sexta-feira, 31 de março de 2023

RECEITA


Ingredientes:


2 conflitos de gerações

4 esperanças perdidas

3 litros de sangue fervido

5 sonhos eróticos

2 canções dos beatles


Modo de preparar:


dissolva os sonhos eróticos

nos dois litros de sangue fervido

e deixe gelar seu coração


leve a mistura ao fogo

adicionando dois conflitos de gerações

às esperanças perdidas


corte tudo em pedacinhos

e repita com as canções dos beatles

o mesmo processo usado com os sonhos

eróticos mas desta vez deixe ferver um

pouco mais e mexa até dissolver


parte do sangue pode ser substituído

por suco de groselha

mas os resultados não serão os mesmos

sirva o poema simples ou com ilusões


Nicolas Behr




É ISSO, UM HOMEM?

O golpe militar que no dia 31 de março de 1964 jogou o Brasil em uma ditadura causadora de morte, tortura e desaparecimento de milhares de pessoas tem como um de seus principais ícones Carlos Alberto Brilhante Ustra. O coronel, que morreu em 2015, foi reconhecido pela Justiça como torturador. Mais que isso: as vítimas relatam que seu nível de crueldade era insuperável.

Mesmo assim, nos últimos anos a extrema direita tenta fazer dele alguém respeitável. Ficou tristemente marcada a "homenagem" que o então deputado Jair Bolsonaro fez a Ustra no dia da votação do impeachment de Dilma Rousseff. Bolsonaro depois o chamaria de "herói". Também o senador Hamilton Mourão já disse que Ustra foi um "homem de honra".

Os depoimentos das três vítimas da tortura que são destaque nessa coluna confirmam as práticas bárbaras que Brilhante Ustra exerceu durante a ditadura. Elas sobreviveram a um criminoso a quem a Comissão da Verdade atribuiu pelo menos 45 mortes.

O momento em que levou crianças de 4 e 5 anos para assistirem à mãe ser torturada após ter sido estuprada; a sequência de choques elétricos nos ouvidos de um preso que o fizeram perder parte da audição; e o sadismo de obrigar que uma vítima que não conseguia caminhar usasse coleira e andasse de quatro, como um cão, não revelam somente a covardia e a bestialidade de Ustra.

Colocam em xeque os conceitos de heroísmo e honradez de Bolsonaro e Mourão, assim como de todos os que pensam como eles.

Com a palavra, as vítimas:

"Mamãe, por que você ficou azul?"

Maria Amélia Teles, a Amelinha Teles (hoje com 78 anos), fazia parte do Partido Comunista do Brasil, quando foi sequestrada por agentes da ditadura e levada para o DOI-Codi de São Paulo, junto com o marido, Cézar, e com Carlos Nicolau Danielli.

"Fomos sequestrados na Vila Clementina, bem perto do DOI-Codi, e levados para lá no dia 28 de dezembro de 1972. Logo que chegamos no pátio, arrancaram meu marido e o Danielli do carro e passaram a dar chutes e socos no estômago e na cara. Eram muitos homens, mas tinha um que comandava. Depois viria a saber que era o Carlos Alberto Brilhante Ustra, na época major. Ele usava nome falso, era chamado de dr. Silva ou dr. Tibiriçá.

Por achar absurdo que tantos homens estivessem agredindo os dois que estavam comigo, me dirigi ao Ustra e perguntei a ele: "O sr. que está comandando esses homens, vai deixar um negócio desses acontecer aqui? Vai permitir que eles sejam mortos?".

Antes de responder qualquer coisa, ele me deu um safanão com as costas das mãos que me fez cair longe, no chão do pátio. Depois gritou: "Foda-se, sua terrorista!". Os homens naquele momento vieram me agarrar.

Então, nós três fomos levados para a sala de tortura.

Era Ustra quem comandava as torturas. Eles arrancavam as roupas dos torturados, nunca fui torturada vestida. Chamavam aquilo de interrogatório.

Passei por diversos tipos de torturas. Tinha choque elétrico na vagina, no seio, na boca, no ouvido. Tinha palmatória, com uma madeira toda furada, de maneira que a pele vai soltando. Fui espancada por vários homens, além dele. Normalmente ficavam cinco a oito homens fazendo essas agressões.

Além de espancamento, colocavam arma na cabeça, dizendo que poderiam estourar meus miolos a qualquer momento.

Naquela primeira noite mesmo eu fui estuprada por um deles que era Lourival Gaeta, que tinha o codinome Mangabeira.

Ustra dava ordens e algumas vezes também torturava, quando não achava que os subordinados estavam sendo violentos o suficiente. Fazia isso gritando palavrões.

Um dia, Ustra foi buscar em casa meus dois filhos, Edson, de 4 anos, e Janaína, de 5 anos, e minha irmã, Criméia, grávida de oito meses. Ele espancou a minha irmã. E teve a desfaçatez de levar meus filhos para dentro de uma sala onde eu estava sendo torturada, nua, vomitada, evacuada.

Minha filha me olhou e perguntou: "Mãe, por que você ficou azul?". Eu estava toda roxa, pelos hematomas.

Fiquei ali de 28 de dezembro a 14 de fevereiro.

Ustra era uma pessoa extremamente perversa, tinha todas as características de fascista.

Anunciou a morte de meu amigo Danielli com alegria. Morreu nas mãos dele, de tanto ser torturado. 'Vai para a vanguarda popular celestial', ele falou.

Ustra é responsável por mais de 50 mortes. Não se trata de assunto pessoal, os outros concordavam com ele. É uma questão institucional.

Quando você está sendo torturada, quer morrer. Mas a força da vida é grande. Pensava que tinha que sobreviver para contar ao mundo o que acontecia ali.

Quando saí, não tive tempo de fazer psicanálise, tive que procurar emprego, lutar para recuperar a guarda de meus filhos, que Ustra tirou.

Meus filhos, sim, ficaram dilacerados e tiveram que fazer muita psicoterapia.

A tortura é uma ferida que não cicatriza na gente. E às vezes sangra".

"Os choques eram nas mãos, nos dedos, nas orelhas"

Gilberto Natalini (hoje com 71 anos) estava no terceiro ano de medicina, se definia como "contra o governo", mas não era ligado a nenhuma organização. Se colocava, inclusive, contra a luta armada. Por ter vendido o jornal de um grupo da luta armada, foi preso em agosto de 1972.

"Fui levado para o DOI-Codi e o próprio Ustra me interrogou. No início, foi violência psíquica. Ele ficava com uma luz fortíssima em cima de mim, gritando, vociferando.

Alguns dias depois, já comecei a apanhar. Eles batiam, davam socos, tapas, choque no corpo, na orelha. Eu sem roupa.

Em uma noite, o próprio Ustra me colocou descalço em cima de duas latas grandes. Jogou água no chão e ligou os fios elétricos, para dar choques. Além disso, me batia com um cipó, que usava como chicote. A sala estava cheia de agentes e ele me usava como uma espécie de cobaia.

Os choques eram nas mãos, nos dedos, nas orelhas. Fiquei um mês com sangramento, porque eles machucaram meus ouvidos com choques elétricos. Acabei ficando com 40% a menos de audição no ouvido esquerdo e 25% a menos no ouvido esquerdo, como sequela do que o Ustra fez comigo.

Eles queriam saber quem fazia os jornais do Molipo (Movimento de Libertação Popular) chegar às universidades. Ficamos lá quase dois meses apanhando por causa disso.

A dor era intensa, mas eu não falei.

Via o Ustra quase diariamente. Quando tinha interrogatório, na maioria das vezes ele entrava na sala, mas nem sempre sujava as mãos. Gritava, dava ordens, sempre muito bestial. Era um monstro.

Não era possível nem falar com ele. Não dava chance, era quase uma compulsão que ele tinha pela tortura.

Havia também uma estratégia que era vir um dos agentes e bater, bater, bater bastante. Dava choque. Aí saía esse e entrava outro, que se fingia de bonzinho, trazia um copo d'água e dizia 'Você tem que falar ou então você vai morrer'. Depois recomeçava a tortura.

Eu vi gente morrer lá. Aquele Benetazzo (Antonio Benetazzo, líder estudantil e artista plástico ítalo-brasileiro) foi preso. A gente ouvia ele gritar a noite inteirinha, urrava de dor. No dia seguinte, saiu arrastado, morto. Mataram ele lá dentro.

Meu pai, seu Urbano, morava na cidade de Macaé (RJ) e conseguiu o bilhete de um general, escrito a lápis, como permissão para vir a São Paulo me ver.

Ele era um homem pobre, que se esforçou para me botar na faculdade. Me deu uma bronca. Perguntou como fui me meter em uma encrenca daquelas, prejudicando a família.

Disse pra ele que ele não precisava ir à prisão me torturar ainda mais porque ali tinha gente paga com o imposto dele para fazer isso. Abri a boca e mostrei a mucosa da boca em carne viva, por causa dos choques. Mostrei os braços queimados e machucados. Meu pai teve um ataque de choro e foi preciso vir muitos homens para tirar ele dali, porque dizia que queria ficar preso no meu lugar.

Meu pai era um cara de direita. Depois de ver o que aconteceu comigo e o que era ser de direita, ele foi para a esquerda, virou brizolista.

Aqui fora, não fiz tratamento psicológico nenhum, administrei bem o trauma da tortura. Sabia que não tinha feito nada errado.

Esse sonho que eu tenho até hoje embalou a minha saúde mental".

"Ustra mandou colocar coleira no meu pescoço e falou para que me arrastassem"

Emilio Ivo Ulrich (hoje com 75 anos) atuava na VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), grupo que praticava guerrilha urbana, sob comando de Yoshitane Fujimori. Tinha 23 anos quando foi preso, no dia 20 de novembro de 1970.

"Fui preso no apartamento onde morava e levado para o DOI-Codi. Na chegada já mandaram que eu tirasse a roupa, lá no pátio. Subi imediatamente para uma sala de tortura. Fui recebido pelo Ustra e passei a ser torturado. Me perguntavam onde estava Yoshitane Fujimori.

Ustra ficava na porta, supervisionando. Ele conversou comigo, dizendo que era gaúcho como eu, que era de Santa Maria e eu de São Valério do Sul. Sabia que eu tinha feito o serviço militar e falou: 'Você não vai trair o Exército'.

Nos primeiros 15 dias fui muito torturado pelo Ustra e pelas outras equipes apenas com o objetivo de dizer onde estava o Fujimori. Não queriam saber se eu tinha assaltado banco, se eu tinha sequestrado alguém.

Eu ficava à disposição dos torturadores 24 horas. Algumas pessoas perguntam como eu aguentei. Eu tomei a decisão de não entregar Fujimori, porque se entregasse ele teria que entregar outros.

Há 15 anos processei o Estado brasileiro por danos morais, por conta das torturas, e ganhei. Nesse processo está comprovado que eu era torturado até três vezes por dia.

Comecei sendo torturado pela famosa maquininha do choque elétrico. Na sequência, foi palmatória e depois foi intensificando. Passei pelo pau de arara e pela cadeira do dragão, feita de metal, que possibilita você levar choque no corpo todo. Cada dia era um tipo de tortura.

O Ustra supervisionava especialmente a intensidade da tortura. Um dia, eu estava sendo torturado na cadeira do dragão e achou que os agentes estavam me dando moleza. Ele mandou que eu saísse dali, mas meus pés estavam em carne viva, por conta da palmatória. Não conseguia andar. Ustra mandou colocar uma coleira no meu pescoço e falou para que me arrastassem. Fui transformado em um cachorro.

Me mandou para o chuveiro para que me recuperasse. Quando achou que eu estava melhor, me mandou para o pau de arara. Era assim.

No dia 5 de dezembro, 15 dias após minha entrada ali, metralharam Fujimori. Ele foi levado para o DOI-Codi, chegou vivo. Eu fui levado para reconhecê-lo. Pouco depois, ele morreu.

A partir daí, passaram a exigir que eu entregasse um outro companheiro. Evidentemente, mantive meu comportamento. Não entreguei ninguém.

Várias vezes eu achei que não iria resistir.

Ustra foi o maior torturador que existiu no DOI-Codi. Até nos dias em que estava com a família dele passeando no pátio, deixava as filhas e ia lá torturar. Mas ele não se autoproclamou para aquele papel, o Exército Brasileiro formou aquele monstro.

As mulheres sofriam mais, já que eram estupradas. Os oficiais do Exército estupravam as companheiras e o Ustra lá, rindo.

Escrevi um livro sobre aqueles dias que tem o título 'A tortura não tem fim'. Porque a prisão acaba, mas a gente carrega a tortura até morrer.

Não sou um ex-torturado, eu sou um torturado. Passei muitos anos sendo torturado pelo Ustra todas as noites.


Chico Alves, colunista do UOL, 31/03/2023


O GOLPE DE 1964

Como identificar o fascismo? Uma introdução

Por toda parte, microfascismos. São produções metastáticas (na oncologia se diz:  tumores secundários que se desgarram do tumor primário) , e seguem o rumo/ritmo de destruições múltiplas. Da vida. Para além ou aquém há um fascismo maior (histórico) do Estado, dos partidos políticos, da grande política, etc,  que não existiria sem os  tumores subjetivos. Eles o fazem letal. O conceito de fascismo ( grande grito de "viva a morte") opera nas relações sociais como combustível de enunciados simples, inclusive e principalmente os do cotidiano.  Usa o universo tecnológico da internet como campo hiper-veloz onde são editadas suas palavras-de-ordem encharcadas de ódio. O que antes importa dizer é que tais discursos convivem com mil outros: religiosos, filosóficos, científicos, acadêmicos, jornalísticos, todos supostamente voltados ao Bem. Em suma, o fascismo como método trabalha nos mil disfarces da produção mental. Só assim ele "pega". 


A.M.

terça-feira, 28 de março de 2023

O CORPO INVISÍVEL - II

A existência do corpo invisível nos leva a uma opção ética. Ao contrário da ética idealista que reflete sobre a moral, teoriza sobre a moral, trabalhamos todo o tempo com a ética como linha pratica no aumento da força de existir ou na redução desta mesma força. Isso é Spinosa. Neste limiar da ação o pensamento, como força inumana, faz por dissolver personalidades estanques demasiado humanas em prol de linhas imperceptíveis do espirito. A ética do pensamento, ao contrário do que parece, é uma ética do corpo. E se este espirito é invisível por sua própria natureza, seguindo as "pegadas" de um Deus não hieraquizado, a ética traça linhas de potência misturadas às da impotência. O que irá "dissecar" e triar esse nó de opções  existenciais é a força de um espirito que na falta de uma palavra menos gasta, chama-se Deus. Isso autentica um nivelamento absoluto entre os humanos como força de existir no cruzamento opaco entre as linhas do infinito espaço/tempo. A ética , qualquer que seja ela, está atrelada a esses infinitos, pelo que não há uma ética pura nem tampouco uma ética única e verdadeira que abarque todas as demais. De novo, o corpo-espírito aprofunda-se no pensamento-Deus como o que não tem nome, forma, rosto ou identidade. E ao mesmo tempo está dentro de nós. Pensar (não refletir) é um exercício perigoso porque lida com terremotos da alma, com a loucura, e portanto está na beira de uma linha sem fim chamada Deus. Este não estrutura nem referencia nada, ao contrário, ele é já a Força dos processos de vida que se expressam como fluxo espiritual multiplicado e multiplicante pelos quatro cantos do mundo. Deus está no mundo, Deus é o mundo. Não pensar assim é afundar numa ética do eterno adiamento de uma revolução, a socialista?


A.M.

domingo, 26 de março de 2023

Eros


Do amor

sei pouco.

Dói 

é vermelho

e tem um enorme

sombrero 

azul:

me perdi 

entre

as suas tramas

e desapareci.

A quem souber 

como 

me encontrar 

ofereço recompensa.


-Lou Albergaria 

bicho de sete cabeças -Zeca Baleiro

SEM IGUAL

(...) O humor negro de Marx, a fonte do Capital, é sua fascinação por uma tal máquina: como isso pôde montar-se, sobre que fundo de descodificação e de desterritorialização, como isso funciona, cada vez mais descodificada, cada vez mais desterritorializada, como isso funciona tão solidamente através da axiomática, através da conjugação de fluxos, como isso produz a terrível classe única dos homens cinzentos que mantêm a máquina, como isso não corre o risco de morrer sozinho, mas, antes, o que faz e nos leva a morrer, suscitando até o fim investimentos de desejo que nem sequer passam por uma ideologia enganadora e subjetiva e que nos fazem gritar até o fim Viva o capital na sua realidade, na sua dissimulação objetiva! Nunca houve, a não ser na ideologia, capitalismo humano, liberal, paternal etc. O capital define-se por uma crueldade sem igual quando comparada com o sistema primitivo da crueldade, define-se por um terror sem igual quando comparado com regime despótico do terror. Os aumentos de salário, a melhoria do nível de vida são realidades, mas realidades que decorrem de tal ou qual axioma suplementar que o capitalismo é sempre capaz de acrescentar à sua axiomática em função de uma ampliação dos seus limites (façamos o New Deal, defendamos e reconheçamos sindicatos mais fortes, promovamos a participação, a classe única, venhamos a dar um passo em direção à Rússia que faz o mesmo em nossa direção etc.). Mas, na realidade ampliada que condiciona essas ilhotas, a exploração não pára de endurecer, a falta é arranjada da maneira mais hábil, as soluções finais do tipo “problema judeu” são preparadas muito minuciosamente, o Terceiro Mundo é organizado como parte integrante do capitalismo.

(...)

G. Deleuze e F. Guattari in O anti-édipo

TEMPOS DE AGORA

A "verdade" é uma mercadoria produzida em escalas maiores e/ou menores, a depender dos veículos utilizados para tal. Entre estes, as redes sociais figuram como produção incontrolável de crenças morais, políticas, científicas, religiosas, etc... O mundo gira em torno de informações/comunicações em velocidades que desfazem toda e qualquer possibilidade de crítica. Há uma produção acelerada de retardos mentais. Ontem é hoje que já é amanhã que tornou-se ontem como bolha de sabão. As certezas metafísicas (quem sou?) são substituídas por fluxos eletrônicos e neurocabos conectados às imagens de uma imensa tela subjetiva. Sob tais condições, não há mais como dizer eu, pessoa, consciência, enunciar boas intenções humanísticas. Afinal, estamos todos imersos na mesma sopa mundial, cada vez mais unidos, cada vez mais beligerantes uns com os outros. Nem mais o apocalipse inspira tanto terror...


A.M.

FERNANDO VIGNOLI


 

belzebu

anda de bandana

pra esconder o chifre

veste até batina

e faz dobradinha

com o satanás

:

todo puritano

é poluído


líria porto

Rehearsal Out of Breath - Johan Inger (NDT 2 | Climb the sky)

sábado, 25 de março de 2023

O que é técnico em saúde mental?


Não existe uma Faculdade do “técnico em saúde mental”. É que não há  identidade profissional... Como reconhecê-lo?

A formação do técnico em saúde mental se dá no Encontro com o paciente. Não no encontro com a pessoa do paciente, mas no encontro com a loucura do paciente. Isso faz toda a diferença.

Mais: no encontro com a loucura dele mesmo, o técnico.

Se há um Encontro, pois, é com a loucura. 

É bom lembrar que “loucura” não é um conceito psiquiátrico. A psiquiatria (historicamente) humilhou e escorraçou a loucura.

Tentemos situar (apesar das dificuldades) esse conceito.

Loucura é uma realidade sem nome, dissolução do nome, frase desconexa, sem sentido, afeto estranho, conduta rota, mundo fora dos eixos.

Isso e muito mais, é loucura.

Curioso como a palavra pode ter significados opostos: 1- “Você não foi à festa. Perdeu. Foi uma loucura”. 2-  “Meu amigo, não faça isso. É loucura.” No primeiro caso, “alegria, prazer”. No segundo,  “ algo ruim, talvez suicídio.”

Entre os opostos, o nosso eguinho oscila como um pêndulo. Quem, pelo menos no pensamento e/ou no sonho, não experimentou loucuras?

O técnico em saúde mental só aprende a trabalhar lidando com isso (em si e nos outros), que no fundo é o mesmo: loucura do mundo. 

Qualquer um pode entrar nessa “vibração louca sem estar louco”. É  condição ética para escutar e cuidar do paciente. E nem é preciso que seja um técnico de nível superior. Às vezes é até melhor que não. Nesse campo de ação prática tão escorregadio, só sensibilidades finas interessam. 


A.M.

Pedro Cardoso implode debate na CNN, acaba com Moro e Bolsonaro e critic...

sexta-feira, 24 de março de 2023

NENHUMA ARTE - IV


Uma vida inteira passada

dentro dos confins de um corpo

junto ao qual vem atrelada

a consciência, peso morto

que acusa o golpe sofrido

e cochicha ao pé do ouvido

depois que o fato se deu:

nada que te pertence é teu.


Único antídoto do nada

entre as peçonhas da vida,

coisa por sorte encontrada

e por desgraça perdida,

amor lega, em sua ausência,

um lembrete à consciência

(se ela por acaso esqueceu):

nada que te pertence é teu.


Princípio? Tudo é contingente.

Fim? Toda luz termina em breu.

Sentido? Quem quiser que invente,

quem não quiser se contente

com este presente besta

que, quando acabou a festa,

a vida avara lhe deu:

nada que te pertence é teu.


Paulo Henriques Britto

terça-feira, 21 de março de 2023

FAZER A DIFERENÇA 

A diferença é um conceito filosófico discutido em profundidade em duas grandes obras do pensador Gilles Deleuze. Trata-se de Diferença e Repetição (1968) e Lógica do Sentido (1969). Tal densidade conceitual pode (e deve) ser usada por não-filósofos para o exercício de uma atitude ética essencialmente prática. Quer dizer: o mundo não é uma substância mas torna-se problemático (oco) por sua própria natureza e não por uma instância que lhe seria superior (a razão, por exemplo). Assim, tudo é imanência, tudo está na terra. O corpo da terra se faz na arte dos encontros pessoais e impessoais. Aí reside a diferença como linha curva, incerta, perigosa e delicadamente potente. Não exige nem possui explicações. Para experimentá-la basta seguir o fluxo do devir (o conteúdo do desejo) em suas infinitas possibilidades de conexão com outros devires. É com a criança-em-nós e com o tempo não-cronológico que a diferença estabelece seu traço  irreversível. Mas não é fácil. Sem que se perceba, as instituições sociais administram o medo no interior de nós mesmos, naturalizando o horror, racionalizando a existência.


A.M.

quinta-feira, 16 de março de 2023

FRASES DE OTTO LARA RESENDE


(01) Há em mim um velho que não sou eu.


(02) A Europa é uma burrice aparelhada de museus.


(03) Tenho para mim que sei, como todos os brasileiros, os três primeiros minutos de qualquer assunto.


(04) Abraço e punhalada a gente só dá em quem está perto.


(05) Como pai, me considero, modéstia à parte, uma mãe exemplar.


(06) Sou um falante que ama o silêncio.


(07) A tocaia é a grande contribuição de Minas à cultura universal.


(08) O mineiro só é solidário no câncer.


(09) Todo mundo que cruzou comigo, sem precisar parar, está incorporado ao meu destino.


(10) Deus é humorista.


(11) Ultimamente, passaram-se muitos anos.


(12) Devo ter sido o único mineiro que deixou de ser diretor de banco.


(13) Sou um sobrevivente sob os escombros de valores mortos.


(14) Texto de jornal é estação de trem depois que o trem passou. Deixou de ter interesse.


(15) A morte é noturna. À noite, todos os doentes agonizam.


(16) Leio muito à noite. Só não sou inteiramente uma besta porque sofro de insônia.


(17) Sou autor de muitos originais e de nenhuma originalidade.


(18) O mineiro seria um cara que não dá passo em falso, é cauteloso. Em Minas Gerais não se diz cautela, se diz pré-cautela...


(19) A morte é, de tudo na vida, a única coisa absolutamente insubornável.


(20) Escrever é de amargar.

domingo, 12 de março de 2023

À PROCURA  DA  DIFERENÇA

Em “saúde mental” e "educação", conceitos que remetem ao Fora, ou seja, ao funcionamento produtivo e múltiplo das sociedades e ao pensamento sem imagem (não representativo), a diferença se faz e se tece por linhas invisíveis. Por isso segue um percurso tortuoso e arriscado onde a poesia se torna a expressão mais intensa do seu corpo supliciado e sempre alegre. Não é possível, pois, identificá-la ("veja, a diferença!") nem assimilá-la a formas sociais estáveis, a consciências bem intencionadas ou à percepções grosseiras da realidade em torno. Ela não tem identidade, organização visível, rosto único, mas conteúdos formigando por toda parte, multiplicidades em ato. Isso contraria e assusta os guardas perfilados da razão universal e os moralistas de plantão locupletados em escaninhos institucionais: escola, universidade, família, religião, polícia, estado, tantas linhas sedentárias... Falamos de outras coisas, outros universos, sensibilidades desconhecidas, inomináveis, a serem experimentadas. Assim, para além da saúde mental e da educação que lhe são correlatas enquanto experiências coletivas, a diferença pode ser encontrada no mundo do abstrato, mundo sem forma e real, movido por devires incontroláveis. Aqui mesmo na Terra.

A.M.

EMIL NOLDE


 

sábado, 11 de março de 2023

MATÉRIA DA POESIA


1

Todas as coisas cujos valores podem ser

disputados no cuspe à distância

servem para poesia


O homem que possui um pente

e uma árvore

serve para poesia

(...)


O que é bom para o lixo é bom para a poesia


Importante sobremaneira é a palavra repositório;

a palavra repositório eu conheço bem:

tem muitas repercussões

como um algibe entupido de silêncio

sabe a destroços


As coisas jogadas fora

têm grande importância

— como um homem jogado fora


Aliás é também objeto de poesia

saber qual o período médio

que um homem jogado fora

pode permanecer na terra sem nascerem

em sua boca as raízes da escória


As coisas sem importância são bens de poesia


Pois é assim que um chevrolé gosmento chega

ao poema, e as andorinhas de junho.



Manoel de Barros

Saying goodbye to NDT 2 dancers after season 2021-2022

terça-feira, 7 de março de 2023

HISTERIA E DEPRESSÃO

Nos dias atuais, a depressão tomou o lugar da histeria na expressividade de um desejo atraiçoado. A "vantagem" terapêutica (da depressão)é que há os psicofármacos para codificá-la cientificamente. Outrora, em  tempos freudianos, a  histeria  traçava  linhas desejantes arriscadas e trágicas,  nem por isso negadas, ao contrário . Hoje, o  mega-universo sombrio do ressentimento fez do viver uma ordem intoxicada, intoxicante e um ideal ascético vegetando às custas de comprimidos salvacionistas. A religião comparece com o seu aval mortífero.


A.M.

O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.

Há que se dar um gosto incasto aos termos.

Haver com eles um relacionamento voluptuoso.

Talvez corrompê-los até a quimera.

Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.

Não existir mais reis nem regências.

Uma certa liberdade com a luxúria convém.


Manoel de Barros