quinta-feira, 30 de maio de 2024

João Bosco - Moral da História

QUAL DEPRESSÃO?

O acréscimo de novos adjetivos ao substantivo “depressão”  é infinito, pois  as  depressões   são  uma  condição humana inscrita no processo vital. Ao mesmo tempo não existe uma identidade, um modelo de “ser humano”, a não ser o modelo outorgado pelos defensores do “humano” como  medida de todas as coisas: os humanistas. Dentro de tal paradoxo, existiria uma espécie de “matriz” subjetiva das depressões? Uma base, uma invariante, uma condição primária –seja  etiológica ou clinica - para o fenômeno depressivo? Ora, as vivências expressas por  pacientes demonstram que  não. Não  existe a doença  “depressão”  e sim estados depressivos inseridos em linhas existenciais concretas. É o que chamamos de síndromes. Estas, como as vivências,  precedem as depressões, conectando os estratos  físico-químicos aos  psíquicos  e  aos  coletivos.  Assim, uma atitude transdisciplinar se impõe na pesquisa. Do contrário o reducionismo  cientificista  vai exibir suas pinças  assépticas,  como no caso da psiquiatria  biológica. 


A.M.

quinta-feira, 23 de maio de 2024

TAMBÉM JÁ FUI BRASILEIRO


Eu também já fui brasileiro

moreno como vocês.

Ponteei viola, guiei forde

e aprendi na mesa dos bares

que o nacionalismo é uma virtude.

Mas há uma hora em que os bares se fecham

e todas as virtudes se negam.


Eu também já fui poeta.

Bastava olhar para mulher,

pensava logo nas estrelas

e outros substantivos celestes.

Mas eram tantas, o céu tamanho,

minha poesia perturbou-se.


Eu também já tive meu ritmo.

Fazia isso, dizia aquilo.

E meus amigos me queriam,

meus inimigos me odiavam.

Eu irônico deslizava

satisfeito de ter meu ritmo.

Mas acabei confundindo tudo.

Hoje não deslizo mais não,

não sou irônico mais não,

não tenho ritmo mais não.


Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 21 de maio de 2024

Mundo Pequeno I


O mundo meu é pequeno, Senhor.

Tem um rio e um pouco de árvores.

Nossa casa foi feita de costas para o rio.

Formigas recortam roseiras da avó.

Nos fundos do quintal há um menino e suas latas maravilhosas.

Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves.

Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco,

os besouros pensam que estão no incêndio.

Quando o rio está começando um peixe,

Ele me coisa.

Ele me rã.

Ele me árvore.

De tarde um velho tocará sua flauta para inverter

os ocasos.


Manoel de Barros

Poesia Sem Fim - (Trailer legendado em português PT)

Eu sou completamente a favor da separação da Igreja e do Estado. Penso que essas duas instituições já nos ferraram o suficiente por conta própria, então as duas juntas é morte certa. 


George Carlin

domingo, 19 de maio de 2024

O QUE É NECRO-PSIQUIATRIA? 

É a psiquiatria atual. Ela ocupa a hegemonia nas relações institucionais (mais que a psicologia ou a psicanálise) em saúde mental. Isto quer dizer que 1- Concebe os transtornos mentais como originados no cérebro. Tudo é orgânico :  império das sinapses, travamento dos neurônios e indisponibilidade dos neurotransmissores. 2- A psicopatologia clínica (teoria e técnica) é desprezada ou simplesmente ignorada. Busca o controle dos corpos e para isso trata os pacientes só com remédios químicos ou, quando não há "melhora",  usa ainda assim técnicas que atuam sobre o organismo físico-químico: os chamados tratamentos "somáticos" que substituem os anteriores, também somáticos. 3-Prioriza a internação em hospitais psiquiátricos (mesmo adocicados por atividades lúdico-recreativas) para patologias moderadas e graves, desconsiderando o valor dos Caps, ambulatórios e outras formas de tratamento em liberdade. 4-Estabelece fortes alianças institucionais com a indústria farmacêutica internacional ( e nacional), além das farmácias comerciais, na volúpia pela obtenção de lucros às custas do sofrimento mental e da medicalização da sociedade. 5-Dissemina-se na midia e na mente das populações como modo de ocultar problemas sociais, já que enxerga o mundo tão só sob a ótica psiquiátrica. Tudo é psiquiatrizável! 6- Reduz o conceito de saúde mental ao âmbito da psiquiatria, donde a equação saúde mental=saúde torna-se equivalente a saúde cerebral=saúde psiquiátrica. 7-Adota de forma subliminar (maquiada) o axioma positivista (romântico) da ciência moderna de teor salvacionista para a humanidade. 8- Sob a proteção da ordem jurídica (só o psiquiatra está autorizado a dizer se você está ou é louco), organiza-se na sociedade civil em entidades, produzindo corporativismos que atendem aos interesses de lucro, prestígio e poder dos seus pares. 9- Na universidade, usa e abusa das pesquisas neurocientíficas como referência de verdade para a construção de uma clínica psiquiátrica cada vez mais "científica" e daí respeitada pelo establishment. 10-Na relação com os demais técnicos em saúde mental (exemplo das equipes dos Caps) funciona na verticalidade do poder que o psiquiatra outorga a si mesmo como médico da mente. 11- Desse modo seus efeitos clínicos, morais, políticos, éticos, educacionais e culturais se fazem cada vez mais identificados a uma necro concepção de mundo.


Obs.: o termo "necro-psiquiatria" foi criado pelo psiquiatra e psicoterapeuta Manoel Campelo, a quem sou grato.


A.M.

quarta-feira, 15 de maio de 2024

ESGOTO ESPIRITUAL

A palavra "espiritualidade" é tributária de longa tradição ocidental cristã, talvez do oriente milenar, hoje incorporada ao sistema do capital em seu estágio industrial avançado. Produção em série, linha de montagem. Conotada a "algo bom ", ao " bem", a espiritualidade, com toda a carga de afetos positivos que  evoca, faz por compor a vitrine das mercadorias destinadas a um "bom viver". Operada como substância,  objeto, "ter espiritualidade" ou "desenvolver a espiritualidade", torna-se um ato grotesco num mundo em putrefação ética. Seja o cinismo da geopolítica ou o descaso pela pobreza de milhões ou a predação da natureza, a espiritualidade é a fiadora (eterna?) da boa pessoa.


A.M. 

domingo, 12 de maio de 2024

ossada


o esqueleto que mora em mim

saúda o esqueleto de todo mundo


no fundo no fundo

somos muito parecidos


(pra quê orgulho?)



líria porto

sexta-feira, 10 de maio de 2024

FUNCIONÁRIOS DA VERDADE


Eles estão em toda a parte. Talvez sejam a maioria. 

São funcionários porque funcionam, operam, agem. Sustentam o mundo estabelecido dos humanos.

Vamos citar alguns exemplos como tentativa de caracterização objetiva e subjetiva. São linhas existenciais que os constituem e se misturam. Por isso um lusco-fusco na expressão prática se impõe como camuflagem de crenças. 

Os funcionários administram o acaso para que seja possível a manutenção da ordem. E apelam para a verdade como referência única.

Essa verdade pode ser várias,  mil, cem mil. Permanece, contudo, sendo uma verdade.Os funcionários precisam de uma certeza, assim como os pulmões de ar.

Encontramos na grande política funcionários vitalícios. Tanto os que dominam quanto os que são dominados. Há quem chame estes últimos de massa.

Começamos pela política porque aí a história da humanidade é a de um pesadelo do qual não se acorda.Mas poderia ser outro começo.

Por exemplo, a religião: nela os funcionários (ou fiéis) costumam ser ungidos acima dos mortais, na medida em que cultuam a imortalidade.

Mas há muito mais, já que a verdade ajuda (e muito) a viver.

A universidade, e sua forma que vem da Idade Média, usa dos seus para promover a verdade do pensamento. A sociedade fica abaixo no quesito intelectual.

A verdade da academia exporta seus seguidores para a ciência. Ou o inverso, tanto faz. 

Para complicar a questão da verdade, o capital e o seu método, o capitalismo, fabrica uma verdade única, a mercadoria. Esta se expande e se disfarça nos poros abertos do corpo social. Uma longa história atualiza a barbárie planetária do horror econômico. Ou seria político?

A pessoa humana (conceito cristão) naturaliza o funcionamento da verdade como crença no eu, na consciência e no céu como eterna promessa. O futuro não chega.

As massas consomem  e gozam palavras-de-ordem veiculadas pela mídia.

Fake news são verdades, mesmo não sendo. 

Em casos extremos, funcionários da verdade tornam-se fascistas. Querem tampar o buraco de sentido das sociedades de controle. Uma crispação paranóide se anuncia como crise política.

No amor, o romantismo traz o tom adocicado da verdade para os amantes da fantasia. Isso não funciona mais, exceto como arcaísmo.


A.M


Há aqueles que lutam um dia; e por isso são muito bons;

Há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito bons;

Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda;

Porém há aqueles que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis.


Bertolt Bretch

Dandara

quinta-feira, 9 de maio de 2024

SOBRE A DIFERENÇA

Partir de um não resoluto.  A diferença não é o indivíduo, não é a pessoa, não algo fixo e estável onde se possa ancorar o corpo e a alma exaustos. Nem tampouco ver, assuntar, medir, pesar, adjetivar, qualificar. Ela não é do campo do substantivo nem do adjetivo, ou de alguma substância dura, pétrea, imóvel, formatada em ideais do valor de troca. Nada a ver com a troca, pilar e essência do capital em seu cortejo mortuário. Tampouco é o ser-diferente, até porque não há o ser. Não é o estranho-em-nós. Já somos de antemão  e suficientemente estranhos, estranhos a nós e ao mundo. Não há, pois, medidas para identificá-la. Ela é desmedida. Quando há cálculos, dão sempre errado, as contas não fecham, tudo se frustra e se decompõe. Ao inverso, bem mais além e aqui mesmo, há somente corpos, corpos de corpos, corpos no interior de corpos, devires, processos, passagens, relâmpagos, vertigens, intensidades, frêmitos, respirações, ardores, ardências, viagens anômalas no mesmo lugar. Da diferença não se alimenta o narcisismo porque também não existe o narcisismo no seu universo, este sim, verso encantado, encantador e cantador em estradas desertas. A diferença é o bicho. Não tem forma, não é identificável pela percepção de representações exatas ou imagens-clichês. Vive na espreita. Percorre o mundo em linhas finas de sensibilidade e arte. Com delicadeza escapa de todos os dualismos, de todos os títulos, de todos os senhores, de todas as pátrias, de todas as pretensões e boas intenções da racionalidade, da consciência e do pensamento da autoridade, mesmo a mais admirável e mansa. Brinca com o poder,  a morte e  o amor. Faz disso a própria natureza de um percurso invisível e silencioso pelos caminhos desconhecidos do Encontro. Composta de multiplicidades ingênuas e encravada na irreversibilidade do tempo, se tece e se faz inglória e bela. Mas quem a suporta?


A.M.

terça-feira, 7 de maio de 2024

abri a porta

saí voando


não era sonho

estava amando



Nildão

A natureza não é natural: é sim o nosso coração. Escorre pelo sangue sem parar. Sua multiplicidade (o clima) é o tempo da terra. Opera sem a razão obscena. Não a julgue.


A.M.

Chuvas no RS: Eventos climáticos extremos não vão mais parar de acontece...

DELEUZE SPINOSIANO



                                                                       "Sorrir – como se a morte nos fizesse cócegas com sua foice." (Heine)



Spinoza (1632-1677), vivente-vidente, polidor de lentes, advogado das alegrias dos entes, entusiasta de tudo que nos liberta das correntes, as de ferro e as da mente! Spinoza foi “o mais puro dos sábios”, segundo Nietzsche, que não tinha o costume da adulação incontida e injustificada – deve ter sentido, pois, que Spinoza de fato merecia tão altos louvores! Na história da filosofia, há poucos pensadores mais “radicais” em sua denúncia das superstições e que tanto tenha feito para libertar a humanidade, tal como haviam tentado Lucrécio e Epicuro antes dele, das esperanças e temores absurdos a que se aferrolham os supersticiosos que todos nós somos um pouco.

Algumas das teses spinozistas mais ousadas, que batiam de frente com as superstições religiosas de sua época, valeram-lhe a excomunhão e a perseguição dos fanáticos: Deleuze conta-nos a curiosa estória de que Spinoza, tendo sobrevivido a um atentado de um fanático, guardou o casaco com o furo da facada como um souvenir sinistro de quão pouco alguns homens respeitam o livre pensamento. Já ele, Spinoza, avesso a todos os fanatismos e dogmatismos, prestou um culto ao livre-pensar de uma vitalidade que prossegue até hoje imensa: é um aliado na ampliação atual de nossas potências e na expansão da nossa lucidez!

Na sequência, seguem alguns trechos de Spinoza – Filosofia Prática, em que Deleuze sintetiza muito bem o spinozismo em seu aspecto afirmador, rejubilante, empoderador: uma sabedoria de vida que nos ensina a vencer escravidões e tiranias, tristezas e impotências, temores e esperanças, fazendo-nos compreender que só há expansão de potência na alegria e que nos convida à beatitude dos agentes, ao invés da impotência dos pacientes. Agir ao invés de padecer, amar ao invés de depreciar, “não zombar nem lamentar, mas compreender”: eis alguns dos sábios conselhos spinozistas.

Como o entendo, Spinoza nos diz que Deus não é um velhinho barbudo e furibundo que mora nos céus, de onde lança bolas de fogo para punir os ímpios e de onde prega sermões e promulga leis que, se obedecidas com servilismo, serão recompensadas na Confeitaria Paradisíaca. Isso não passa de um delírio grotesco da imaginação humana, interesseira e ego-cêntrica. Não é preciso subir uma montanha, como fez Moisés, para se comunicar com Ele: para Spinoza, o único Deus concebível é um Deus que está em toda parte já que é a Natureza mesma, um Deus que se confunde com o Universo, um Deus que é idêntico ao Ser-na-Totalidade. A morte da transcendência é o triunfo da mais radical imanência: Deus não existe lá longe, numa nuvem distante, numa dimensão transcendente, num outro mundo qualquer, exilado nas lonjuras inatingíveis. Deus é o nome que damos a esse Todo de que fazemos parte: estamos Nele como os peixes estão no oceano e como os pássaros estão no ar…

As principais interrogações do Tratado Teológico Político são: por que o povo é profundamente irracional? Por que ele se orgulha de sua própria escravidão? Por que os homens lutam por sua escravidão como se fosse sua liberdade? Por que é tão difícil não apenas conquistar mas suportar a liberdade? Por que uma religião que reivindica o amor e a alegria inspira a guerra, a intolerância, a malevolência, o ódio, a tristeza e o remorso? É possível fazer da multidão uma coletividade de homens livres, em vez de um ajuntamento de escravos?

Poucos livros suscitaram tantas refutações, anátemas, insultos e maldições: judeus, católicos, calvinistas e luteranos rivalizam em denúncias. […] Um livro explosivo mantem sempre sua carga explosiva: ainda hoje não se pode ler o Tratado sem nele descobrir a função da filosofia como tentativa radical de desmistificação.

Espinosa faz parte dessa estirpe de pensadores que mudam os valores e praticam uma filosofia a marteladas, e não daquela dos ‘professores públicos’, aqueles que, segundo o elogio de Leibniz, não interferem nos sentimentos estabelecidos, na ordem da Moral e na Polícia. (…) Tanto na sua maneira de viver como de pensar, Espinosa oferece uma imagem da vida positiva e afirmativa, em detrimento dos simulacros com os quais os homens se contentam.

Nenhum filósofo foi mais digno do que Espinosa, mas também nenhum outro foi tão injuriado e odiado. […] A grande tese teórica do spinozismo é: há uma única substância que possui uma infinidade de atributos, Deus sive Natura (“Deus, ou seja, a Natureza”), sendo todas as “criaturas” apenas modos desses atributos ou modificações dessa substância. O panteísmo e o ateísmo se conjugam em Espinosa, negando a existência de um Deus moral, criador e transcendente. Há três grandes semelhanças com Nietzsche e elas são as razões pelas quais ele é acusado de materialismo, imoralismo e ateísmo.

Não tendemos para uma coisa porque a julgamos boa; mas, ao contrário, julgamos que uma coisa é boa porque tendemos para ela” (Spinoza, Ética, III, 9, esc.) O bom existe quando um corpo compõe diretamente a sua relação com o nosso e, com toda ou com uma parte de sua potência, aumenta a nossa. Por exemplo, um alimento. O mau para nós existe quando um corpo decompõe a relação do nosso corpo… por exemplo, um veneno que decompõe o sangue. Bom e mau têm pois um sentido relativo e parcial: o que convém a nossa natureza e o que não convêm.

Bom e mau tem um segundo sentido, qualificando dois modos de existência do homem: será dito bom (ou livre, ou razoável, ou forte) aquele que se esforça, tanto quanto pode, por organizar os encontros, por se unir ao que convém a sua natureza, por compor a sua relação com relações combináveis e, por esse meio, aumentar sua potência. Pois a bondade tem a ver com o dinamismo, a potência e a composição das potências. Dir-se-á mau, ou escravo, ou fraco, ou insensato, aquele que vive ao acaso dos encontros, que se contenta em sofrer as consequências, pronto a gemer e a acusar toda vez que o efeito sofrido se mostra antagônico e lhe revela a sua própria impotência.

Spinoza, em toda a sua obra, não cessa de denunciar três espécies de personagem: o homem das paixões tristes; o homem que explora essas paixões tristes, que precisa delas para estabelecer o seu poder; enfim, o homem que se entristece com a condição humana e as paixões do homem em geral (que tanto pode zombar como se indignar…). O escravo, o padre, o tirano… trindade moralista.

Nunca, desde Epicuro e Lucrécio, se mostrou melhor o vínculo profundo e implícito entre os tiranos e os escravos: o tirano precisa da tristeza das almas para triunfar, do mesmo modo que as almas tristes precisam de um tirano para se prover e propagar. De qualquer forma, o que os une é o ódio à vida, o ressentimento contra a vida. A Ética de Spinoza traça o retrato do homem do ressentimento, para quem qualquer tipo de felicidade é uma ofensa e que faz da miséria ou da impotência sua única paixão. “Os que não sabem fortificar os homens mas sim deprimi-los, esses são insuportáveis para si mesmos.” (Spinoza, Ética, IV, apêndice, Cap. 13).

Há efetivamente em Spinoza uma filosofia da “vida”: ela consiste em denunciar tudo o que nos separa da vida, todos esses valores transcendentes que se orientam contra a vida… A vida está envenenada pelas categorias do Bem e do Mal, da falta e do mérito, do pecado e da remissão. O que perverte a vida é o ódio, inclusive o ódio a si mesmo, a culpabilidade. […] Antes de Nietzsche, ele denuncia todas as falsificações da vida, todos os valores em nome dos quais nós depreciamos a vida: nós não vivemos, mantemos apenas uma aparência de vida, pensamos apenas em evitar a morte e toda a nossa vida é um culto à morte.

Essa crítica das paixões tristes está profundamente enraizada na teoria de Spinoza a respeito das afeições. Um indivíduo é antes de mais nada alguém com poder de ser afetado. […] Devemos distinguir dois tipos de afeição: as ações e as paixões. O poder de ser afetado apresenta-se então como potência para agir, na medida em que supõe preenchido por afeições ativas, e apresenta-se como potência para padecer, quando é preenchido por paixões.

O próprio da paixão consiste em preencher a nossa capacidade de sermos afetados, separando-nos ao mesmo tempo de nossa capacidade de agir, mantendo-nos separados desta potência. A paixão triste é sempre impotência. […] Ao contrário, quando encontramos um corpo que convém à nossa natureza e cuja relação se compõe com a nossa, diríamos que sua potência se adiciona à nossa: as paixões que nos afetam são alegria, nossa potência de agir é ampliada ou favorecida.

As paixões tristes representam o grau mais baixo de nossa potência: o momento em que estamos separados ao máximo de nossa potência de agir, altamente alienados, entregues aos fantasmas da superstição e às mistificações do tirano. A Ética de Spinoza é necessariamente uma ética da alegria: somente a alegria é válida, só a alegria nos aproxima da ação e da beatitude da ação.


Do Blog A Casa de Vidro

sábado, 4 de maio de 2024

RIO GRANDE DO SUL SOFRE

Tratado geral das grandezas do ínfimo


A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.

Meu fado é o de não saber quase tudo.

Sobre o nada eu tenho profundidades.

Não tenho conexões com a realidade.

Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.

Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as

nossas).

Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.

Fiquei emocionado.

Sou fraco para elogio.


Manoel de Barros

RISCO DE CRIAR

A psicopatologia, descolada da psiquiatria, passa a ter vida própria. Uma psicopatologia órfã. Afirmá-la requer sobretudo a capacidade de criar condições para o pensamento. Não fazer refletir, mas fazer pensar a saúde mental ao mesmo tempo com e sem as categorias psiquiátricas. Deixar-se levar num paradoxo enunciativo vindo do mundo das psicoses. Isso corre o risco do non sense.  A clínica da diferença começa com as psicoses e, daí, com a quebra das significações dominantes. Há questões práticas e imediatas.O que fazer dos enunciados psiquiátricos encharcados de moral, mas que, por vezes, prestam socorro ao paciente em situações-limite? Um problema. O problema é o sentido. Pensar é criar, "seguir sempre a linha de fuga do vôo da bruxa". Esta frase intrigante traz o pensamento para a dissolução dos códigos psiquiátricos. "O que fazer com os doentes sem a psiquiatria?", diria o bom senso das instituições e das pessoas de bem. Ora, já que a psicopatologia tornou-se órfã, os seus compromissos passam a ser outros. A ética precede a técnica. Estamos em outra.

(...)


A.M. in Linhas da diferença em psicopatologia

quinta-feira, 2 de maio de 2024

EXPERIÊNCIA DO DESEJO

O desejo (potência para viver, resistir e criar) não remete a um objeto (uma mulher ou um time de futebol, por exemplo...) mas a um conjunto de signos aos quais tal ou tal significante está ligado. Ou seja, amo uma mulher não só por ela (rostidade) mas por tudo que gravita em torno. O mesmo seria para um time de futebol. O essencial desse dado e dessa analogia é que 1- o desejo é sempre agenciado por forças externas. Não existe o desejo como força  interior buscando satisfação linear (descarga, prazer, satisfação...) 2- o desejo é sempre "desejo de desejar", o que faz com o que o objeto seja secundário ( mesmo que importante ) a tal desejo. 3- A chamada carência, falta, tb é desejo, mas desejo enfraquecido. Dito de outro modo, o que importa no fim das contas é a experiência de desejar (alegria) e não o desejo em si, até porque não há "desejo em si". Assim é no amor e nos afetos que  o constituem. Há sempre relações: o "amar" e não o amor. Tb na religião, na política, na educação, na clínica, etc.


A.M.