PROFESSOR GILLES
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Disso, costumeiramente, seguia-se uma historieta jocosa. Conta-se que, certa vez, Deleuze narrou aos seus alunos como, ao adentrar no trem, acabou se confundindo e trocou de mala com um senhor que estava ao seu lado. Tendo se apercebido da confusão tarde demais, Deleuze se viu privado de suas anotações e de seus livros. Por sorte, aquele senhor estava lendo um livro de Proust e isso poderia ser de grande serventia para a aula daquele dia, embora Deleuze pretendesse falar aos seus alunos sobre Espinosa. Relatos como esse são comuns ao longo da Biografia Cruzada escrita por Dosse e dão mostras da leveza e da acolhida tipicamente deleuzianas.
Quando menos esperavam, entretanto, seus alunos deparavam com uma modificação em sua voz, que assumia um tom agressivo e conduzia-os a um clima dantesco (Jaeglé, 2005). A calmaria reinante naquele recinto concedia espaço para a tensão, o ogro se preparava para dar o bote. Normalmente eram os momentos no qual um conceito emergia, no qual o professor começava a discutir com afinco temáticas filosóficas. A voz de Deleuze contava a história obscura por trás de um conceito, e essa história era narrada a partir de modificações em sua voz, como se “a substância do conceito resultasse de uma operação sonora oculta” (Jaeglé, 2005, p. 13, tradução nossa). Essa operação sonora pode ser identificada com um grito.
De fato, em diversas ocasiões em seus cursos, Deleuze faz-nos notar a importância do grito para a produção do conceito. Só criamos conceitos, de acordo com o pensador, por necessidade, quando do encontro com um problema que violenta o nosso pensar. Esse encontro nos faz gritar. Deleuze (2006b), em uma de suas conferências dedicadas à Leibniz, reconhece uma íntima relação entre o grito e o conceito, o grito expressa o conceito mas não se confunde com este. Tratar-se-ia, antes, de uma expressão afetiva imanente a qualquer aparato conceitual, e por esse motivo Deleuze defende a necessidade de atentarmos tanto para o grito dos filósofos quanto para as suas criações conceituais. O grito expressa o problema, a necessidade e a urgência inerentes à atividade filosófica por vias não-filosóficas, vias afetivas. Assim, a voz de um pensador, quando pego em flagrante delito, é importante. O pensamento, em seu exercício aberrante, pode ser pronunciado por meio de um conceito, a fim de ser melhor compreendido, mas esse por si só não basta, sendo necessário uma espécie de “dinâmica vocal alheia a qualquer espírito de compreensão” (Jaeglé, 2005, p. 19, tradução nossa). Para compreender um conceito, deleuziano ou não, é preciso atentar para o som emanado por ele, reparar em seu grito.
Essa visão é compartilhada por um outro ex-aluno de Deleuze, Charbonnier (2009). De acordo com o autor, existe uma pedagogia deleuziana assentada no grito e este não é audível apenas pela leitura de seus livros. Os cursos de Deleuze, defende Charbonnier, produzem um desequilíbrio de pensamento naqueles que os escutam ou naqueles que os assistiram, desequilíbrio responsável por criar uma situação insuportável. Nessa nova ambiência, sufocante, apenas um grito conceitual é capaz de nos fazer respirar. As transcrições e as gravações das aulas de Deleuze, nesse sentido, são fundamentais para compreendermos os gritos que movem o pensamento deleuziano rumo à criação de uma ou outra de suas noções.
É curioso notar como, para todos esses autores, a didática deleuziana passa da mais completa calmaria, as aulas de Deleuze sempre começavam com um clima ameno e acolhedor, para a mais desgastante tensão. O aprendizado, por vias afetivas, tal qual o concebe Deleuze, parece necessitar desses altos e baixos, dessa performatividade singular nos dizeres de alguns (Vinci, 2015), para acontecer.
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" Do aprendizado: as licões do professor Deleuze" por Cristian Fernando Ribeiro Guimarães Vinc, 2019, texto acessado via internet em 05/06/2024
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