segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

O QUE É UMA PSIQUIATRIA MENOR?

É uma psiquiatria da alma. Não a alma usada nas religiões, mas a alma do mundo das coisas,  a que se desloca veloz e invisível: o pensamento. A psiquiatria cuida disso. Ou deveria. Pelo menos, quando enlouquece.

Uma psiquiatria menor busca captar o paciente através de percepções finas e encontrá-lo onde jamais alguém o encontrou. Uma ética de força e criação guia suas ações, mesmo as farmacológicas.

Seu instrumento de pesquisa e intervenção prática (clínica) é uma psicopatologia aberta às mil influências (saberes) do que está longe e ao mesmo tempo tão perto. Seu objetivo é sondar o fora ( não como espaço) mas como ligação ao cosmos aqui em terra firme. É uma psiquiatria do real.

Considera antes de tudo, os corpos-em-relação, os corpos-em-vibração,  o que move o paciente e o técnico: afetos. 

A política existe como trama de poder onde a psiquiatria está incluída. No entanto, para além ou aquém do regime binário direita/esquerda, ela é apaixonada pela diferença, pela singularidade e pelo múltiplo.

Uma psiquiatria menor é grande. Psiquiatras neuro-maníacos lhe são estranhos.

A.M.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

(…), sem o menor medo, que o nosso inconsciente de maneira nenhuma é humano. O inconsciente não é humano! Então, chega a ser um mal-estar começar a jogar categorias humanas – do tipo bissexualidade – dentro do inconsciente… Qual a sexualidade do inconsciente? A da própria natureza! N formas de sexualidade. Você não pode começar a fazer representações orgânicas para entender as forças histéricas, para entender as forças anorgânicas. Então, se eu vou fazer uma teoria do inconsciente e libero o inconsciente da segundidade e jogo o inconsciente cá na afecção sensitiva pura: o inconsciente é uma produção – inesgotável – de afetos. Isso seria o inconsciente – ele é uma produção de afetos.

Eu indicaria aqui um trabalho que foi feito sobre afeto – existem, inclusive, dois trabalhos em português – do André Green (o brilhante André Green!). E ele faz uma espécie de acusação ao Lacan, na questão do afeto e do símbolo. Não é minha questão entrar nisso. Quem quiser ler, leia isso para conhecer o que eu estou falando…

Então, não é uma hipótese, é uma problematização; eu não estou fazendo hipótese nenhuma – é uma problematização do inconsciente. Quer dizer, eu estou dizendo que o inconsciente seria uma força da natureza. Então, eu diria – o inconsciente é uma força da natureza; e onde tiver inconsciente está a vida. Então a vida estaria em toda a natureza – desde que vocês não confundam a vida com o organismo: a vida é uma potência não- orgânica.

Essa posição de eu colocar a vida como potência não-orgânica – que parece que se encerra no campo estético – [não é assim,] de forma nenhuma! Essa posição tem que ter a sua principal sustentação na microbiologia e na biologia molecular. Porque é passarmos a pensar o que as forças codificadoras – da Igreja e do Estado – detiveram: o que as forças do poder detiveram; e é a libertação da vida.

A libertação da vida é a libertação do organismo: libertar a vida do organismo! Então, fazer esse procedimento em todas as linhas possíveis e é a beleza que a história dos homens, tão enlouquecida, nos proporciona. Artistas, cientistas, filósofos que literalmente cortaram o orgânico das suas preocupações teóricas e éticas, produzindo uma obra de liberação exatamente dessas forças afetivas que estão aqui. Vocês podem me perguntar: mas… pra quê e por quê? Porque a vida – à maneira bergsoniana – ela é um élan, ela é uma força, ela é uma linha abstrata. A vida é como se fosse um homem apaixonado à procura exacerbada da sua amada. Por isso a vida vai sempre pra frente, porque ela nunca vai encontrar essa amada. A vida é exacerbada e é errante. É exacerbada e errante. E o pensamento tem uma função. A vida se dá nos corpos e os corpos forçam o pensamento a pensar – porque o corpo não pensa; mas ele força o pensamento a pensar. Então, o pensamento é forçado a pensar e a única coisa que o pensamento pensa é o corpo – a vida.

Os séculos aprisionaram o pensamento em razão, em conhecimento. E ligaram o pensamento ao conhecimento, à razão, etc., para constituí-lo moral e teologicamente. A libertação do pensamento é exatamente isso – é o pensamento se voltar integralmente para a vida. (Vocês entenderam?). Quando isto ocorre, nós começamos a aprender o que são exatamente as categorias da vida. Ao invés de pensar as categorias divinas, as categorias morais, nós vamos começar a encontrar as categorias da vida como potência não-orgânica. Fundamentalmente, como categoria fundamental da vida – seria o tempo; por isso, a grande conquista do pensamento – é a conquista do tempo.

É exatamente esse o procedimento que a filosofia do fim do século XX faz – a filosofia deleuzeana faz. Ela coloca o pensamento como uma experimentação; como um cartógrafo do tempo. Isso em qualquer tipo de arte, cinema, clínica… tudo! O pensamento se envolve com o que eu estou chamando as forças do corpo. As forças do corpo… O pensamento mergulha nisso. Aí, vocês me dizem: “mas que decepcionante – o pensamento só tem o corpo para pensar?” Só tem o corpo pra pensar! Não há mais nada a ser pensado – é isso que nós temos que começar a aprender. Isso – é violento o que eu vou dizer – é um ateísmo fora da banalidade. Fora da banalidade do ateísmo que nós aprendemos aí, a nossa vida toda, esse ateísmo mecanicista, tolo, vulgar...


Aula de Cláudio Ulpiano - 10/03/1994

“Quando nos tornamos um pouco mais líquidos, quando nos furtamos à atribuição de um Eu, quando não há mais homem sobre o qual Deus possa exercer seu rigor, ou pelo qual ele possa ser substituído, então a polícia perde a cabeça”.


Gilles Deleuze

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Quando partiu, levava as mãos no bolso, a cabeça erguida. Não olhava para trás, porque olhar para trás era uma maneira de ficar num pedaço qualquer para partir incompleto, ficado em meio para trás. Não olhava, pois, e, pois não ficava. Completo, partiu.

(...)

Caio Fernando Abreu

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Gênesis: João Bosco e Orquestra Ouro Preto (Ao Vivo em Belo Horizonte)

SOPA DE FÁRMACOS

O uso de psicofármacos em psiquiatria clinica tem como objetivo ( ou deveria ter) a supressão dos sintomas que o paciente refere. Como geralmente a queixa compreende vários sintomas, há uma tendência atual dos psiquiatras em prescrever vários remédios para vários sintomas, dispostos lado a lado, conforme a equação sintoma=remédio. Recebi uma paciente com 7 fármacos há 7 anos. Humor hipotimico, ansiedade, fobia, delirio, alucinação, insônia, entre outros, sintomas "alvejados" um a um num manejo, digamos, pouco inteligente do tratamento. Qual? Importante pois, registrar que na avaliação clinica se considere duas linhas de análise: 1-Uma hipótese diagnóstica; 2-A vivência do paciente que precede e mistura os vários sintomas. Usamos  "diagnóstico" como função terapêutica e não como função de controle. Quanto a vivência, trata-se de detectar os afetos (sentimentos) e as crenças (valores) presentes nesse momento existencial. Garantidas linhas de análise das circunstâncias atuais, será possível reduzir um pouco (senão muito...) a onda gigantesca de prescrições desnecessárias e nocivas. No entanto, é evidente o reinado da psicofarmacologização generalizada em caps, ambulatórios, consultórios e manicômios (mesmo nos maquiados). Por que? Porque medicar, prescrever remédios (não só em psiquiatria, mas nas demais especialidades) tornou-se, faz tempo, uma relação social, uma forma de relação social, uma instituição, enfim, plantada como objeto de consumo no coração da subjetividade moderna. A vida tornou-se uma sedação continuada: como dar alta?


A.M.

domingo, 15 de janeiro de 2023

EMIL NOLDE


 

SOBRE A DIFERENÇA

Pergunta-se o que é a diferença.  A diferença não é o indivíduo, não é a pessoa, não é algo fixo e estável onde se possa ancorar o corpo e a alma exaustos. Nem tampouco é ver, assuntar, medir, pesar, adjetivar, qualificar. Ela não é do campo do substantivo nem do adjetivo, ou de alguma substância dura, pétrea, imóvel, formatada em ideais do valor de troca. Nada a ver com a troca, pilar e essência do capital em seu cortejo mortuário. Tampouco é o ser-diferente, até porque não há o ser. Não é o estranho-em-nós. Já somos de antemão  e suficientemente estranhos, estranhos a nós e ao mundo. Não há, pois, medidas para identificá-la. Ela é desmedida. Quando há cálculos, dão sempre errado, as contas não fecham, tudo se frustra e se decompõe. Ao inverso, bem mais além e aqui mesmo, há somente corpos, corpos de corpos, corpos no interior de corpos, devires, processos, passagens, relâmpagos, vertigens, intensidades, frêmitos, respirações, ardores, ardências, viagens anômalas no mesmo lugar. Da diferença não se alimenta o narcisismo porque também não existe o narcisismo no seu universo, este sim, verso encantado, encantador e cantador em estradas desertas. A diferença é o bicho. Não tem forma, não é identificável pela percepção de representações exatas ou imagens-clichês. A diferença é o bicho na espreita. Percorre o mundo em linhas finas de sensibilidade e arte. Com delicadeza foge de todos os dualismos, de todos os títulos, de todos os senhores, de todas as pátrias, de todas as pretensões e boas intenções da racionalidade, da consciência e do pensamento da autoridade, mesmo a mais admirável e mansa. Brinca com o poder,  a morte e  o amor. Faz disso a própria natureza do seu percurso invisível e silencioso pelos caminhos desconhecidos do Encontro. Composta de multiplicidades ingênuas e  encravada na irreversibilidade do tempo, se tece e se faz inglória e pura. Mas quem a suporta?


A.M.

'Golpe não'

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Eros


Do amor

sei pouco

Dói 

é vermelho

e tem um enorme

sombrero 

azul:

me perdi 

entre

as suas tramas

e desapareci.

A quem souber 

como 

me encontrar 

ofereço recompensa.

-

Lou Albergaria 

domingo, 8 de janeiro de 2023

Não há grandes dores, nem grandes arrependimentos, nem grandes recordações. Tudo se esquece, até mesmo os grandes amores. É o que há de triste e ao mesmo tempo de exaltante na vida. Há apenas uma certa maneira de ver as coisas, e ela surge de vez em quando. É por isso que, apesar de tudo, é bom ter tido um grande amor, uma paixão infeliz na vida. Isso constitui pelo menos um álibi para os desesperos sem razão que se apoderam de nós.


Albert Camus

TEMPOS DE AGORA

A "verdade" é uma mercadoria produzida em escalas maiores e/ou menores, a depender dos veículos utilizados para tal. Entre estes, as redes sociais figuram como produção incontrolável de crenças morais, políticas, científicas, religiosas, etc... O mundo gira em torno de informações/comunicações em velocidades que desfazem toda e qualquer possibilidade de crítica. Há uma produção acelerada de retardos mentais. Ontem é hoje que já é amanhã que tornou-se ontem como bolha de sabão. As certezas metafísicas (quem sou?) são substituídas por fluxos eletrônicos e neurocabos conectados às imagens de uma imensa tela subjetiva. Sob tais condições, não há mais como dizer eu, pessoa, consciência, enunciar boas intenções humanísticas. Afinal, estamos todos imersos na mesma sopa mundial, cada vez mais unidos, cada vez mais beligerantes uns com os outros. Nem mais o apocalipse inspira tanto terror...


A.M.

Tom Odell - Another Love (Official Video)

sábado, 7 de janeiro de 2023

O USO DO DIAGNÓSTICO PSIQUIÁTRICO

O diagnóstico psiquiátrico pode ser de dois tipos: 1-Diagnóstico-essência. 2-Diagnóstico-função.No primeiro caso, ele remete a uma suposta "natureza" que formaliza os afetos e as crenças sob um regime identitário: ele é esquizofrênico, ele é psicótico, ele é histérico etc. Tal enunciado articula-se com a forma-psiquiatria (não a especialidade médica, mas a instituição) que valida e executa a clínica. Em tempos atuais, seria uma bio-neuro-clínica. No segundo caso, o diagnóstico remete à terapêutica como função clínica voltada à autonomia psicossocial. Implica em considerar o Encontro (conexão de afetos) precedendo o Exame do paciente. Sendo assim, qualquer enunciado é válido desde que remeta a processos singulares (subjetividades) e "quebrem" o diagnóstico em favor de novos efeitos de sentido, outras semiologias. Se se fala, por exemplo, "transtorno bipolar", é buscada a relação vivida, vivencial, concreta, corporal, do diagnosticado com o diagnóstico. Em suma, são duas formas de trabalhar com o diagnóstico. Usá-lo como significante médico e ao mesmo tempo torná-lo expressão singular de uma produtividade ou improdutividade existenciais.

A.M.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Poderoso pra mim não é aquele que descobre ouro. 

Para mim poderoso é aquele que descobre 

as insignificâncias (do mundo e as nossas).

Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.

Fiquei emocionado e chorei.


Manoel de Barros