domingo, 24 de novembro de 2024

O  EXTERMÍNIO  DA  ALMA - 4

Diante da lei da troca e do lucro infinitos, a alma não é trocável nem há lucro. Enquanto isso, e por causa disso, matadouros proliferam e se armam. A execução, consentida e incentivada, se dá como processo natural da produção de mentes apassivadas. E tudo recomeça.

A.M



quarta-feira, 20 de novembro de 2024

AINDA ESTOU AQUI |Trailer (2025)

toda cicatriz é um

rastro de história


perdemos: dente, roupas, melhores amigos,

filmes, aulas, tudo. e que dádiva é saber perder.

que dádiva é noticiar a presença de outro dente

nascendo ao redor da boca, ao lado da cura,

no infinito de tudo.


“Textos Para Tocar Cicatrizes” (Globo, 2022), de Igor Pires

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Gary B.B. Coleman - The Sky is Crying

O QUE É UMA PSIQUIATRIA MENOR?

É uma psiquiatria da alma. Não a alma usada nas religiões, mas a alma do mundo das coisas,  a que se desloca veloz e invisível: o pensamento. A psiquiatria cuida disso. Ou deveria. Pelo menos, quando enlouquece...

Uma psiquiatria menor busca captar o paciente através de percepções finas e encontrá-lo onde jamais alguém o encontrou. Uma ética de força e criação guia suas ações, mesmo as farmacológicas.

Seu instrumento de pesquisa e intervenção prática (clínica) é uma psicopatologia aberta às mil influências (saberes) do que está longe e ao mesmo tempo tão perto. Seu objetivo é sondar o fora não como espaço, mas como ligação ao cosmos aqui em terra firme. É uma psiquiatria do real.

Considera antes de tudo, os corpos-em-relação, os corpos-em-vibração,  o que move o paciente e o técnico: afetos. 

A política existe como trama de poder onde a psiquiatria está incluída. No entanto, para além ou aquém do regime binário direita/esquerda, ela é apaixonada pela diferença, pela singularidade e pelo múltiplo.

Uma psiquiatria menor é grande. Psiquiatras neuro-maníacos lhe são estranhos.

A.M.

TULIPAS ETERNAS


 

domingo, 17 de novembro de 2024

SOBRE O "ANTI-ÉDIPO"

Escrever é esquecer, antes de tudo, o esquecimento da conveniência formal, do bom estilo. Já não os canais, os parques, os arvoredos, os lagos à francesa da escrita rarefeita destes tempos, nem sequer as graciosidades epigonais hexagonais e de um gosto muito seguro;  nem as mil conotações apagadas. Quando o olho de Deleuze-Guattari pisca, é tão grande como uma represa.O seu livro é um deslocamento de águas volumosas, umas vezes lançadas em torrente, outras estacionárias, trabalhando por baixo, mas avançando sempre, quer com as vagas ou com as correntes, quer contra-correntes. O que está em causa não é uma significação, mas uma energética. O livro não traz nada, leva muito, transporta tudo(...) Não é um livro de filosofia, isto é, de religião. Nem sequer a religião das pessoas que já não acreditam em nada, a religião da escrita. A escrita é antes tratada como uma maquinaria: absorve energia e a transforma em potencial metamórfico no leitor.

(...)

J.F. Lyotard

Vivo nas estrelas porque é lá que brilha a minha alma.


Manuel Bandeira

sábado, 16 de novembro de 2024

Rehearsal 'Clowns' - Hofesh Shechter (NDT 1 | Architecture of the Invisi...

FÁBRICA DO ÓDIO

Para a antropóloga Isabela Kalil, pesquisadora do Observatório da Extrema Direita, o atentado com explosões na praça dos Três Poderes não é um fato isolado e está estritamente conectado o 8 de Janeiro. A pesquisadora integra o grupo de trabalho criado pelo governo que discute o combate a discursos de ódio e extremismos.

Para ela, o governo precisa dar respostas certeiras aos ataques motivados por discursos de ódio e instigados pela extrema direita. Caso contrário, atentados semelhantes voltarão a ocorrer.

"Não é um lobo solitário", diz a especialista. A extrema direita estaria, segundo ela, recrutando cada vez mais pessoas, sobretudo homens e até mesmo crianças. 

(...)

Do UOL, 16/11/2024, 12:00 hs

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

"Baiana" Barbatuques | Galen Hooks Choreography

Futuro do Pretérito

O barista pega o copo de papel e o coloca sobre a grade vazada. Com um gesto automático, retira a peça da máquina, descartando sem pensar o pó usado. Mói e deposita um novo pó, acoplando as partes da máquina e apertando o botão com a precisão de um autômato. Enquanto o líquido escorre lentamente, despeja o leite na leiteira e o aquece com o vapor que escapa de um orifício estreito ao lado da máquina. O café fica pronto logo em seguida, numa sincronia apática, enquanto as fragrâncias se espalham pelo ar. O atendente mistura os dois líquidos e pergunta: “açúcar?”, mas seu questionamento ecoa pelo vazio. Com um gesto mecânico, ele fecha a tampa, escreve o nome do cliente com uma canetinha preta e se esforça para chamá-lo em voz alta. Uma pessoa, absorta no celular, pega o copo sem olhar para o rosto do atendente e sai sem agradecer. No copo, um aviso: cuidado, quente. O barista observa a porta se fechar, sem esboçar reação, sem sonhos nem esperanças, para logo em seguida repetir a mesma pergunta: “bom dia, o que vai querer?”.

Ninguém ousa falar desta maneira, mas as contrações do nascimento são a maneira mais direta do corpo expulsar uma criança de seu interior. Claro, sabemos, ela ainda não está pronta, nasce frágil e indefesa pois o seu cérebro desenvolveu apenas 40% do tamanho total. Ainda assim, apesar de incompleto, o lado de fora é o único lugar onde ela cabe neste momento, esperar mais seria tornar o parto perigoso para a mãe. Ser no mundo é ser cuspido por um útero, e todos nós fomos jogados neste universo, com maior ou menor violência. Trata-se de um exílio forçado imposto pelo corpo da mãe. O choro inicial representa o medo de um lugar que não é de modo algum quente e acolhedor como espaço de onde viemos. A existência é cinza fria, mas bem mais espaçosa.

Não escolhemos onde nem quando nascemos, mas é assim. Alguns chegam antes de serem chamados, outros pensam que nasceram no lugar errado. Não há outro caminho, é preciso insistir num lugar desconhecido, que já estava aí muito antes de nossa existência tornar-se fato. Por estarmos mergulhados na sociedade, a vida nos coloca em uma relação íntima e direta com ela. A partir do momento em que entramos no mundo, este passa a roçar em nossa pele, soar em nossos tímpanos e iluminar nossa retina. São cheiros e sabores novos, tudo é um espetáculo a descobrir e mesmo o banal se enche de possibilidades. Esta relação de passividade sensorial ganha volume e se transmuta lentamente em planos e expectativas. 

Através de prazeres e dores acumulados aprendemos a ansiar pelo futuro, o jogado aprende a jogar mais longe. Imaginamos o que vai acontecer, criamos cenários e fazemos planos. Ser no mundo é planejar o momento seguinte.  Somos capazes de imaginar o que será daqui cinco dias, cinco semanas, cinco anos, cinco décadas. A vida se torna isso: traçar caminhos, esboçar soluções, colocar metas, preparar saídas. Nos lançamos ao futuro com armas na mão. 

A sociedade aponta os caminhos abertos daquele momento, com placas mal sinalizadas, claro, como numa trilha desgastada pela selva viva. Logo percebemos que a vontade de correr se contrapõe à densidade da floresta. Ser no mundo é limitar-se às fronteiras que a realidade oferece. E com o tempo percebemos que as possibilidades são muito menores do que podíamos imaginar. Quantas vezes não vimos o universo ignorar nossas preces sem oferecer nenhum serviço de atendimento ao cliente. Quantas vezes a realidade tratou com a mais absoluta indiferença nossos anseios mais íntimos. A força ou automatismo da realidade são proporcionais aos nossos anseios, mas não à nossa capacidade de concretizá-los. O futuro faz piruetas no ar, as reviravoltas nos confundem e a semente jogada no solo, mesmo regada com cuidado e dedicação, teima não em crescer. O porvir se torna lentamente turvo.

Com o tempo, os planos envelhecem e perdem a validade. Lentamente o futuro se torna passado sem nunca passar pela realidade de nossas vidas. É o que a gramática qualificou como futuro do pretérito. Nós seríamos, teríamos, faríamos, e até mesmo amaríamos, mas não, nada disso aconteceu, apenas em nossas cabeças. O livro continua na estante, sem ser lido, a pessoa amada continua distante, sem ouvir nossa declaração de amor. O futuro veio e passou como um ônibus que se recusa a parar no ponto. É triste pensar o quanto de nós nunca virá a ser, o que nos obriga a observar, sozinhos, todos estes sonhos partindo para longe. Ser no mundo é estar de luto e enterrar sonhos que já nasceram mortos. Quantos presentes não foram e nunca serão vividos? O futuro do pretérito mostra como o tempo é misterioso, pois às vezes parece estar em dois lugares ao mesmo tempo.

E se imaginávamos muito mais do que a realidade estava disposta a dar, o que dizer dos sonhos que nem pudemos sonhar, aqueles que não nos deixaram sequer entrever? Talvez isto seja o que há de maior em nós, aquilo que nunca será nem ao menos uma possibilidade. Ser no mundo é, em sua maior parte, nunca realmente ser no mundo. É sonhar e esquecer que sonhou, é desejar e não saber o quê. São como galáxias com um brilho colossal mas que, de tão distantes, deixaram sua luz escoar de nossa consciência. Afinal, quais os ritos fúnebres adequados aos filhos que morreram por não poder nascer?

Talvez a vida seja um grande sonho do qual lembramos apenas de cenas esparsas. “Fale-me mais sobre isso”, pergunta o analista, mas é impossível dizer. Existem sonhos que não têm palavras, e, ainda mais longe, existem coisas que não aprendemos nem a sonhar. Muitos falam do Iceberg que tem apenas uma ponta de seu enorme volume acima da superfície, mas poucos veem o mar infinito que o sustenta.


Rafael Trindade do site "Razão Inadequada", acessado em 15/11/2024

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

A vida é uma ferida?

O coração lateja?

O sangue é uma parede cega?

E se tudo, de repente?


Eduardo Pitta

UM MUNDO PARANÓIDE

Numa análise do desejo, o militante de extrema direita ou o crente de extrema direita (o que dá no mesmo), adota (e carrega) uma visão paranóide da realidade. Trata-se da  bolha de egos mantida com proteção hostil e armada. Secreta o inimigo onipresente, que Deus ajuda a vigiar. E punir. A extrema-direita funciona como "remédio social", já que prega uma revolução às avessas às custas da grande faxina das mentes emporcalhadas. Uma produção insana de teorias conspiratórias é o exemplo de acesso fácil e aterrador. Expressa um universo deliróide montado em escala industrial. A fratura da linguagem já está exposta. Isso não cessa, isso não pára, isso não cede, isso mata: a semiologia clínica é a de uma mega-psicose coletiva: enfim, a profecia cumpriu-se: o capital, como os vampiros, encarnou-se  no espírito: No return.  A internet é pródiga. Confira.

A.M.