sábado, 6 de abril de 2024

O QUE É DEVIR?

Fascinante, embora difícil, o conceito de “devir” desenvolvido por Deleuze & Guattari é um daqueles que sempre escapam quando acreditamos que o compreendemos. Muitos conceitos permanecem sem força, ou assim parecem, por falta de uma travessia lógica eficaz sempre adiada para amanhã: são relegados a truísmos, em função de afinidades previstas ou reconhecidas. Gostaríamos de ser capazes de expor o que Deleuze & Guattari pensavam sob o nome de devir: o que se segue é apenas um esboço provisório disso.

Acontece que o devir se reduz a uma palavra de ordem vulgar e paradoxalmente estática: ver todas as coisas em devir, viver a si mesmo em devir… O pensamento se congela nesse enunciado supostamente capaz de lhe trazer o movimento, e o que pensávamos ser o seu ponto culminante parece muito mais com um adormecimento: uma estagnação, um êxtase, um único indiferenciado, uniforme e sem promessas (“gelatina”, teria dito Anton Chekhov). Apesar de muitas advertências e de sua relutância em falar sobre o devir em geral, Deleuze & Guattari não conseguiram evitar que falsos amigos e detratores se unissem para afogar o conceito em mal-entendidos: fusão mística, antropomorfismo…

“Devir” é certamente e em primeiro lugar mudar: não mais se comportar ou sentir as coisas da mesma maneira; não mais fazer as mesmas avaliações. Sem dúvida, não mudamos a nossa identidade: a memória permanece, carregada de tudo o que vivemos; o corpo envelhece sem metamorfose. Mas “devir” significa que os dados mais familiares da vida mudaram de sentido, ou que nós não entretemos mais as mesmas relações com os elementos costumeiros de nossa existência: o todo é repetido de outro modo.

Para isso é preciso a intrusão de algo de fora: alguém ou alguma coisa entrou em contato com algo ou alguém diferente de si mesmo, algo aconteceu. “Devir” implica, portanto, em segundo lugar, um encontro: algo ou alguém não se torna si mesmo a não ser em relação com outra coisa. A ideia de encontro, porém, é equívoca e depende do estatuto que concedemos a esse mundo exterior sem o qual alguém ou algo não sairia de si. Para a pergunta “o que encontramos?”, Deleuze & Guattari dão uma resposta paradoxal (não pessoas), e de aparência ingênua ou arbitrária (sobretudo animais ou paisagens, pedaços de natureza). Quanto ao amor, ele se endereçaria menos a uma pessoa do que à animação não-pessoal que lhe confere o seu “charme”, e que envolve algo mais do que ela (uma paisagem, uma atmosfera…)[i].

“Fora” é entendido aqui num sentido absoluto: não se trata do que nos é exterior. A questão obviamente não é amar animais em vez de humanos (misantropia, zoofilia); e uma viagem, uma recepção, uma visita ao zoológico não são suficientes para proporcionar encontros – a menos que a exterioridade relativa (material) dos seres se reduplique em uma exterioridade mais radical, afetiva e espiritual. Podemos “nos entender” com as pessoas, com base em afinidades comuns reconhecidas que facilitam a conversação; mas outra coisa é o contato, por meio das pessoas, com “signos” que nos obrigam a nos sentir de forma diferente, a entrar num mundo de avaliações desconhecidas, nos jogando para fora de nós mesmos. O amor, segundo Deleuze, é deste tipo: uma mistura de alegria e de medo[ii].

(...)

Por François Zourabichvili
Tradução: Diogo Corrêa Silva

27/03/1997

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