Este blog busca problematizar a Realidade mediante a expressão de linhas múltiplas e signos dispersos.
domingo, 31 de dezembro de 2023
Uma Arte
A arte de perder não é de difícil lastro;
tantas coisas parecem prenhes de perda
que sua perda não constitui nenhum desastre.
Perca um pouco a cada dia. Aceite o arrasto
do molho de chaves perdido, a hora mal gasta.
A arte de perder não é de difícil lastro.
Então teste perder mais longe, mais rastros:
lugares, nomes, o destino de onde pensava passar
férias. E nada disso pressupõe desastre.
Perdi o relógio de minha mãe. E, ah, que impacto!,
a última ou penúltima das três casas que amei.
A arte de perder não é de difícil lastro.
Perdi duas cidades, que belas. E, mais vasto,
algumas terras, dois rios, um continente,
que saudade, mas não chega a ser desastre.
―Mesmo perder você (anedota na voz, gesto
que adoro) não deve enganar-me. Pois é claro
que a arte de perder não é de tão difícil lastro
mesmo que pareça (note!) um desastre.
Elizabeth Bishop
sexta-feira, 29 de dezembro de 2023
ESTUDO CLÍNICO SOBRE OS DELÍRIOS - VI
Entre os delírios, os da esquizofrenia são os mais graves. Por que? Porque a esquizofrenia é um processo subjetivo em que há uma espécie de cisão do eu. Na realidade clínica isto significa que o paciente tem comprometida (em maior ou menor extensão) a função de autonomia social. É o que a psiquiatria manicomial, interessada no adestramento à Norma, chama de Apragmatismo. Dir-se-ia que o esquizofrênico é aquele que pergunta "quem sou?". Para dar respostas e preencher um vazio psíquico dilacerante (ontológico?), ele é como que tomado pelo delírio. Assim, diferente de outras patologias delirantes, na esquizofrenia o paciente é o próprio delírio. Isso só pode ser verificado numa escuta não julgadora e na pesquisa cuidadosa da sua inserção na Realidade. Não há, como o modelo biomédico gostaria de acreditar, algum exame de laboratório ou de imagem que garanta com um laudo conclusivo " cifras e imagens atestam esquizofrenia". Vamos rir. Na esquizofrenia, se é que existe uma tal entidade clínica ao estilo médico, é onde desmorona o Sentido e onde a própria psiquiatria e o seu psiquiatra deveriam se questionar enquanto agentes da saúde e daí promotores do cuidado. Servir a quem? Por que? Para que? Como?
A.M.
sexta-feira, 22 de dezembro de 2023
quinta-feira, 21 de dezembro de 2023
QUEM PRECISA DE QUEM?
A psiquiatria e as psicoterapias necessitam mais do seu paciente do que o contrário. Tal enunciado, no mínimo estranho e desconcertante, tem sua "razão de ser" no funcionamento do círculo do capital. Conforme Marx demonstrou, o capital, (operador semiótico hegemônico), é ávido pela manutenção ad infinitum do circuito produção-consumo-produção. Isso constitui o universo delirante da realidade contemporânea. Ele atravessa as linhas da subjetividade, mesmo as ditas "normais", produzindo a convicção de que nada existe ou existirá para além dos axiomas (princípios ossificados) da civilização moderna. No caso da psicopatologia clínica, assistimos a dois fenômenos correlatos. Num, o seu próprio desaparecimento, caso da psiquiatria "bio-cidológica", filha bastarda das neurociências. No outro, o endurecimento (reificação) conceitual da psicopatologia, caso da psicanálise ortodoxa e das psicoterapias aliançadas a ela (ou não) mas expostas na vitrine do mercado da clínica. Em ambos os casos o paciente surge como consumidor (passivo) de remédios químicos ou de teorias da subjetividade. Mil peças para abastecer o Mercado.
A.M.
ILYA PRIGOGINE, O REBELDE DO TEMPO
(...)A concepção de uma natureza passiva, submetida a leis deterministas, é uma especificidade do Ocidente. Na China e no Japão, “natureza” significa “o que existe por si mesmo”. Joseph Needham lembrou-nos a ironia com a qual os letrados chineses receberam a exposição dos triunfos da ciência moderna. Talvez o grande poeta indiano Tagore também tenha sorrido quando tomou conhecimento da mensagem de Einstein:
“Se a lua enquanto efetua o seu eterno curso ao redor da Terra, fosse dotada de consciência de si mesma, estaria profundamente convencida de que se move por sua própria vontade, em função de uma decisão tomada de uma vez por todas. Da mesma forma, um ser dotado de uma percepção superior e de uma inteligência mais perfeita, ao olhar o homem e suas obras, sorriria da ilusão que esse homem tem de agir segundo a sua própria vontade livre. Está é a minha convicção, embora saiba que ela não é plenamente demonstrável (...)”
Para Einstein, essa posição era a única comparável com os ensinamentos da ciência. Mas, para nós, essa concepção é tão difícil de aceitar quanto o era para Epicuro. E isto tanto mais que, desde o século XIX, o pensamento filosófico vem interrogando-se cada vez mais sobre a dimensão temporal de nossa existência. Como testemunham Hegel, William James, Bergson, Whitehead, ou Heidegger. Enquanto para os físicos que seguiam Einstein o problema do tempo estava resolvido, para os filósofos ele continuava sendo a questão por excelência, aquela em que estava em jogo a significação da existência humana.(grifos do blog).
Num de seus últimos livros, L´univers Irrêsolu, escreveu Karl Popper: "Considero o determinismo laplaciano – confirmado, como parece estar, pelo determinismo das teorias físicas e pelo brilhante sucesso delas – o obstáculo mais sólido e mais sério no caminho de uma explicação e de uma apologia da liberdade, da criatividade e da responsabilidade humana." Para Popper, porém, o determinismo não põe somente em causa a liberdade humana. Ele torna impossível o encontro com a realidade, que é a vocação mesma de nosso conhecimento. Popper escreve mais adiante que a realidade do tempo e da mudança sempre foi para ele “o fundamento essencial do realismo”
Em “O possível e o real”, Henri Bergson pergunta: “De que serve o tempo? ... o tempo é o que impede que tudo seja dado de uma só vez. Ele atrasa, ou adianta, ele é o atraso. Deve, pois, ser elaboração. Não seria, então, o veículo de criação e de escolha? A existência do tempo não provaria que há certa indeterminação nas coisas? Para Bergson, como para Popper, o realismo e o indeterminismo são solidários. Mas essa convicção choca-se com o triunfo da física moderna, com o fato de que o mais fértil e o mais rigoroso dos diálogos que travamos com a natureza desemboca na afirmação do determinismo.
A oposição entre o tempo reversível e determinista da física e o tempo dos filósofos levou a conflitos abertos. Hoje, a tentação é mais de um recuo, que se traduz por ceticismo geral quanto ao significado de nossos conhecimentos. Assim ,a filosofia pós-moderna defende a “desconstrução”. Rorty, por exemplo, convida a transformar os problemas que dividiram a nossa tradição em temas de conversação civilizada. Evidentemente, para ele, as controvérsias cientificas, demasiado técnicas, não têm lugar nessa conversação.
(...)
Ilya Prigogine, in O fim das certezas, 1996
domingo, 17 de dezembro de 2023
ÉTICA E CLÍNICA EM SAÚDE MENTAL
Em Saúde Mental, a ética é indissociável da clínica. Não como uma ética idealista, ou seja, não como reflexão teórica sobre a moral. Trata-se de outra coisa, um conceito. Ele está encravado na prática. A ética como aumento ou como redução da força de viver. Potência dos corpos. A clínica em psicopatologia é assim a própria ética, ela em si mesma, a ética crua. Impossível não haver uma escolha. A psiquiatria manicomial, por vezes disfarçada de neurobiológica, também é ética, ainda que possa ser uma ética de destruição e/ou amordaçamento do desejo. É que no ato clínico, a ética passa por linhas singulares da existência que solicitam escolhas finas. Não é fácil. Não há uma chave universal para resolver os dilemas éticos. Não há modelo, exceto o dos manicômios da alma. Ou o do sistema do capital: mais lucro, mais, mais, até o infinito. Então a ética terá que ser inventada a cada momento e num contexto sócio-institucional dado. Como diria um antigo professor: "depois de tudo que vi, escutei, li, estudei e aprendi, chegou a hora". Diante do paciente, o que fazer? E como diz o Deleuze, com que direito?
A.M.
sábado, 16 de dezembro de 2023
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais reis nem regências.
Uma certa liberdade com a luxúria convém.
Manoel de Barros
quinta-feira, 14 de dezembro de 2023
quarta-feira, 13 de dezembro de 2023
segunda-feira, 11 de dezembro de 2023
PSIQUIATRIA NÃO É MEDICINA
O conhecimento médico, no que se refere à fisiologia, a fisiopatologia, a bioquímica, a histologia, entre outras disciplinas, possui uma complexidade teórica admirável, sendo construída laboriosamente na história. Só um exemplo: a função renal. Daí é surpreendente e misterioso o fato da psiquiatria se constituir como especialidade médica, se ela - enquanto teoria - sequer sabe o que é a mente. Não estamos falando do cérebro. Este há muito é objeto da neurologia, e nos dias que correm, das neurociências. Há grandes avanços no conhecimento. Neuro-imagens facilitam e sustentam o grande valor de tais pesquisas. Mas, e a psiquiatria teórica?
A.M.
domingo, 10 de dezembro de 2023
RELIGIÃO?
Minha opinião acerca da religião é a mesma que a de Lucrécio. Considero-a como uma doença nascida do medo e como uma fonte de indizível sofrimento para a raça humana. Não posso, porém, negar que ela trouxe certas contribuições à civilização. Ajudou, nos primeiros tempos, a fixar o calendário, e levou os sacerdotes egípcios a registrar os eclipses com tal cuidado que, com o tempo, foram capazes de predizê-los. Estou pronto a reconhecer esses dois serviços, mas não tenho conhecimento de quaisquer outros.
(...)
Bertrand Russel in Trouxe a religião contribuições úteis à civilização?
CLÍNICA E TECNOLOGIA DA IMAGEM - IV
Como F. Guattari previu, vivemos tempos esquizofrênicos. Isso faz retirar do conceito de Capitalismo Mundial Integrado (Guattari, 1982) elementos teóricos contingentes e necessários a uma análise institucional. A produção social (econômica) estendeu-se à produção subjetiva (semiótica) como matéria prima, ou, como diz Foucault, biopoder. A vida passa a ser produzida, e com ela, tudo que parece imitá-la. Antigos códigos sociais (por ex., na Idade Média, o código teológico) cedem lugar à auto-dissolução numa espécie de esquizofrenização generalizada do corpo social (socius). Não há mais eu, mesmo que pareça. Há, sim, um eu voltado às logísticas de manutenção do cotidiano. É possível olhar em torno: o cenário de dissolução do sentido é devastador. Indagações da alma ("estarei vivo?") atracam-se no território do corpo-imagem. Assim, pensar para além da simples cognição da realidade só se torna possível mediante a representação dessa realidade e não com e através dela. A realidade "real", o corpo das intensidade mundanas, cede a sua vez, seu número e seu lugar à teatralidade de um mundo em decomposição. Notícias de toda a parte chegam instantâneas. Registram as linhas subjetivas do consumidor (orgulhoso) de ordens implícitas. Sem saber, é o desejo encalacrado nas dobras da alma: o capital.
A.M
sábado, 9 de dezembro de 2023
sexta-feira, 8 de dezembro de 2023
O FUTEBOL, SEMPRE
O futebol é trágico. Trágico porque alegre, imprevisível, inexplicável, não se dobra ao modelo quantitativo do seu "acontecer", está além e aquém dos comentários rasteiros de apresentadores pífios, caçadores de audiências imbecilizantes, funciona na ambiguidade do futuro (quem vai vencer?), contém uma estética que precede toda racionalidade orgulhosa de si, trabalha com 90 minutos irreversíveis, inclui os acréscimos, joga com a sorte, idolatra o acaso, investe no puro talento, contempla e considera a competência técnica, flerta e se embriaga de arte, é arte, é arte, pura arte, completamente enlouquecedor para torcedores amantes da bola na trave, do verde-gramado, do contra-ataque mortífero, desdenha dos teóricos de carteirinha do jornalismo chifrin, sobrevive aos desmandos e corrupções dos poderes vigentes, surpreende nos minutos de acréscimo até os mais desconsolados e angustiados e esperançosos torcedores, é pura zebra rondando os pastos, enfim, por isso e muito mais, o futebol é uma heresia santa, um dilúvio envolvente e enxuto, delírio de multidões, catarse sem igual, orgasmo público ou apenas um único gol sem preço no mercado (não existe gol feio), milhares deles, mesmo que não aconteçam, ainda que sonhados, o futebol é o esporte para além do esporte, uma metafísica encarnada na magia do drible, o gol de cabeça..., uma torcida diferente: Bahia minha porra!
A.M.