Futuro do Pretérito
O barista pega o copo de papel e o coloca sobre a grade vazada. Com um gesto automático, retira a peça da máquina, descartando sem pensar o pó usado. Mói e deposita um novo pó, acoplando as partes da máquina e apertando o botão com a precisão de um autômato. Enquanto o líquido escorre lentamente, despeja o leite na leiteira e o aquece com o vapor que escapa de um orifício estreito ao lado da máquina. O café fica pronto logo em seguida, numa sincronia apática, enquanto as fragrâncias se espalham pelo ar. O atendente mistura os dois líquidos e pergunta: “açúcar?”, mas seu questionamento ecoa pelo vazio. Com um gesto mecânico, ele fecha a tampa, escreve o nome do cliente com uma canetinha preta e se esforça para chamá-lo em voz alta. Uma pessoa, absorta no celular, pega o copo sem olhar para o rosto do atendente e sai sem agradecer. No copo, um aviso: cuidado, quente. O barista observa a porta se fechar, sem esboçar reação, sem sonhos nem esperanças, para logo em seguida repetir a mesma pergunta: “bom dia, o que vai querer?”.
Ninguém ousa falar desta maneira, mas as contrações do nascimento são a maneira mais direta do corpo expulsar uma criança de seu interior. Claro, sabemos, ela ainda não está pronta, nasce frágil e indefesa pois o seu cérebro desenvolveu apenas 40% do tamanho total. Ainda assim, apesar de incompleto, o lado de fora é o único lugar onde ela cabe neste momento, esperar mais seria tornar o parto perigoso para a mãe. Ser no mundo é ser cuspido por um útero, e todos nós fomos jogados neste universo, com maior ou menor violência. Trata-se de um exílio forçado imposto pelo corpo da mãe. O choro inicial representa o medo de um lugar que não é de modo algum quente e acolhedor como espaço de onde viemos. A existência é cinza fria, mas bem mais espaçosa.
Não escolhemos onde nem quando nascemos, mas é assim. Alguns chegam antes de serem chamados, outros pensam que nasceram no lugar errado. Não há outro caminho, é preciso insistir num lugar desconhecido, que já estava aí muito antes de nossa existência tornar-se fato. Por estarmos mergulhados na sociedade, a vida nos coloca em uma relação íntima e direta com ela. A partir do momento em que entramos no mundo, este passa a roçar em nossa pele, soar em nossos tímpanos e iluminar nossa retina. São cheiros e sabores novos, tudo é um espetáculo a descobrir e mesmo o banal se enche de possibilidades. Esta relação de passividade sensorial ganha volume e se transmuta lentamente em planos e expectativas.
Através de prazeres e dores acumulados aprendemos a ansiar pelo futuro, o jogado aprende a jogar mais longe. Imaginamos o que vai acontecer, criamos cenários e fazemos planos. Ser no mundo é planejar o momento seguinte. Somos capazes de imaginar o que será daqui cinco dias, cinco semanas, cinco anos, cinco décadas. A vida se torna isso: traçar caminhos, esboçar soluções, colocar metas, preparar saídas. Nos lançamos ao futuro com armas na mão.
A sociedade aponta os caminhos abertos daquele momento, com placas mal sinalizadas, claro, como numa trilha desgastada pela selva viva. Logo percebemos que a vontade de correr se contrapõe à densidade da floresta. Ser no mundo é limitar-se às fronteiras que a realidade oferece. E com o tempo percebemos que as possibilidades são muito menores do que podíamos imaginar. Quantas vezes não vimos o universo ignorar nossas preces sem oferecer nenhum serviço de atendimento ao cliente. Quantas vezes a realidade tratou com a mais absoluta indiferença nossos anseios mais íntimos. A força ou automatismo da realidade são proporcionais aos nossos anseios, mas não à nossa capacidade de concretizá-los. O futuro faz piruetas no ar, as reviravoltas nos confundem e a semente jogada no solo, mesmo regada com cuidado e dedicação, teima não em crescer. O porvir se torna lentamente turvo.
Com o tempo, os planos envelhecem e perdem a validade. Lentamente o futuro se torna passado sem nunca passar pela realidade de nossas vidas. É o que a gramática qualificou como futuro do pretérito. Nós seríamos, teríamos, faríamos, e até mesmo amaríamos, mas não, nada disso aconteceu, apenas em nossas cabeças. O livro continua na estante, sem ser lido, a pessoa amada continua distante, sem ouvir nossa declaração de amor. O futuro veio e passou como um ônibus que se recusa a parar no ponto. É triste pensar o quanto de nós nunca virá a ser, o que nos obriga a observar, sozinhos, todos estes sonhos partindo para longe. Ser no mundo é estar de luto e enterrar sonhos que já nasceram mortos. Quantos presentes não foram e nunca serão vividos? O futuro do pretérito mostra como o tempo é misterioso, pois às vezes parece estar em dois lugares ao mesmo tempo.
E se imaginávamos muito mais do que a realidade estava disposta a dar, o que dizer dos sonhos que nem pudemos sonhar, aqueles que não nos deixaram sequer entrever? Talvez isto seja o que há de maior em nós, aquilo que nunca será nem ao menos uma possibilidade. Ser no mundo é, em sua maior parte, nunca realmente ser no mundo. É sonhar e esquecer que sonhou, é desejar e não saber o quê. São como galáxias com um brilho colossal mas que, de tão distantes, deixaram sua luz escoar de nossa consciência. Afinal, quais os ritos fúnebres adequados aos filhos que morreram por não poder nascer?
Talvez a vida seja um grande sonho do qual lembramos apenas de cenas esparsas. “Fale-me mais sobre isso”, pergunta o analista, mas é impossível dizer. Existem sonhos que não têm palavras, e, ainda mais longe, existem coisas que não aprendemos nem a sonhar. Muitos falam do Iceberg que tem apenas uma ponta de seu enorme volume acima da superfície, mas poucos veem o mar infinito que o sustenta.
Rafael Trindade do site "Razão Inadequada", acessado em 15/11/2024
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