sábado, 27 de maio de 2023

A borra


Prefiro as palavras obscuras que moram nos

fundos de uma cozinha — tipo borra, latas, cisco

Do que as palavras que moram nos sodalícios —

tipo excelência, conspícuo, majestade.

Também os meus alter egos são todos borra,

ciscos, pobres-diabos

Que poderiam morar nos fundos de uma cozinha

— tipo Bola Sete, Mário Pega Sapo, Maria Pelego

Preto etc.

Todos bêbedos ou bocós.

E todos condizentes com andrajos.

Um dia alguém me sugeriu que adotasse um

alter ego respeitável — tipo um príncipe, um

almirante, um senador.

Eu perguntei:

Mas quem ficará com os meus abismos se os

pobres-diabos não ficarem?


Manoel de Barros

domingo, 14 de maio de 2023

Rehearsal Ten Duets on a Theme of Rescue - Crystal Pite (NDT 2 | Climb t...

CAPTAR UM DELÍRIO

Como saber que alguém delira? Há linhas semiológicas que ajudam. Assim, em primeiro lugar, contextualizar o exame: onde? quando? como? por que? para que? etc. Em segundo, adotar uma atitude expectante de falar pouco, observar muito (com sutileza) e escutar mais. Em terceiro, seguir o fluxo sintático da fala do outro, verificando até onde a semântica chega; ou seja, o que significa dizer tudo isso? Em quarto, verificar onde os afetos (todos expressos no corpo) se inserem nos enunciados. Há polaridades: o dizer e o dito, o ato e o enunciado. Pergunta: o comportamento expressa afetos ou estes estão "encobertos pelo pensamento?". Em suma, mas não por fim, o pensamento ( invisível e veloz como só ele) é a chave oculta para começar a fazer aparecer um ou mais delírios. E é de bom alvitre saber que talvez estes delírios nunca se mostrem, permanecendo ocultos nas dobras da alma de um pensamento louco sem ser louco.


A.M. 

segunda-feira, 8 de maio de 2023


ESTUDO CLÍNICO SOBRE OS DELÍRIOS - I

É essencial considerar que o delírio, como sintoma psicopatológico, aparece em síndromes  que devem ser clinicamente diferenciadas. O objetivo do psiquiatra é o de obter dados para uma psicofarmacoterapia adequada (ou outra forma terapêutica),  que sirva ao paciente como alívio dos sintomas e não como estratégia de controle da própria psiquiatria e suas agências psi. As principais síndromes são (sem ordem de importância): 1-Histeria dissociativa; 2- Depressão grave; 3- Síndrome maníaca; 4-Transtorno do humor, oscilando entre a mania e a depressão; 5- Retardo mental; 6- Síndrome orgânica de etiologias múltiplas ( delirium) ; 7-Síndrome demencial; 8-Síndrome orgânica pós TCE (traumatismo crâneo-encefálico) ; 9-Síndrome por uso contínuo de substância psicoativa; 10-Síndrome de abstinência aguda (por ex., álcool, delirium tremens); 11- Intoxicação aguda por substância lícita ou ilícita; 10-Transtorno da personalidade do tipo borderline; 12-Psicose esquizofrênica; 13-Psicose paranóica, outrora chamada pela escola francesa de "delírio sistematizado crônico"; 14 - Quadro de delírio não classificável entre os anteriores. Como se nota, é largo o espectro clínico da nosologia psiquiátrica que pode se expressar como delírio. É um sintoma que  incomoda o meio em torno ( as instituições ) porque tende a produzir condutas socialmente inadequadas e quebrar a lógica racional da consciência. 

A.M. 

sexta-feira, 5 de maio de 2023

COMO AGIR?

Na psicopatologia clínica, o delírio se expressa de múltiplas formas. A intervenção da psiquiatria (técnica) sobre o dito delirante vai depender do contexto institucional. De todo modo, um paciente sob o risco de sofrer e/ou causar danos em torno implica numa decisão operacional delicada. Outro paciente, ancorado num sistema delirante em busca de satisfações místicas, por exemplo, demanda outro tipo de intervenção, ou mesmo a não-intervenção. E outros, muitos outros, com mil linhas de diferença subjetiva, escapam às padronizações simplistas da psiquiatria biológica. Então, na psicopatologia do delírio, a "hora da verdade" se insinua como o momento agudo de fazer algo pelo paciente, seja para além dos devaneios românticos (" a paixão do delírio"), seja fora dos eixos da violência manicomial ("prendam o delirante!").  É sempre uma tarefa a de pensar-pensando, principalmente quando alguém delira e "não sabe" que delira. 


A.M

segunda-feira, 1 de maio de 2023

O que é delírio?

Delírio é um dos principais sintomas em psicopatologia clínica. Numa visão biomédica, deve ser  eliminado,  como, por exemplo, se faz com uma dor de cabeça.

Ou ainda, segundo essa visão, remete a uma causa, a qual sendo eliminada, cessa o efeito (sintoma). Relação linear causa-efeito. A face tosca da "inteligência psiquiátrica."

No âmbito dessa relação linear "causa-efeito" o conceito de delírio sofre um desvio. Não conduz ao essencial que é cuidar do paciente. Tende ao controle e à violência maquiada como terapêutica. Qual?

Segundo a etmologia da palavra , delirar é "sair dos trilhos".

Ele é uma vivência (ou seja, prenhe de afeto) em que o juízo da realidade (de si e do mundo) está alterado. Mais profundamente significa dizer que uma outra realidade foi inventada. 

O que está em jogo então é a verdade. Pergunta-se: o que ele está a dizer é verdade?

A questão da verdade abrange a todos nós.A verdade vem de fora. Desde muito cedo os pais enfiam verdades na mente dos filhos. Que acreditam, claro, sem questionar. A própria identidade ( quem sou?) é uma  verdade-crença. 

O que conduz à busca de ajuda clínica? Há várias respostas( alterações na conduta, perda da autonomia social, incapacidade laboral, etc). Contudo, é bom lembrar que nem sempre o delirante quer ajuda. Isso é fácil de verificar.

De todo modo, o delírio em saúde mental remete a várias causas e formas clínicas. Os quadros mais graves são os que o paciente "nem mais delira" já que ele é o próprio delírio. São as psicoses graves por vezes chamadas de esquizofrenias.

A rigor, qualquer patologia mental pode apresentar delírio. Ou mesmo qualquer vivência mental não patológica ( desilusão amorosa, a morte de alguém querido, um trauma existencial, uma grande mudança, etc) pode  gerar um delirio.

O capítulo sobre delírio em psicopatologia é muito extenso. Importa destacar o aspecto vivencial já que o põe como afeto, aproximando-o de experiências múltiplas: mística, esotérica, artística, sexual, amorosa, espiritual, poética, cósmica, política,entre outras.

Do ponto de vista de uma forma subjetiva (existencial) o delírio preenche uma condição de sentido. Ou seja, ele é sobretudo "produção de sentido" , daí inscrito e expresso como linguagem.

Concluindo, o delírio está em toda a parte onde há alguma crença. Ele compõe a realidade  histórico-cultural do mundo  e nem por isso e nem sempre risperidona e haldol lhes são prescritos. Talvez estes sirvam a delirantes cadastrados.


A.M


Obs. texto revisado e modificado em 01/05/2023