópico.
Alguém escuta?
A.M.
quinta-feira, 15 de maio de 2025
LEI COMO REGIME DE SIGNOS
(...)
Entende-se a lei como mecanismo que constrói códigos sobre os corpos. Regras nascidas da convenção e se instituem enquanto “marcas” nos indivíduos. A lei é signo e é a base da formação social. Segundo Deleuze e Guattari: “... a sociedade não é primeiramente um meio de troca onde o essencial seria circular ou fazer circular, mas um ‘socius’ de inscrição onde o essencial é marcar e ser marcado”. Por que a lei precisa fazer inscrição no corpo em forma de marcas? A lei não pertence ao corpo, isto é, não nasce com ele. Ela é necessária para organizar o corpo selvagem através de seus códigos. Pertence à ordem moral.
Ë nesse ‘socius de inscrição’ que a lei ganha conteúdo significativo. São signos que percorrerem a sociedade, produzindo direitos e deveres; instaurando-se enquanto mecanismos artificiais, isto é, artifícios inventados pelas convenções morais. São alianças que os homens fazem entre si, alianças calcadas num comprometimento de fazer cumprir deveres para receber direitos. São marcas necessárias para manter o mecanismo em funcionamento.
O homem ao receber as inscrições ele está recebendo um regime de signos instaurado na sociedade onde se encontra. É muito interessante observar este comportamento em “Capitalismo e esquizofrenia” de Deleuze e Guattari nos apontam este “regime de signos” : “... não dizemos que um povo inventa esse regime de signos, mas somente que efetua em um dado momento o agenciamento que assegura a dominância relativa desse regime em condições históricas .... Com o povo judeu, um grupo de signos se destaca da rede imperial egípcia da qual fazia parte, começa a seguir uma linha de fuga no deserto...”
O exemplo da fuga dos judeus do Egito permite perceber a explicação de uma lei que permanecerá na recordação do povo enquanto ordem social, mas que manterá o indivíduo num desconhecimento do próprio objeto dela; nesse sentido, ele precisará ser continuamente marcado através da repetição das regras de lei, componentes de sua moral. O que ocorre neste exemplo é o produto de um tipo de formação social que teve uma vivência primeira com a lei do faraó (a lei presente num corpo); depois os judeus fugiram com Moisés, que introduziu as Tábuas de Lei; a lei perde o corpo e se mantém apenas como normas, regras, padrões de conduta: sentenças.
A lei estará sempre numa sentença, se repetirá nas palavras. Existe uma “máquina”, produzindo a lei de forma substantiva; tirando-a da condição de sentença abstrata, a lei sai do regime de signos abstrato e se materializa. A noção de “máquina” enquanto regência nas relações de uma sociedade tem uma amplitude muito mais vasta nas questões colocadas por Deleuze e Guattari. Eles propõem três idéias para a utilização do termo Máquina: 1) Toda máquina está relacionada com um fluxo material contínuo que ela corta; são fluxos associativos no movimento intensos da matéria, movimentos este que a máquina, ao cortar, produz outros segmentos. 2) Toda máquina comporta uma espécie de código que se encontra engendrado e estocado nela. Um código inseparável de sua própria composição e que traz consigo uma cadeia de signos legisladores. A máquina assim tem uma face técnica e outra social: existe como mecanismo técnico e existe como meio de transmissão da lei. Por exemplo, um relógio é uma máquina técnica para medir o tempo, mas funciona como uma máquina social para conduzir os comportamentos, para reproduzir as horas, há muito tempo legislado e para assegurar a ordem na cidade. 3) Toda máquina, ao cortar o fluxo e produzir a organização através de seu código, provoca um corte-resto ou resíduo, que é efeito do funcionamento e existência da máquina. Esse terceiro aspecto da máquina é síntese dos dois primeiros; todos os três se inter-relacionam. A ação da máquina ao provocar o resíduo, efeito de seu funcionamento, provoca o surgimento de um “sujeito” ao lado dela, adjacente e inseparável da mesma, sujeito que se sacrifica para se integrar a ela.
Há um trabalho de Deleuze e Guattari sobre a obra literária de Kafka onde eles fazem uma reflexão sobre a “máquina abstrata da lei”: Sai assim da máquina abstrata da lei, que opõe a lei ao desejo, como o espírito ao corpo, como a forma à matéria, para entrar no agenciamento maquínico da justiça, isto é, na imanência mútua de uma lei decodificada e de um desejo desterritorializado“.
A máquina é um agenciamento, trata-se de uma associação de funções de agentes. Os agentes são múltiplos e mantêm entre si uma constante relação. É pela relação das peças que a máquina funciona. Cada elemento da relação é um agente que tem uma determinada função; o conjunto das funções produz o agenciamento.
Uma máquina, no seu aspecto técnico e material, tem, no seu constructo, peças ou funções próprias e características, que se relacionam para determinada finalidade. O conjunto destas funções da máquina é acionado para uma outra finalidade para além da máquina, e é acionado por agentes externos que correspondem ao aspecto social da máquina. É um outro agenciamento que implica um conjunto de funções externas dadas por outras relações, como no exemplo da máquina-relógio.
Logo, há uma função interna da máquina e uma função externa das relações sociais. Consideremos agora um corpo como se fosse uma máquina técnica, veremos que ele possui seu próprio agenciamento e vai se inserir num agenciamento transcendente a ele que são as funções dos códigos da lei. O corpo, então, possui seu próprio agenciamento e a lei possui outro e diferente agenciamento externo a ele. Como é possível se unirem?
Para compreender a introjeção da lei no corpo, utiliza-se a teoria dos afetos na obra do filósofo Espinoza (séc. XVII) o que facilita esta compreensão. Admite-se que todos os corpos se relacionam através de encontros; é um jogo de ação (agir) e de paixão (sofrer ação). Nesses encontros os corpos se afetam mutuamente. É uma questão de vida na matéria-natureza e esta matéria aparece em termos de composição e/ou decomposição.
A composição rege uma lei e uma ordem na Natureza, onde a matéria vive, quando a relação produz composição; e perece quando a relação produz decomposição: um encontro que produz composição produz mais vida, aumento de força; o contrário resulta em enfraquecimento: ...”o mal é sempre um mau encontro, é sempre uma decomposição de relação .... Espinoza insiste sobre este ponto quando interpreta o célebre exemplo: Adão comeu o fruto proibido. Não se deve pensar, diz Espinoza, que Deus proibiu algo a Adão. Simplesmente, Deus lhe havia dito que esse fruto era capaz de destruir o seu corpo e fazer a decomposição da relação. Exemplo da primeiríssima lei entre os homens. O conselho de Deus não é uma lei externa e transcendente ao corpo de Adão, mas um sábio aviso de que o fruto o envenenará, um encontro que traria decomposição.
Segundo o que Deleuze observa desta teoria de Espinoza, todos os fenômenos que agrupamos sob a categoria do ‘mal moral’, tais como as doenças e a morte, são desse tipo: mau encontro, indigestão, envenenamento, intoxicação, decomposição de relação. Logo, no jogo da ação (poder de um corpo de afetar outro) e da paixão (poder de um corpo de ser afetado) nascem as composições e ou as decomposições”.
No homem, um encontro que produz composição resulta num sentimento de alegria, é bom encontro; um encontro que produz decomposição resulta num sentimento de tristeza, é mau encontro. Estes sentimentos é que regem os desejos do homem. Um corpo se agencia com outro corpo, tem poder de afetar e de ser afetado, forma-se um agenciamento; neste os afetos se fortalecem ou se enfraquecem, dependendo dos bons ou dos maus encontros, ou seja, em termos dessa alegria ou dessa tristeza.
Nesta perspectiva da teoria dos afetos, o desejo se insere na região dos afetos; não está nem dentro do corpo, nem fora dele: é efeito das relações. Nesta noção do desejo utilizada por Deleuze e Guattari, o desejo não está regido pela falta, como na concepção das teorias freudianas; ele vai se constituir pelos estados do corpo, os seus humores, num agenciamento, na relação dos bons ou maus encontros ou relação de seus afetos.
Parece haver uma contradição entre lei e desejo, oposição que surge de uma antinomia do espírito e do corpo, contribuindo para uma incompatibilidade entre matéria e forma. O que ocorre é que lei, espírito e forma se inserem no campo da transcendência, mas desejo, corpo e matéria pertencem ao campo da imanência.
Concebemos imanência como sendo o que está “dentro de” e transcendência como sendo o que está “fora de”. Se desejo é o que se produz no interstício de um agenciamento, corpo é um agenciamento de matéria, e matéria é relação de intensidade de força (conforme a concepção da física pós-einsteiniana), logo, inserem-se numa imanência.
No entanto, a lei é abstrata, foi abstraída do conhecimento do mundo, está fora do mundo. O espírito é concebido como um estado de coisas, uma alma, uma atmosfera que não está na relação, logo também está fora; a forma é tomada na acepção de imagem, figura ou idéia, uma perspectiva do observador sobre a coisa observada, dependendo da posição do observador a forma ou imagem será sempre outra, ela não pertence à coisa, também se encontra fora. Portanto, podemos entender porque Deleuze e Guattari declaram a existência dessa oposição entre lei e desejo. E, durante uma formação social vai ocorrer alguma coisa que Deleuze e Guattari chamam de “captura do desejo”. A lei, que era código externo ao corpo, vai ser introduzida nos corpos, vai dominar os afetos, e nesse domínio ela se torna imanente. Haverá uma “imanência mútua de uma lei decodificada e um desejo desterritorializado”, como os vimos afirmar na Nota n. º 3 mais acima. Parece-nos ser esta a questão fundamental nos estudos sobre capitalismo e esquizofrenia que Deleuze e Guattari trabalharam.
Lea Guimarães e Murilo Guimarães
quarta-feira, 14 de maio de 2025
Meu nome é Caio F.
Moro no segundo andar, mas nunca encontrei você na escada.
Preciso de alguém, e é tão urgente o que digo. Perdoem excessivas, obscenas carências, pieguices, subjetivismos, mas preciso tanto e tanto. Perdoem a bandeira desfraldada, mas é assim que as coisas são-estão dentro-fora de mim: secas. Tão só nesta hora tardia - eu, patético detrito pós-moderno com resquícios de Werther e farrapos de versos de Jim Morrison, Abaporu heavy-metal -, só sei falar dessas ausências que ressecam as palmas das mãos de carícias não dadas.
Preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a contar. Que tenha boca para, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver. Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta como - eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano que habita a concha ao lado da concha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, apenas porque te estendo a minha mão. (...)
Tenho urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para me tocar, para me tocar e no toque me salvar. Preciso ter certeza que inventar nosso encontro sempre foi pura intuição, não mera loucura. Ah, imenso amor desconhecido. Para não morrer de sede, preciso de você agora, antes destas palavras todas cairem no abismo dos jornais não lidos ou jogados sem piedade no lixo. Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do jogo, do embuste: preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. Como se fosse possível, como se fosse verdade, como se fosse ontem e amanhã.
(...)
Caio Fernando Abreu
terça-feira, 13 de maio de 2025
segunda-feira, 12 de maio de 2025
Multiplicidade
O que é de fato o real? Para responder a essa pergunta, Deleuze dirigiu seu pensamento à questão dos fundamentos, mas o que encontrou sempre foi o afundamento. Como um filósofo que mergulha na existência para dela tirar o seu caráter mais geral, ele vai ao fundo, mas o que encontra é o sem-fundo, então responde: o que há de primeiro é a diferença pura – nos termos do Mil Platôs, multiplicidade pura.
Deleuze e Guattari incomodam muita gente porque fazem da filosofia uma aberração, colocando toda a pretensão do pensamento na capacidade de apreender a multiplicidade, ainda que ela seja monstruosa. É apenas isso. Não se trata de buscar uma razão infalível, uma moral inquebrável, uma vida ideal, mas de dar conta da multiplicidade. De saída, a primeira coisa é admitir que a realidade é delirante, que não há forma, representação ou verdade última.
Se a realidade é composta por uma multiplicidade irredutível, o que a filosofia pode fazer é recuperá-la por meio de planos, trazendo à tona um recorte pensável de um pensamento delirante. Em estado puro, a multiplicidade não é pensável, nem audível, nem visível. No entanto, ela é a virtualidade de tudo o que existe. Por baixo de todo fato há um magma diferencial fervendo em intensidades. O que somos capazes de pensar é sempre um recorte de um sem-fundo múltiplo e diferencial em efervescência.
(...)
Do site "Razão Inadequada", acessado em 12/05/2025
O que é psiquiatria? parte 3
Há na psiquiatria uma clínica a ser inventada.
A clínica como lugar de resistência à violência simbólica ou real, aos manicômios da alma e às emergências programadas.
Para isso o trabalho da psiquiatria como um sentido a ser oferecido no Encontro com a loucura dos pacientes. E com a nossa.
Para os multi-sintomáticos graves, gravíssimos, medicar com precisão e método, arte e intuição. Muito difícil tal jornada solitária.
O psiquiatra e os mil afetos no exame do paciente. E na construção do Cuidado.
Ser mais um técnico em saúde mental, buscar relações não hierarquizadas com os técnicos em saúde mental.
Usar o diagnóstico psiquiátrico como função terapêutica e não como estigma e controle moral.
Avaliar os sinais delicados da psicopatologia na inserção subjetiva da realidade social. A pergunta (ampla) : como você vive?
Sempre que possível, reagir às agressões farmacológicas antes sofridas. Tal atitude requer mudanças de prescrição e orientação técnica ao paciente, familiares ou terceiros.
Diante do paciente, evitar ocupar o lugar de juiz, policial, professor ou sacerdote, entre outros. Ser técnico já é muito.
Entrar no delírio (se for o caso) com o paciente, não no lugar dele. Não confirmar o delirio, mas aceitar o delirante.
Valorizar a psicoterapia, antes como atitude, arte e depois como técnica.
Valorizar a arte como estilo, modo de viver.
Fazer uma psiquiatria menor e sensivel aos fluxos do mundo.
A.M.
domingo, 11 de maio de 2025
sábado, 10 de maio de 2025
NÃO SABEMOS LER O MUNDO
Falamos em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida. Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do nosso olhar. Queixamo-nos de que as pessoas não lêem livros. Mas o déficit de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não lemos os outros.
Vale a pena ler livros ou ler a Vida quando o acto de ler nos converte num sujeito de uma narrativa, isto é, quando nos tornamos personagens. Mais do que saber ler, será que sabemos, ainda hoje, contar histórias? Ou sabemos simplesmente escutar histórias onde nos parece reinar apenas silêncio?
Mia Couto
quinta-feira, 8 de maio de 2025
ESGOTO ESPIRITUAL
A palavra "espiritualidade" é tributária de longa tradição ocidental cristã, talvez do oriente milenar, hoje incorporada ao sistema do capital em seu estágio industrial avançado. Produção em série, linha de montagem. Conotada a "algo bom ", ao " bem", a espiritualidade, com toda a carga de afetos positivos que evoca, faz por compor a vitrine das mercadorias destinadas a um "bom viver". Operada como substância, objeto, "ter espiritualidade" ou "desenvolver a espiritualidade", torna-se um ato grotesco num mundo em putrefação ética. Seja o cinismo da geopolítica, o descaso pela pobreza de milhões ou a predação da natureza, a espiritualidade, sob as condições da sociedade moderna, é a eterna fiadora da boa pessoa.
A.M.
terça-feira, 6 de maio de 2025
segunda-feira, 5 de maio de 2025
O QUE É TRAIR A PSIQUIATRIA?
"Trair" é um termo conotado a algo ruim. No entanto, é possível usá-lo no campo institucional, mais precisamente em relação a psiquiatria.Neste caso "trair" significa criar desde o interior do funcionamento psiquiátrico práticas (incluindo práticas teóricas) que utilizem referências fora da psiquiatria (a arte, a filosofia, a sociologia, a literatura, etc) e com ela estabeleçam nexos clínicos. Pois tudo passa pela clínica. Vejamos o exemplo da nosologia psiquiátrica. Frente a aberração epistemológica que é a CID 10, capítulo F, a prática de trair usa os tais diagnósticos como funções terapêuticas e não como essências imutáveis. É que estas atolam o paciente em entidades clínicas imaginárias, sabotando o desejo no que lhe resta de processo existencial singular. Muito se criticou e se critica a psiquiatria, ao ponto de demonizá-la. Isso é relativamente fácil de fazer, já que a critica vem de fora, de uma suposta neutralidade, ou seja, onde está ausente o contato direto com o paciente, o cotidiano dos problemas psicossociais (nos serviços de saúde mental), enfim, a crueza do real. São os signos da clínica. No centro dessa ausência instituída, naturalizada, os aparelhos acadêmicos são um exemplo lapidar. Executam seu mister com competência. Geram projetos de pesquisa, programas, mesas redondas, debates, artigos, dissertações e teses tão brilhantes quanto inócuas em relação a mudanças efetivas no campo da saúde mental. Tais agentes da verdade não são, óbvio, traidores, mas trapaceiros do conhecimento, pois o usam como instrumento de poder, prestígio e ascenção na pirâmide universitária. O argumento infalível é, em geral, o do humanismo a priori da medicina e da academia. O Bem como transcendência. Ora, "trair" no caso de uma prática psiquiátrico "de dentro" nada tem a ver com a academia. Trata-se de usar fragmentos do saber médico (entre outros) a favor de clínicas onde a ética da produtividade existencial, a estética das criações de si mesmo e a política do enfrentamento com os poderes visíveis e invisíveis, se aliem e se potencializem. Isso significa produzir uma máquina coletiva de pensar a realidade social e não a de pensar sobre a realidade social. Mas poucos a suportam...
A.M.
quinta-feira, 1 de maio de 2025
O EXTERMÍNIO DA ALMA - 2
A alma é grandiosa. Ultrapassa a fronteira da pele em direção a países e terras distantes. No entanto, vive aqui na Terra entre os azuis cinzentos das metrópoles rurais. Chame-a pelo nome e ela responderá com aceno de pássaro. Está cercada de ilhas e algorítmos. Não fala, só inaugura o silêncio dos gritos e a pulsação das marés. De todas as partes as notícias dizem que ela escondeu de si mesma o segredo da criação. Uma usina de afetos é o seu sustento até que o céu desabe. Não há mais clima. Apesar disso, continua sensível e veloz.
A.M.
O MELHOR REMÉDIO
"Inabalável é minha profundeza: mas cintila de enigmas e risadas que flutuam”
– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra
“O homem é um animal que ri”, esta é mais uma das grandes definições que a filosofia criou para caracterizar o ser humano. Mas ao longo de toda a sua história a filosofia pouco se pronunciou sobre o riso, e menos ainda fez rir. Não surpreende, é improvável imaginar que do abismo do questionamento saia uma boa piada. O mistério do riso parece uma questão menor em face de perguntas tão sérias, e são poucos os filósofos que se lembram de rir quando questionam a existência de Deus ou analisam o problema do mal. Afinal, quais foram os filósofos ousados – ou seriam irreverentes? – o bastante para escrever uma apologia do riso?
Freud foi um dos últimos grandes pensadores a levar o riso a sério. A psicanálise descobriu uma verdadeira maquinaria invisível das piadas. Para o criador da psicanálise, o riso denuncia uma força que se move no inconsciente, abaixo da superfície, e da qual só conseguimos ver a ponta do iceberg. Se seguirmos até o fim, veremos que o que motivou o riso era uma tensão inconsciente que precisava de um alívio. Algumas verdades só podem ser ditas na forma de uma piada, caso contrário, permanecem não ditas. O que motiva o riso então é quase seu oposto, um sentimento de raiva, vergonha, medo, ou qualquer outra emoção que não pode ser exposta de uma forma mais direta. Toda piada gera o riso como forma de aliviar a tensão. A mensagem é passada, mesmo que codificada na forma de ironia ou sarcasmo. Assim, conclui Freud, toda risada esconde algo sério, demasiadamente sério para ser dito.
Bergson, que escreveu um pouco antes de Freud, suspeitava que o mundo praticamente nos obriga a fazer piadas com ele, como uma maneira de lidar com o absurdo que é a sua falta de sentido, ou melhor, um excesso intelectual de sentido que é dado a ele. O filósofo francês afirmou que o riso é uma espécie de alongamento das juntas do pensamento, para evitar o enrijecimento intelectual. O riso se dá quando acontece uma quebra na direção normal do pensamento, mostrando os limites do racional. Se o corpo e a alma se tornam mecânicos pela inércia da sociedade, o cômico aparece como uma maneira de mostrar a plasticidade da vida, é uma crítica a todos aqueles que se renderam ao cotidiano. Mais uma vez, o riso expressa algo maior do que a sociedade permite existir.
( )
Do site "Razão inadequada", acessado em 01/05/2025

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