domingo, 30 de julho de 2023

PODER ASSASSINO

O desejo é fluxo que se conecta com outro fluxo, com outros fluxos, e assim por diante, ao infinito.Ele é sempre agenciado (compõe-se de linhas múltiplas) mesmo que disso não se saiba. Quando é interrompido (impotência em desejar) dá-se uma cristalização, um endurecimento das suas linhas de funcionamento vital, em prol do que chamamos de poder. O poder assassina. Ele é regido e mantido pelo universo da representação. Ou seja, funciona como identidade da consciência e do eu, o que, em termos do campo social, chama-se de senso comum e bom senso. Estas categorias são formas sociais (instituições) operando na perpetuação do par Eu-Consciência. No mundo ocidental cristão, os modos de subjetivação tendem a girar em torno desse a priori do pensamento. Basta analisar a política vigente e suas formações metastáticas. Ora, se, como diz Deleuze, o senso comum identifica e reconhece, enquanto o bom senso prevê, não haverá lugar para a criação, para o novo, para uma outra política, exceto se trabalharmos com os paradoxos da linguagem. É aí onde a Poesia, a Arte e a Loucura se expressam e se afirmam como verdades móveis para uma nova terra.


A.M.

O Apanhador De Desperdícios | Poema de Manoel de Barros com narração de ...

Ética

DA SERVIDÃO À LIBERDADE

"Quem é espinosista? Às vezes, certamente, aquele que trabalha 'sobre' Espinosa, sobre os conceitos de Espinosa, à condição de isso ser feito com bastante reconhecimento e admiração. Mas também aquele que, não-filósofo, recebe de Espinosa um afeto, um conjunto de afetos, uma determinação cinética, uma pulsão, e faz assim de Espinosa um encontro e um amor."

Deleuze


Sabedoria Geométrica

Com certeza, a Ética, escrita por Espinosa, é uma das produções mais importantes da filosofia moderna! Contudo, escrita em latim e de maneira geométrica, é surpreendentemente difícil. Isso significa que axiomas, definições, demonstrações, corolários, proposições e escólios são usados na explicação. Sim, filosofia pensada e exposta com a linguagem da matemática. Talvez por isso tantos tropecem e desistam logo nas primeiras páginas.

Alguns diriam que a Ética não é para ser lida, mas estudada. Entretanto, outros dizem que ela é a encarnação da potência pura do pensamento prático, quente como o fogo! Deleuze, por exemplo, a considera o maior livro já escrito! Mas realmente, não é fácil passar por entre axiomas, definições e proposições sem algumas dificuldades. Por isso criamos esta série, e com ela, esperamos esclarecer um pouco mais o árduo percurso pela Ética.


(Escolhemos as obras de Nathalie Manquet para ilustrar nossa série)

OS PRIMEIROS PASSOS

Com nossos textos, esperamos pegar o leitor pela mão e guiá-lo para que as trilhas fechadas se tornem uma agradável caminhada. Na Ética, este caminho acelera passo a passo, passando pelos primeiros capítulos até chegar a velocidades surpreendentemente descomunais na quinta parte. Decerto, este livro é uma arma de guerra contra toda servidão, superstição, medo, isolamento, tristeza e niilismo.

Num primeiro momento, seguimos o caminho que começa em Deus e o conhecimento de sua natureza, em seguida passamos pela concatenação e a relação entre mente e corpo, tudo para finalmente deixar a servidão e alcançar a liberdade. O conhecimento dos afetos é inegavelmente a parte essencial deste percurso. E teremos como aliado a força do pensamento para regulá-los e moderá-los, buscando atingir uma perfeição cada vez maior.

"Devemos, pois, nos dedicar, sobretudo, à tarefa de conhecer, tanto quanto possível, clara e distintamente, cada afeto, para que a mente seja, assim, determinada, em virtude do afeto, a pensar aquelas coisas que percebe clara e distintamente e nas quais encontra a máxima satisfação”

Espinosa, Ética V, prop 4, corolário

A  ÉTICA NÃO É UM GUIA MORAL

Contudo, é sempre bom lembrar, o livro de Espinosa não é uma bíblia, muito menos um manual do cidadão de bem, e com certeza está muito longe de ser um livro de autoajuda. Em suma: A Ética é o livro dos homens livres onde a salvação transcendente torna-se uma salvação neste mundo, criando para si um novo modo de existir e se relacionar.

"Quem tenta regular seus afetos e apetites exclusivamente por amor à liberdade, se esforçará, tanto quanto puder, por conhecer as virtudes e as suas causas, e por encher o ânimo do gáudio que nasce do verdadeiro conhecimento delas e não, absolutamente, por considerar os defeitos dos homens, nem por humilhá-los, nem por se alegrar com uma falsa aparência de liberdade”

 Espinosa, Ética V, proposição 10, escólio


Extraído do site "Razão inadequada", visitado em 30/07/2023

sexta-feira, 28 de julho de 2023

EMIL NOLDE

 


O FUTEBOL, SEMPRE

O futebol é trágico. Trágico porque alegre, imprevisível, inexplicável, não se dobra ao modelo quantitativo do seu "acontecer", está além e aquém dos comentários rasteiros de apresentadores pífios, caçadores de audiências imbecilizantes, funciona na ambiguidade do futuro (quem vai vencer?), contém uma estética que precede toda racionalidade orgulhosa de si, trabalha com 90 minutos irreversíveis, joga com a sorte, idolatra o acaso, investe no puro talento, contempla e considera a competência técnica, flerta e se embriaga de arte, é arte, é arte, pura arte, completamente enlouquecedor para torcedores amantes da bola na trave, do verde-gramado, do contra-ataque mortífero, desdenha dos teóricos de carteirinha do jornalismo chifrin, sobrevive aos desmandos e corrupções dos poderes vigentes, surpreende nos minutos de acréscimos até os mais desconsolados e angustiados ou esperançosos torcedores, enfim, por isso e muito mais, o futebol é uma heresia santa, um dilúvio envolvente e enxuto, delírio de multidões, catarse sem igual,  orgasmo público ou apenas um gol sem preço no mercado (não existe gol feio), milhares deles, mesmo que não aconteçam, ainda que sonhados, o futebol é o esporte para além do esporte, uma metafísica encarnada na magia do drible, o gol de cabeça...um amor de criança.

A.M.

CAIR FORA

Eu podia ver a estrada à minha frente. Eu era pobre e ficaria pobre. Mas eu não queria particularmente dinheiro. Eu sequer sabia o que desejava. Sim, eu sabia. Queria alguma lugar para me esconder. Um lugar onde ninguém tivesse que fazer nada. O pensamento de ser alguém na vida não apenas me apavorava como me deixava enojado. Pensar em ser um advogado, um professor ou um engenheiro, qualquer coisa desse tipo, parecia-me impossível. Casar, ter filhos, ficar preso a uma estrutura familiar. Ir e retornar de um local de trabalho todos os dias. Era impossível. Fazer coisas, coisa simples, participar de piqueniques em famílias, festas de Natal, 4 de Julho, Dia do Trabalhador, Dia das Mães...afinal, é pra isso que nasce um homem, para enfrentar essas coisas até o dia de sua morte? Preferia ser um lavador de pratos, voltar para a solidão de um cubículo e beber até dormir.


Charles Bukowski

A direita radical pode voltar ao poder no berço do nazismo?

quarta-feira, 26 de julho de 2023

SIGNOS DO AMOR

(...) Apaixonar-se é individualizar alguém pelos signos que traz consigo ou emite. É tornar-se sensível a esses signos, aprendê-los  (como a lenta individualização de Albertina no grupo das jovens). É possível que a amizade se nutra de observação e de conversa, mas o amor nasce e se alimenta de interpretação silenciosa. O ser amado aparece como um signo, uma "alma": exprime um mundo possível, desconhecido de nós. O amado implica, envolve, aprisiona um mundo, que é preciso decifrar, isto é, interpretar. Trata-se mesmo de uma pluralidade de mundos; o pluralismo do amor não diz respeito apenas à multiplicidade dos seres amados, mas também à multiplicidade das almas ou dos mundos contidos em cada um deles. Amar é procurar explicar, desenvolver esses mundos desconhecidos que permanecem envolvidos no amado. É por essa razão que é tão comum nos apaixonarmos por mulheres que não são do nosso "mundo", nem mesmo do nosso tipo. Por isso, também as mulheres amadas estão muitas vezes ligadas a paisagens que conhecemos tanto a ponto de desejarmos vê-las  refletidas nos olhos de uma mulher, mas que se refletem, então, de um ponto de vista tão misterioso que constituem para nós como que países inacessíveis, desconhecidos: Albertina envolve, incorpora, amalgama "a praia e a impetuosidade das ondas". Como poderíamos ter acesso a uma paisagem que não é mais aquela que vemos, mas, ao contrário, aquela em que somos vistos? "Se me vira, que lhe poderia eu significar? Do seio de que universo me distinguia ela?"

(...)

Gilles Deleuze in Proust e os signos

domingo, 23 de julho de 2023

NEUROTUDO

A neuromania é um dispositivo institucional típico do Capitalismo Mundial Integrado (CMI cf F. Guattari). Antes de ser uma técnica, trata-se de um modo de subjetivação inconsciente que põe o cérebro como órgão responsável pelos destinos da humanidade. É uma armadilha e também uma neuropolítica, uma neuropolícia, uma neurofamília, uma neuroescola, uma neuromídia, etc. Assim vai o pensamento burguês rastreando e capturando tudo o que lhe foge ao controle. Não é um mal em si (até porque não há mal-em-si) mas apenas um dispositivo do capital pronto para o abate das almas, criaturas solitárias que de algum modo resistem ao assédio mortífero do capital via sedução do consumo. Portanto, o assunto "neuromania" compõe o cardápio das ações políticas do capitalismo no meio científico como sendo uma verdade inquestionável. A mídia, na condição de agente de imbecilização das massas, opera (sem que se perceba percebendo) como função mental indispensável, ao tamponar o buraco negro da subjetividade dos dias que correm. Alucinados e delirantes.


A.M.

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Como identificar o fascismo? Uma introdução

Antes de tudo é preciso partir da análise dos microfascismos. São produções metastáticas (na oncologia se diz:  tumores secundários se desgarram do tumor primário) ,  que seguem o rumo/ritmo de destruições múltiplas. Da vida. Há  um fascismo maior (histórico) do Estado, dos partidos políticos, da grande política, etc,  que não existiria sem os  tumores subjetivos. Eles o fazem letal. O conceito de fascismo ( grande grito de "viva a morte") opera nas relações sociais como combustível de enunciados simples, inclusive os do cotidiano.  Usa o universo tecnológico da internet como campo hiper-veloz onde são editadas suas palavras-de-ordem. O que antes importa registrar é que tais discursos convivem com mil outros discursos: religiosos, filosóficos, científicos, jornalísticos, todos voltados ao Bem. Tudo cristão. Em suma, o fascismo como método trabalha nos disfarces da produção mental. Só assim ele "pega". 


A.M.

terça-feira, 18 de julho de 2023

Tenho vontade de voltar pro útero. Qualquer útero.


Woody Allen

RACISMO ÀS CLARAS

RELIGIÃO?

Minha opinião acerca da religião é a mesma que a de Lucrécio. Considero-a como uma doença nascida do  medo e como uma fonte de indizível sofrimento para a raça humana. Não posso, porém, negar que ela trouxe certas contribuições à civilização. Ajudou, nos primeiros tempos, a fixar o calendário, e levou os sacerdotes egípcios a registrar os eclipses com tal cuidado que, com o tempo, foram capazes de predizê-los. Estou pronto a reconhecer esses dois serviços, mas não tenho conhecimento de quaisquer outros 

(...)


Bertrand Russel in Trouxe a religião contribuições úteis à  civilização?

João Donato - MPB Especial (1975)

domingo, 16 de julho de 2023

Oh, dia, levanta! Os átomos dançam,

As almas, loucas de êxtase, dançam.

A abóbada celeste, por causa deste Ser, dança,

Ao ouvido te direi aonde leva sua dança.


Rumi

ORQUÍDEAS ETERNAS


 

ISSO NÃO PÁRA

É uma triste coincidência que a agressão ao ministro Alexandre de Moraes e seus familiares por parte de um empresário bolsonarista, no aeroporto de Roma, tenha ocorrido quando João Cézar de Castro Rocha está lançando o livro "Bolsonarismo - da guerra cultural ao terrorismo doméstico" (Autêntica). Professor de literatura comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Castro Rocha se dedica há anos ao estudo das estratégias da extrema direita brasileira e na obra atual constata uma perigosa transformação. A agressividade dos bolsonaristas está passando do discurso para o enfrentamento físico

"O bolsonarismo passou do limite da possibilidade de convivência na pólis", afirmou o professor à coluna. "Ou nós reagimos agora ou as consequências para o futuro serão funestas".

A tese que o pesquisador defende no livro é que a extrema direita liderada por Jair Bolsonaro deixou de lado a narrativa da guerra cultural e passou ao confronto real, que acontece de várias formas. Como, por exemplo, a agressão ao ministro Moraes. É o que chama de terrorismo doméstico.

(...)

Chico Alves, UOL,  16/07/2023, 4:00 hs



A Felicidade era um lugar estranho,

lá, os meninos, após a chuva

comiam o arco-íris e saiam coloridos

pela rua Jogando futebol.

O futuro era decidido no par-ou-ímpar

e o passado simplesmente não existia.


Sérgio Vaz

sábado, 15 de julho de 2023

FÉLIX GUATTARI


 

CAPITALISMO E ESQUIZOFRENIA - 1

A produção capitalística, em tempos atuais, se dá em escala planetária: a devastação da Terra. Por isso Félix Guattari criou o conceito de Capitalismo Mundial Integrado. O CMI significa a produção subjetiva e portanto material, ou o contrário, a produção material e portanto subjetiva. "Só existe o desejo e o social". Neste sentido, infere-se que o sistema capitalístico se afirmou e se afirma em tão amplas proporções por que domina e controla os indivíduos por dentro, produzindo subjetividades robotizadas (modos de pensar, sentir, perceber e agir) que giram em torno do valor-dinheiro como abstração concretizada em bens de consumo. A servidão imunda, consentida e querida: consome-se todo tipo de produto, incluindo sentimentos, valores, religiões, virtudes morais, notícias, doenças, conhecimentos, assistencialismos, espiritualidades, etc. Ora, em tal universo, o sentido é produzido sem cessar como o mundo mais desenvolvido, mais avançado já alcançado pelo Homem, o que é atestado pela tecnologia científica: olha aí a Inteligência Artificial. Sob tais condições, torna-se difícil pensar diferente, ou apenas pensar! Porque não há mais "um fora" do capitalismo. O sistema abarcou tudo, tomou tudo, invadiu tudo até as estruturas do inconsciente. Estamos de fato num mundo delirante (Marx destaca o "fetichismo miraculante" da mercadoria no início de "O Capital"). A Crença é para todos, atravessa países, cidades, continentes: uma busca enlouquecida pela felicidade no exercício diário do consumo faz do homem moderno uma engrenagem plástica (só há uma cultura...) da máquina do capital. Como resistir a tal insânia normatizadora, religião do capital,  verdade revelada?



A.M.

Não adianta, não sei explicar. As palavras traem o que a gente sente.


Caio Fernando Abreu

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Diana Krall - East Of The Sun (West Of The Moon) - 8/15/1999 - Newport J...

O QUE NOS AMEAÇA


Para você, o acoplamento entre luta política e criação dá uma capacidade nova que busca a alegria. É isso ser “de esquerda”?

I.S. Segundo Gilles Deleuze, existe uma diferença de natureza entre esquerda e direita. A esquerda, de maneira vital, tem necessidade de que as pessoas pensem. Isso não quer dizer que elas façam teoria, mas que tomem em suas mãos, coletivamente, os assuntos que lhes concernem. No século XIX, é o que fez a classe operária quando criou as mutuais, as bolsas de trabalho. Já a direita tem necessidade de que as pessoas aceitem a ordem estabelecida, pouco importando qual seja, contanto que a respeitem. Os dispositivos que produzem a igualdade, portanto, são “de esquerda”. Às vezes, o que eles exigem é duro, mas aprender conjuntamente a estar à altura do problema posto, a não submetê-lo a generalidades, é um acontecimento criador de alegria. Quando vozes até então sufocadas e desqualificadas, reduzidas a resmungos, são transformadas em saberes articulados, o problema é mais bem colocado. Alianças inesperadas devêm possíveis. O que nos ameaça é a divisão e o ressentimento: a alegria é o contrário do ressentimento, e é ela que pode ser comunicada a outros. Seria preciso fazer com que ela fosse sentida em relatos que mostrassem como vieram à tona catálises, encadeamentos e aberturas de imaginação, quando tudo parecia bloqueado: “Se ali é possível, então aqui também pode ser!”


Isabelle Stengers, entrevista ao jornal parisiense L´Humanité, 15 de julho de 2013 (trecho)

domingo, 9 de julho de 2023

O que é psiquiatria?  parte 2


Uma especialidade diferente essa.

Tudo porque não apenas é especialidade médica, mas instituição.

Do ponto de vista epistemológico, ela está plugada às ciências biológicas e às ciências humanas.  No primeiro caso, o organismo físico-químico. No segundo, a realidade social. Trata a realidade social como organismo físico-químico.  Trocou as bolas.

É uma especialidade ancorada em pilares teóricos de naturezas diferentes. Vive num paradoxo.

Sua condição de ser uma especialidade pode ser ampliada para a de instituição social. É que a pesquisa lida com um universo simbólico no qual a própria especialidade está inserida. 

Tal condição “institucional” normalmente é ignorada pelos psiquiatras e similares. Muito difícil que fosse diferente.

Como instituição ela codifica as pessoas. Daí, estas não precisam ser psiquiatras para pensar, sentir e agir como um. 

Atrelada à visão biomédica do comportamento humano em suas alterações (o chamado transtorno) a psiquiatria estanca numa reflexão teórica rasa, onde não consegue sequer definir com precisão o que é uma psicose.

Em essência, esse é o fundo da  "sua"epistemologia. Um conhecimento atolado na moral.

“Loucura”, conceito não-médico, converte-se ao de “transtorno mental”, termo naturalizado como distúrbio da mente igual à distúrbio do cérebro. A equação conceitual cérebro=mente estabelece, então, a partir da década do cérebro, a última do século XX , fortes razões científicas para um “admirável cérebro novo” que toma o lugar da psicopatologia.

Quanto ao aniquilamento desta última, há testemunhas: os pacientes.

Ai, então, a neurociência se fez impecável. Uma psiquiatria atual, acolhida como ciência do cérebro e surda à fala do sofrimento mental, conquistou o mercado.

No entanto, o cérebro mente.


A.M.

Força Maior -Filme - Trailler - 2014

CLÍNICA E TECNOLOGIA DA IMAGEM - IV

Como F. Guattari previu, vivemos tempos esquizofrênicos. Isso faz retirar do conceito de Capitalismo Mundial Integrado (Guattari, 1982) elementos teóricos contingentes e necessários a uma análise institucional. A produção social (econômica) estendeu-se à produção subjetiva (semiótica) como matéria prima, ou, como diz Foucault,  biopoder. A vida passa a ser produzida, e com ela, tudo que parece imitá-la. Antigos códigos sociais (por ex., na Idade Média, o código teológico) cedem lugar à auto-dissolução numa espécie de esquizofrenização generalizada do corpo social (socius). Não há mais eu, mesmo que pareça. Há, sim, um eu voltado às logísticas de manutenção do cotidiano. É possível olhar em torno: o cenário de dissolução do Sentido é devastador. Indagações da alma ("estarei vivo?") atracam-se no território do corpo-imagem. Assim, pensar para além da simples cognição da realidade só se torna possível mediante a representação dessa realidade e não com e através dela. A realidade "real", o corpo das intensidade mundanas, cede a sua vez, seu número e seu lugar à teatralidade de um mundo em decomposição. Notícias de toda a parte chegam instantâneas. Registram as  linhas subjetivas do consumidor (orgulhoso) de ordens implícitas. Sem saber, é o desejo encalacrado nas dobras da alma: o capital.


A.M

Dez minutos


Um desconhecido

me pergunta as horas.

Faltam dez minutos.



Bruno Brum

sábado, 8 de julho de 2023

Não tenho preconceitos de raça, cor ou religião. Tolero qualquer sociedade. Basta-me saber que o homem é um ser humano: ele não pode ser pior.


Mark Twain

MICHAEL FLOHR

 


A IMAGEM SOBERANA

Impossível negar: a nível planetário, uma tecnologia da imagem veio para ficar. Ela compõe talvez a face mais concreta das "conquistas"da modernidade. Tudo é imagem. Um universo imagético tornou-se a própria subjetividade. Não a entidade-do-eu, não a consciência, não a  racionalidade, mas o processo da subjetivação veloz e incessante que nos afeta e nos constitui. O real é a cada dia mais artificial. A sensação subjetiva ("eu existo, eu penso") e a correlata certeza de quem sou, são hoje sustentadas pela realidade da imagem, pela verdade da imagem, pela concretude da abstração, enfim. Tal verdade, sem que eu perceba, passa a ser a minha verdade, mesmo a mais íntima. Devastação do pensamento e até do inconsciente representativo (freudiano). Caminhamos para o fim da divisão mundo interno-mundo externo.Nesse ponto, a referência à esquizofrenia é inevitável: há um estilhaçamento da subjetividade na esteira de uma profunda erosão do sentido. Aniquilamento da linguagem verbal, dissolução de crenças e valores, convite ao fascismo (via apologia dos arcaísmos) e demonização da mídia (via a ideação paranóica) mesmo nas ditas esquerdas. Em que ou em quem acreditar? Um gigantesco buraco ontológico compõe o reino encantado das imagens verídicas: telefone fixo, internet, rede social, celular, zap, televisão, cinema, vídeo, videogame, fotografia, etc, tanto faz. Imagens, imagens, tão só imagens devoram tudo, arrastam tudo,  designam tudo, significam tudo, inclusive eu aqui escrevendo e você lendo o artigo agora. No entanto, tal estado de coisas não é um mal em si. Pois, se somos dominados "por dentro" no mais fundo da interioridade psíquica, algo se anuncia naquilo que Nietzsche chama "a transvaloração dos valores". A alma em revolta pela criação de uma nova terra.


A.M.

Rehearsal Figures in Extinction [1.0] - By Crystal Pite with Simon McBur...

vai ver que o apocalipse

já aconteceu

e a gente nem percebeu


Nicolas Behr

O HUMOR DA CIÊNCIA

O humor é um signo importante na psiquiatria atual. Na semiologia clínica, ele é uma referência básica para se estabelecer um diagnóstico de "Transtorno do Humor" ou mais precisamente "Transtorno bipolar". Há até escalas para avaliar o Humor de 1 a 5 por exemplo. Ora, o humor é um componente dos fluxos afetivos que se inscreve no organismo ( daí o bioquimismo encruado) mas que tem origem no corpo desejante ou corpo das intensidades livres: corpo da loucura, não da psicose. Esse dado simples é denegado pela maquinaria psiquiátrica atual, o que torna o paciente um objeto fabricado ao gosto dos fármacos e congêneres. E mais, imobilizado como produção existencial, ainda que pareça tudo estar em ordem. Ou seja, assintomático. Não esqueçamos, porém, que se não há "sintomas" ( o humor está eutímico, etc) o próprio paciente passa a ser um.   Sintoma.

A.M.

quinta-feira, 6 de julho de 2023

DISFARCE


o Estado é uma máquina

(sem metáfora)

por mais que a sua boca

sorria.


o Estado é uma máquina,

é isso aí.


não pergunte

onde anda a vida.

não questione o dia

nem fale de poesia.


o Estado é muito vivo,

pode escutar.


A.M

'Vou transferir a cracolândia pra lá', diz Silvio Santos a Zé Celso sobr...

terça-feira, 4 de julho de 2023

TEATRO POÉTICO: SÓ PARA LOUCOS

A linguagem poética constitui um território de significações que escapa às coordenadas da razão. Há um sentido a produzir. Desse modo, a busca de singularidades existenciais é facilitada pela aventura de se ler um poema e implicar-se a ele. O que isso quer dizer? Quer dizer formar e firmar conexões afetivas com um ou muitos pedaços do poema ou do poema como um todo, mesmo sabendo que não há todo. Não há todo porque as multiplicidades heterogêneas do texto nunca fecham um sistema ou tamponam um devir. O processo do desejo é irreversível. Ou seja, sem volta. A poesia é isso: multiplicidades do leitor se ligando a multiplicidades do poema na busca de... uma diferença. Ler um poema não é como ler um ensaio de sociologia, por exemplo, mas sim escutar os versos como se escuta uma música ou se sente no corpo as vibrações das cores de um quadro de Emil Nolde, ou no mesmo corpo e ao mesmo tempo o ritmo de um improviso de jazz, ou uma coreografia de Pina Baush, um gol de bicicleta... Poesia não foi e não é feita para interpretar porque ela já é uma interpretação ou mil, cem mil interpretações da realidade. Ou a própria realidade, a realidade em si-mesma. Quando se está apaixonado (isso deveria ser sempre) a poesia cobre e recobre as superfícies do mundo numa película fina de delicadeza, suavizando os pedregulhos das estradas mais longínquas e inóspitas. Tal como em "Asas do Desejo" (Wim Wenders, 1987), o anjo amante do tempo está transfigurado por avistar a trapezista no seu camarim, não por ele ser um anjo, mas por haver entrado num devir-humano, devir-mundo, devir-risco, devir-perigo, devir-paixão, devir-amar. 


A.M.

Netflix: 'Cuba e o cameraman' registra a história nua e crua de Cuba

Quando você ama minhas ideias,

Eu me sinto também abraçado.


Pedro Salomão

segunda-feira, 3 de julho de 2023

O que é uma aula Gilles Deleuze

O que é psiquiatria? (1)


A psiquiatria é uma especialidade médica surgida na França em fins do século XVIII. Ai se dá a passagem (conforme Pinel) dos asilos aos manicômios.

No entanto, sua origem mais longínqua remete à existência de asilos no século VII (cultura árabe) e no século XVI (ocupação árabe na Espanha). Desde então passam a ser chamados de hospícios e se espalham pela Europa.

Sendo assim, a origem da psiquiatria se confunde com a origem dos asilos, dos hospícios e dos manicômios. Tudo se prepara para encolher as mentes.

A lógica dos asilos é o DNA da psiquiatria.

Já o século XIX, chamado século dos manicômios, dá origem aos hospitais psiquiátricos conforme o modelo atual.

São conhecidas as agressões e os horrores perpretados contra pacientes nos manicômios desse século. Foucault descreveu com detalhes as torturas científicas.

No Brasil, entre outros horrores, o hospital psiquiátrico de Barbacena é um registro histórico como modelo da barbárie consentida.

No período do estalinismo na União Soviética (1927/1957) presos políticos (quantos?) foram internados em hospitais psiquiátricos. 

No período da ditadura brasileira (1964/1979)  presos políticos (quantos?) foram internados em hospitais psiquiátricos.

A psiquiatria tem uma história pouco edificante.

No Brasil, veio a reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial. Diferentemente, no campo da medicina não se tem notícia de alguma reforma cardiológica, pneumológica, nefrológica, etc.

De fato, trata-se de uma especialidade que pede  um método para além do biomédico.

A psiquiatria (psicopatologia) não dispõe de uma teoria dos afetos, apesar da extrema importância desse conceito para o trabalho clínico, ou seja, da gestação do vínculo com o paciente.

O paciente psiquiátrico muitas vezes não quer ser atendido pelo psiquiatra, sendo levado à força por familiares ou terceiros. Na clínica médica, não se tem notícia de tal recusa por vezes hostil e agressiva.

O objeto de pesquisa e intervenção clínica da psiquiatria é invisível, impalpável e abstrato. Chamado de “mente” , não há nada parecido em pesquisa médica. A mente não é o cérebro.

Nos hospitais psiquiátricos (ainda existem!) é muito comum pacientes fugirem. Por que fugiriam do tratamento? Em contraste, nos hospitais gerais (clínicos) isso não existe. Pelo menos, que se saiba.

A alta e a cura são dispositivos raros na psiquiatria clínica.

Sim, uma estranha especialidade essa.


A.M.

sábado, 1 de julho de 2023

Noturno nº 1


Nunca me sinto pobre,

ao contemplar as estrelas.


Qualquer doido

(eu)

possui

o latifúndio do céu.


Aguardente negra e gratuita

a noite me embriaga.


Sonho melhor

acordado.


Cassiano Nunes

Ensaios sobre a diferença - I

Em tempo capitais, a diferença parece inexistir. Do que se trata? O que se passa? O que se passou? Perguntas sem sujeito e sem resposta. Elas boiam num oceano vazio. O mundo atual é um mundo demasiado semelhante, demasiado igual. Torpe, raso, cínico.  Por toda a parte circulam mercadorias da alma exausta. A diferença percebe esse mundo estranho onde ela não mais se reconhece, exceto por um fiapo de vida solto nos infinitos da mente sofrida. Andei por lados contrários à racionalidade triunfante e a diferença se fez carne. Me perguntei ó idiota. Nada há mais a cobrar da consciência esclarecida. Fui à "igreja" dos homens de bem. Deus acabou seus dias como mercadoria e milagre.   Murchou a glória dos homens suaves. Não há mais homens... A diferença incorporou esse dado estatístico nas entranhas de um corpo intenso e intensivo.  Ainda bem que um coração exangue anuncia a prática da resistência... à infâmia, à vergonha e à morte...


A.M.