domingo, 8 de junho de 2014

DA BOLÍVIA

O Altiplano da América do Sul, um planalto de grande altitude (3,3 mil metros, em média), é um lugar superlativo: possui o mais alto lago navegável do mundo, o Titicaca, e a maior planície salina, o Salar de Uyuni. É o segundo maior platô de montanha da Terra, depois do planalto do Tibet – uma paisagem de gelo e fogo, vento e sal que se estende do norte da Argentina às agrestes planícies do Peru. Mais alto que muitos dos picos dos Alpes, o Altiplano formou-se durante a colisão geológica entre o chão do Pacífico e o continente sul-americano, o que alavancou as duas cordilheiras que margeiam uma bacia plana e alta.

Em direção ao limite sul do Altiplano, onde Bolívia, Chile e Argentina se encontram, a lava borbulha no alto de escarpados vulcões. Talvez nenhum lugar possua uma paisagem que nos faça lembrar de forma tão vívida que houve uma era antes do surgimento dos seres humanos. Ao atravessar o Uyuni num utilitário 4x4, o tempo se anula e, quando, na planície branca, uma Lua brilhante se levanta do lado oposto ao do Sol declinante, a eternidade parece bem próxima.

Poucas árvores sobrevivem nessas extensões batidas de vento, e poucas culturas agrícolas são obtidas desse chão. Essa paisagem ecoante, porém, tem seus habitantes: chinchilas e vicunhas de cascos delicados, alpacas e lhamas, raposas xeretas e, o que parece incrível, bandos de flamingos, que vêem nas vastidões áridas da região dos lagos salgados um aprazível recanto para se reproduzir. Seres humanos vivem ali também, milhões deles, a maioria nas extensões mais verdes entre o Uyuni e Titicaca – uma área conhecida na época do Império Inca como Qullasuyu. Depois da independência da Espanha, em 1825, um novo país se formou, com um nome que homenageava o libertador Simon Bolívar, englobando a maior parte do Altiplano.

A intensa atividade geológica soflo Altiplano agraciou a Bolívia com extraordinárias riquezas minerais. O minério de prata extraído de uma única montanha na legendária região de Potosí ajudou a financiar a coroa espanhola durante séculos. Alguns economistas afirmam, inclusive, que a prata boliviana gerou uma riqueza sem a qual a Europa não teria atingido a posição de poder de que desfrutou no mundo. No início do século 20, o estanho das novas minas forneceu a matéria-prima para boa parte da indústria mundial de latarias, tornando possível manter os soldados nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial por anos a fio.

O Altiplano ainda é uma fonte de riquezas. Depois de quase uma década construindo a necessária infra-estrutura, a Apex Silver Mines, uma companhia americana, prepara-se para extrair minério de outra colina, a San Cristóbal, que parece consistir quase que inteiramente em prata, zinco e chumbo. Outra mina de propriedade americana, a San Bartolomé de Potosí, pode ser a maior fonte mundial de prata pura.

No entanto, em meio a tamanha riqueza – que também flui de bem fornidas reservas de petróleo e gás natural nas terras baixas bolivianas –, a renda nacional per capita é de apenas 5 400 reais por ano. Uma fortuna tão imensa ao lado de uma enorme pobreza tem desafiado – e derrotado – até mesmo os mais esclarecidos governantes da Bolívia, bem como os persistentes esforços das agências internacionais humanitárias. Poucas nações no mundo podem se comparar à decepcionante história boliviana, com suas ditaduras, seus golpes e suas administrações venais. Um ex-ditador, o general Luis García Meza Tejada, ainda está na cadeia por assassinatos políticos e corrupção, e três presidentes, entre 2003 e 2006, não chegaram ao fim de seus mandatos.

Um observador ocasional diria que quase todos os bolivianos têm a pele parda e que a maioria deles é pobre, enquanto a fina camada de habitantes no topo da pirâmide social está bem de vida e é branca. Mas as distinções raciais nunca são tão simples. A mais importante pode ser a que separa metade da população que fala espanhol da metade restante, os indígenas bolivianos, que utiliza alguma das 36 outras línguas oficiais – incluindo o aimara e o quíchua, majoritárias no Altiplano – e, geralmente, também o espanhol.

A Bolívia passa hoje por mudanças, protagonizadas pelos mesmos povos que viveram em um estado de paralisante submissão durante séculos de despotismo. Lutando por seus direitos, desafiando as autoridades, os descendentes dos povos originais do país estão tentando construir um novo mundo para si – um mundo em que eles venham a ocupar o centro. O ano de 2005 assistiu a seu maior triunfo: votando em bloco, elegeram Evo Morales, um aimara do Altiplano, para presidente. O que vem a seguir ninguém sabe. Mas não será uma volta à submissão.

Alma Guilhermoprieto - publicado em Nacional Geographic, julho de 2008

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