terça-feira, 30 de setembro de 2025

NÃO SOMOS PESSOAS, MAS ACONTECIMENTOS


“…o segredo da individuação não é a pessoa, pois que a verdadeira individuação é aquela dos acontecimentos. É uma ideia estranha. Vocês me dirão: o que é que se justifica? Demos um salto. Sim, para onde você vai? Isso diz alguma coisa para você? O que é que isso te diz? O que é que os autores ingleses querem dizer? Eles querem dizer que mesmo as pessoas (eles fazem a derivação inversa) são individuadas à maneira de acontecimentos. Simplesmente isso não se vê. Temos tantos maus hábitos, nos tomamos por pessoas, mas não somos pessoas. Somos, à nossa maneira, pequenos acontecimentos. E se somos individuados é à maneira de acontecimentos e não à maneira de pessoas. É curioso. Diríamos: bom, então seria necessário devir acontecimento-pessoa. Não, mas eu faço apelo à ressonância que as coisas…E depois do que vocês disserem a definição de acontecimento vai mudar singularmente. O que é uma batalha? O que é um acontecimento? Um acontecimento. Ah, sim, a morte é o que? É um acontecimento? Qual é a relação do acontecimento com a pessoa? Uma ferida é um acontecimento? Sim, se eu sou ferido, uma ferida é um acontecimento. É a expressão de alguma coisa que me acontece ou me aconteceu. Bom, como é individuada uma ferida? Ela é individuada porque ela acontece em uma pessoa? Ou então eu chamaria de pessoa aquele a quem a ferida acontece? Complicado…vocês talvez se lembrem, aqueles que estavam aqui, passei bastante tempo colocando a seguinte questão: o que é a individuação de uma hora do dia? O que é a individuação de uma estação? O que é esse modo de individuação que, para mim, não passa de maneira nenhuma pelas pessoas? O que é a individuação de um vento? Quando os geógrafos falam do vento…eles justamente dão nomes próprios ao vento. Nosso problema dá outro salto. Vocês compreendem?…


Gilles Deleuze, trecho de aula de 3 de junho de 1980, Universidade de Vincennes


segunda-feira, 29 de setembro de 2025

PAVEL MIKTOV


 

Necropsiquiatria - esboço de conceito: parte 4

Se a psiquiatria atual não dispõe de uma teoria dos afetos, o dado clinico essencial é o de que o paciente não é escutado.

Trata-se de um truísmo (verdade óbvia).

No entanto, para além do monólogo psiquiátrico, linhas da diferença afetiva se somam e se expressam numa semiologia. Isso escapa à grade sintomática estabelecida pela Necro. Está fora da cena, não se enquadra, não se ajusta, não tem nome.

Assim, o objetivo maior do tratamento "mental" (a escuta do paciente) é torcido e/ou negado.O modelo da morte ( depressões crônicas, melancolias, catatonias, psicoses graves, etc) substitui tal objetivo. A psiquiatria esconde isso já que ela é o próprio modelo.


A.M.


Obs.: texto revisado

domingo, 28 de setembro de 2025

sábado, 27 de setembro de 2025

De madrugada

sonho a paisagem do sertão


Acordo pensando

seu rosto


O dia não passa 

                          só espero

a volta da noite


Mas como já não sonho

imagens são músicas



A.M.

JULIANA LINHARES

TER UMA IDÉIA

CP: Não, em I. Estamos em I de idéia. Não é mais a idéia platônica que acabamos de evocar. Mais do que fazer um inventário de teorias, você sempre foi um apaixonado pelas idéias dos filósofos, pelas idéias dos pensadores no cinema, ou seja, pelos diretores e pelas idéias dos artistas na pintura. Você sempre deu preferência à idéia, em vez de explicações e comentários. A sua e a dos outros. Por que, para você, a idéia preside tudo?

GD: É verdade. A idéia no sentido em que a usamos, pois não se trata mais de Platão, atravessa todas as atividades criadoras. Criar é ter uma idéia. É muito difícil ter uma idéia. Há pessoas extremamente interessantes que passaram a vida inteira sem ter uma idéia. Pode-se ter uma idéia em qualquer área. Não sei onde não se deve ter idéias. Mas é raro ter uma idéia. Não acontece todos os dias. Um pintor tem tantas idéias quanto um filósofo, mas não se trata do mesmo tipo de idéias. Pensando nas diferentes atividades humanas, seria bom saber sob que forma se apresenta uma idéia em determinados casos? Em Filosofia, acabamos de ver isso. A idéia, em Filosofia, se apresenta na forma de conceitos. Há uma criação de conceitos, e não uma descoberta. Conceitos não se descobrem, são criados. Há tanta criação em uma filosofia quanto em um quadro ou uma obra musical. Os outros têm idéias… Fico impressionado com os diretores de cinema. Há muitos diretores que nunca tiveram uma idéia. As idéias são uma obsessão, elas vão e voltam, se afastam, tomam formas diversas e, através destas formas variadas, elas são reconhecíveis. Para dar um exemplo muito simples, penso em um diretor como Vincent Minnelli. A obra dele não cobre tudo, mas peguei este exemplo por ser mais fácil. Parece-me que ele é uma pessoa que se pergunta o que quer dizer: “As pessoas sonham”. Dizer que as pessoas sonham é uma banalidade. As pessoas sonham, sim, mas Minnelli faz uma pergunta muito estranha que lhe é muito particular: “O que quer dizer estar preso num sonho de alguém?” Passa pela comédia, tragédia, pelo abominável, etc. O que quer dizer estar preso no sonho de uma menina? Podem aparecer coisas terríveis por sermos prisioneiro do sonho de alguém. Pode ser um horror. Às vezes, Minnelli nos traz um sonho: “O que é estar preso no pesadelo da guerra?” E o resultado foi o admirável Os cavaleiros do Apocalipse. E ele não vê a guerra como guerra, do contrário, não seria Minnelli, e, sim, como um grande pesadelo. O que quer dizer “estar preso num pesadelo”? Estar preso no sonho de uma menina resulta nos famosos musicais em que Fred Astaire ou Gene Kelly, não sei ao certo, escapa das tigresas e panteras negras. Isso é estar no sonho de alguém. É uma coisa gigantesca. Eu diria que isso é uma idéia. No entanto, não é um conceito. Se Minnelli trabalhasse com conceitos, ele faria Filosofia e não cinema. Eu diria que é preciso distinguir três dimensões, três coisas tão poderosas que se misturam o tempo todo. E este é o meu trabalho futuro. É isso que eu gostaria de fazer e tentar entender melhor isso. Há os conceitos, que são a invenção da Filosofia, e há o que podemos chamar de “perceptos”. Os perceptos fazem parte do mundo da arte. O que são os perceptos? O artista é uma pessoa que cria perceptos. Por que usar esta palavra estranha em vez de percepção?

(...)

O Abecedário, Gilles Deleuze, transcrição completa in Machine Deleuze, site acessado em 27/09/2025


 

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Necropsiquiatria - esboço de conceito: parte 5


Há uma história que estabeleceu condições de possibilidade para o surgimento da psiquiatria. É que ela não é uma especialidade médica comum.

Por que?

Porque as suas bases clínicas, epistemológicas, éticas e políticas estão fincadas nas ciências humanas. A psiquiatria compõe a produção social, assim como a medicina.

Em tempos do capital, a produção social está subsumida à produção do capital. Assim, um dos agentes de produção da morte, sob o disfarce de vida, é a psiquiatria atual. Isso ocorre não apenas na produção do "organismo",  ao modo da medicina, mas na produção do corpo e dos afetos que são o próprio corpo. 

O corpo impregnado por fármacos é morte, é a morte em pessoa.

Trata-se de uma clínica abstrata mas com ações concretas. Formações de poder contam com isso para colonizar o inconsciente das massas.


A.M.

Delegações esvaziam assembleia da ONU antes de discurso de Netanyahu


Ela é nordestina

de voz grave e menina



Desperta o coração da gente

no verão das enchentes



Seu rosto invade

a tarde das auroras



Nordestina 

ela é a menina

dos meus olhos





A.M.

TUDO É POLÍTICA


Reconhecer uma dimensão politica constitutiva das ciências é, antes de tudo, compreender por que o conflito entre as ciências, é, antes de tudo, compreender por que o conflito entre as ciências e seus intérpretes é previsível assim que esses últimos comecem a julgar, ou seja relativizar, a distinção entre ciência e não-ciência. Os cientistas, ao longo de sua história, mostraram-se notavelmente intolerantes, ou mesmo indiferentes, para com os meios utilizados por seus intérpretes para dar conta desta distinção. Eles mesmos adiantaram a esse respeito toda  sorte de interpretações, do positivismo puro à busca mística (...)


Isabelle Stengers in A invenção política das ciências

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

BEATRIZ MILHAZES

 


— O meu nome é Severino,

como não tenho outro de pia.

Como há muitos Severinos,

que é santo de romaria,

deram então de me chamar

Severino de Maria

como há muitos Severinos

com mães chamadas Maria,

fiquei sendo o da Maria

do finado Zacarias.


Mais isso ainda diz pouco:

há muitos na freguesia,

por causa de um coronel

que se chamou Zacarias

e que foi o mais antigo

senhor desta sesmaria.


Como então dizer quem falo

ora a Vossas Senhorias?

Vejamos: é o Severino

da Maria do Zacarias,

lá da serra da Costela,

limites da Paraíba.


Mas isso ainda diz pouco:

se ao menos mais cinco havia

com nome de Severino

filhos de tantas Marias

mulheres de outros tantos,

já finados, Zacarias,

vivendo na mesma serra

magra e ossuda em que eu vivia.


Somos muitos Severinos

iguais em tudo na vida:

na mesma cabeça grande

que a custo é que se equilibra,

no mesmo ventre crescido

sobre as mesmas pernas finas

e iguais também porque o sangue,

que usamos tem pouca tinta.


E se somos Severinos

iguais em tudo na vida,

morremos de morte igual,

mesma morte severina:

que é a morte de que se morre

de velhice antes dos trinta,

de emboscada antes dos vinte

de fome um pouco por dia

(de fraqueza e de doença

é que a morte severina

ataca em qualquer idade,

e até gente não nascida).


Somos muitos Severinos

iguais em tudo e na sina:

a de abrandar estas pedras

suando-se muito em cima,

a de tentar despertar

terra sempre mais extinta,


a de querer arrancar

alguns roçado da cinza.

Mas, para que me conheçam

melhor Vossas Senhorias

e melhor possam seguir

a história de minha vida,

passo a ser o Severino

que em vossa presença emigra.


(Morte e Vida Severina - Introdução)João Cabral de Melo Neto

Nos cafundó de Bodocó - Sarah Leandro e o Forró de Bodocó

CIÊNCIA  E  POLÍTICA

 
Paul Feyerabend foi um filósofo da ciência notável por suas críticas contundentes à visão tradicional da ciência. Em seu livro “A Tirania da Ciência” (publicado originalmente como “The Tyranny of Science”), Feyerabend questiona a supremacia da ciência na sociedade moderna e argumenta que essa dominância pode ser prejudicial.

Relativismo Epistemológico
Feyerabend sustenta que a ciência não é a única forma válida de adquirir conhecimento. Ele defende o relativismo epistemológico, propondo que diferentes formas de conhecimento, como a arte, a religião e as tradições culturais, têm igual valor e legitimidade. De acordo com ele, a ciência deve ser vista como uma entre muitas maneiras de compreender o mundo, em vez de ser considerada a única fonte de verdade absoluta.

Crítica ao Método Científico
Um dos pontos centrais de Feyerabend é a crítica ao método científico. Ele contesta a ideia de que a ciência segue um único método rigoroso e universal. Feyerabend argumenta que, na prática, a ciência é muito mais anárquica e desorganizada do que seus proponentes geralmente admitem. Ele sugere que não há um método científico fixo, mas uma diversidade de métodos que variam conforme o contexto e a época.

Contra o Cientificismo
Feyerabend é um crítico do cientificismo, a crença de que a ciência é a melhor ou única forma de conhecimento e deve ser aplicada a todos os aspectos da vida humana. Ele alerta que essa perspectiva pode levar à marginalização de outras formas de saber e à imposição de uma visão de mundo reducionista.

Autonomia Individual e Cultural
Feyerabend defende a autonomia individual e cultural contra a tirania da ciência. Ele acredita que as pessoas e as culturas têm o direito de escolher suas próprias formas de conhecimento e prática, sem serem forçadas a se conformar aos padrões científicos. Ele vê a diversidade epistemológica como algo positivo e enriquecedor para a sociedade.

Pluralismo Metodológico
O autor promove o pluralismo metodológico, a ideia de que múltiplos métodos e abordagens devem ser aceitos e encorajados na busca do conhecimento. Feyerabend sugere que essa abordagem mais aberta e inclusiva pode levar a uma compreensão mais rica e completa do mundo.

Conclusão
“A Tirania da Ciência” de Paul Feyerabend é uma obra que desafia a visão tradicional da ciência e promove uma perspectiva mais pluralista e inclusiva. Ao criticar o método científico, o cientificismo e a dominação da ciência na cultura moderna, Feyerabend convida à reflexão sobre a diversidade de formas de conhecimento e a importância de respeitar e valorizar essa diversidade.

Paulo Gala, em 31/07/2024, sobre "A tirania da ciência" de Paul Feyerabend

Cafundó (2005) - oficial 4K

Que fazer da vida

para além da caatinga 

do Araripe?


O coração da gente 

bate depressa...


A.M




GRANDE POE


 

terça-feira, 23 de setembro de 2025

TECNOLOGIA DA IMAGEM: CLÍNICA E POLÍTICA 

A partir da "tecnologia da imagem" e seus atravessamentos corporais é possível ir à análise da demanda em saúde mental. Na atualidade o corpo (não o corpo-organismo, mas o corpo-desejo) é atingido em cheio por imagens-clichês, imagens-de-imagens que tornam o contato do eu  consigo mesmo uma experiência plugada aos fluxos semióticos. Eles vêm de fora, mas parecem vir "de dentro". É que a forma das instituições sociais (cf Guattari e outros) está interiorizada, subjetivizada num inconsciente que não mais passa por categorias edipianas (tal como a psicanálise o vê) mas por categorias planetárias, portanto, capitalísticas. A tecnologia da imagem torna-se pois um território de sentido de uma verdade subjetiva. Esta é veiculada por equipamentos de poder. Daí o homem moderno encarnar uma espécie de sonambulismo coletivo que a todos arrasta. A incrível aceleração da velocidade do tempo aniquila o Sentido. Efeitos práticos: na clínica, a psicose. Na política, o fascismo.


A.M. 

MENTIRAS NA ONU

domingo, 21 de setembro de 2025

UMA  PÉROLA  DA CRÔNICA DO FUTEBOL


"O resultado final foi injusto para o time A."

-Ora, o futebol não dispõe de um Tribunal para julgar resultados. Ele é essencialmente arte (criatividade) e por isso dispensa julgamentos. Apesar dos pressupostos racionais de cada time/clube ( nível técnico, condição física,  estrutura administrativo-financeira, tradição, etc) na prática o futebol é puro acaso. Um jogador "atrevido"  diante do jogo em que vai enfrentar um adversário nitidamente superior, costuma dizer : " Afinal,  futebol são onze contra onze..." Está certo!  Sobre o retângulo verde quase tudo é possível. Não por acaso Nelson Rodrigues criou o "placar moral ". Basta verificar a quantidade de zebras, algumas em jogos " raros" como na Copa do Mundo. Enfim, o futebol é imprevisível (olha o Sobrenatural de Almeida!), daí o seu encanto e a sua paixão. Talvez o VAR  tenha roubado um pouco desse encanto. No entanto, se máquinas não erram,  no futebol, mesmo o VAR, quem sabe?


A.M.


quinta-feira, 18 de setembro de 2025

(...)

Contra os que pensam “eu sou isto, eu sou aquilo”, e que pensam assim de maneira psicanalítica (referência à sua infância ou destino), é preciso pensar em termos incertos, improváveis: eu não sei o que sou, tantas buscas ou tentativas necessárias, não-narcísicas, não-edipianas – nenhuma bicha jamais poderá dizer com certeza “eu sou bicha”. O problema não é ser isto ou aquilo no homem, mas antes o de um devir inumano, de um devir universal animal: não tomar-se por um animal, mas desfazer a organização humana do corpo, atravessar tal ou qual zona de intensidade do corpo, cada um descobrindo as suas próprias zonas, e os grupos, as populações, as espécies que o habitam. Porque não teria direito de falar da medicina sem ser médico, já que falo dela como um cão? Por que razão não falar da droga sem ser drogado, se falo dela como um passarinho? E por que eu não inventaria um discurso sobre alguma coisa, ainda que esse discurso seja totalmente irreal e artificial, sem que me peçam meus títulos para tal? A droga às vezes faz delirar, por que eu não haveria de delirar sobre a droga?

(...)

Gille Deleuze -in  Carta a um amigo severo

(Tradução de Peter Pel Belbart)

 

Miguel no mundo

o Brasil dos calmos

dos pregadores da paz

dos nacionalistas exaltados

dos anunciadores do milênio

dos idólatras da modernidade


dos educados


afasta  de  mim

esse  cálice



A.M.

terça-feira, 16 de setembro de 2025

DA  EROSÃO  DO  SENTIDO

O processo de dissolução dos códigos (linguagens) e territórios ( valores) é uma caraterística básica do movimento do capital. Isso está em Marx logo no início de "O capital" quando analisa o fetichismo da mercadoria. Fluxos incessantes de mercadoria fazem do capital um movimento  em direção ao infinito. O lucro dos grandes capitalistas é infinito. O único modo de freá-lo  ( segundo o sistema atual) é naturalizar e idolatrar a função do Estado, onde a abstração da vida nua ( o corpo servil do trabalhador) se dissolve e se confina na ordem instituída de um poder aparentemente eterno: a nação, o Estado-nação. Desse modo, a formação da subjetividade se desenha como fratura subjetiva de sentido: quem eu sou? Este dado se verifica de modo simples e direto na multiplicação das sexualidades não reprodutivas. Dir-se - ia: onde vamos parar? A perplexidade do senso comum assola mais intensamente a subjetivação da extrema direita, já que ela está colada a valores antiquíssimos. Tais valores sustentam o desejo como representação mental e substituem a Realidade. Daí a angústia e o quase pânico do extremista de direita ( não que outros  não vivenciem esse afeto) mas a experiência da direita, da ultradireita, e por fim, das mil religiosidades transcendentes, confere aos seus "militantes" verdades arcaicas como garantia de que estão vivos. Em nosso tempo de imagens instantâneas, o ato de pensar diluiu-se como bolha de sabão. No seu lugar, palavras de ordem organizam o planeta como lugar da dor e do sofrimento eternos com ares de progresso científico.  Em tal cenário de Apocalipse, a ultradireita cresce e se expande como oração atéia e violenta ao céu que nos protege.

A.M.

POBREZA NOS EUA?

Eu sou o poeta do Corpo


Eu sou o poeta do Corpo

e sou o poeta da alma,

as delícias do céu

estão em mim

e os horrores do inferno

estão em mim

- o primeiro eu enxerto

e amplio ao meu redor,

o segundo eu traduzo

em nova língua.


Eu sou o poeta da mulher

tanto quanto o do homem

e digo que tanta grandeza existe

no ser mulher

quanta no ser homem,

e digo que não há nada maior

do que uma mãe de homens.


Canto o cântico da expansão e orgulho:

já temos tido o bastante

em esquivanças e súplicas,

eu mostro que tamanho

nada mais é do que desenvolvimento.


você já passou os outros,

já chegou a Presidente?

É pouco: até aí hão de chegar

e irão ainda mais longe.


Eu sou aquele que vai com a noite

tenra e crescente,

e invoco a terra e o mar

que a noite leva pela metade.

Aperte mais, noite de peito nu!

Aperte mais, noite nutriz magnética!

Noite dos ventos do sul,

noite das poucas estrelas grandes!

Noite silenciosa que me acena

- alucinada noite nua de verão!


Sorria, ó terra cheia de volúpia,

de hálito frio!

Terra das árvores líquidas e dormentes!

Terra em que o sol se põe longe,

terra dos montes cobertos de névoa!

Terra do vítreo gotejar da lua cheia

apenas tinta de azul!

Terra do brilho e sombrio encontro

nas enchentes do rio!

Terra do cinza límpido das nuvens,

por meu gosto mais claras e brilhantes!

Terra que faz a curva bem distante,

rica terra de macieiras em flor!

Sorria: o seu amante vem chegando!


Pródiga, amor você tem dado a mim:

o que eu dou a você, por tanto, é amor

- indizível e apaixonado amor!


Walt Whitman

sábado, 13 de setembro de 2025

VIAGENS DE MIGUEL

Miguel com 14 anos: tento acompanhar suas viagens azuis. A natureza o envolve em linhas fortes e sutis. Após breve silêncio,  fala que estava pensando se o mundo poderia ser de outro jeito. Como assim, Miguel? Ele decola a espaçonave do seu desejo pelo desconhecido. Move o corpo lépido, se ajeita no banco em que está sentado e se lança nas colinas de um pensamento em frescor incessante. Miguel marca presença no ar que eu respiro. Busco advinhar o ritmo das batidas do seu coração de estudante. E lá me vou numa doce aventura de afetos sem nome. Mesmo sem saber, ele me ensina o saber da minha história revisitada. Já fui Miguel, eu sou Miguel quando o encontro na saída da escola. E aêêêê rapaz!


A.M.


 


A ÙLTIMA SESSÃO DE MÚSICA

A ERA DO ÓDIO


1-Existe o “bolsonarismo”, ou seja, o fascismo à brasileira. Para facilitar a compreensão do argumento a seguir, usaremos o termo.

2-O bolsonarismo é uma cepa tropical do fascismo, doença psicossocial e política iniciada em 1922 na Itália.

3-No Brasil esta cepa assumiu características semiológicas peculiares. Há portadores sintomáticos espalhados por todos os cantos. Para tentar compreendê-los, usamos a referência clínica da psicopatologia.

4-Ele, o fascista, se julga uma boa pessoa (talvez seja de fato) amante dos valores do humanismo tipo senso comum. Linhas cristãs e mesmices do homem médio lhe compõem.

5-A atividade cognitiva costuma estar preservada. Nada de lesão cerebral ou disfunção dos neurotransmissores. Definitivamente, os neurocientistas  não o alcançam. Trata-se de um cidadão  normal.

6-O perfil social é o de classe média, habituada e identificada ao ritmo do consumo internético, veloz e massacrante. Ele não se importa. Até goza.

7-Apresenta ideação deliróide (quase delírio) ou delirante (delírio primário) com forte teor paranóide. Em um caso como no outro, “há um complô planetário em marcha”.

8-O seu objeto persecutório favorito alterna formas abstratas ( o comunismo, o esquerdismo) com formas concretas ( STF – Alexandre de Moraes, o “Xandão”). Sofre por isso.

9-Apesar da atividade cognitiva preservada, equivoca-se quando reduz a esquerda ao partido dos trabalhadores. E pior, ao Lula. Inútil contestá-lo. Há uma espécie de ideação endurecida que se afirma como verdade. 

10- Ora, "isso não teria problema", não assustaria ninguém se ele não usasse como combustível um ódio profundo e visceral à transformação social.



A.M.

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

 O JOGO

A diferença não é redutível às categorias da representação. Assim objetivada, a sua crucificação é fatal. Comumente, acontece;  isso é o normal natural, naturalizado.  Ou seja, não há como acessá-la ( e principalmente vivê-la) conforme as ferrramentas do senso comum, do bom senso, do eu, da identidade, da individualidade, e para dizer numa palavra, da consciência. A diferença não é a consciência, ela não tem consciência. Trabalhar com ela, buscá-la, amá-la, mormente numa experiência psicoterápica ou em qualquer área da vida, é (ou deveria ser)  a prática do devir. O que é isso? Ora, o devir é o processo do desejo, o conteúdo do desejo. Daí não ter uma forma, não ser visível, não se fazer notar, exceto se estivermos num registro de sensibilidade para os afetos que circulam loucos. No entanto, quem suporta tantas intensidades urdidas pelo jogo dos acasos? 


A.M.

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

O QUE É ISSO?

A extrema direita no Brasil vem cursando com e através de linhas subjetivas delirantes. São afetos de destruição ocultos por fundamentalismos de toda ordem.

Não se sabe quando isso começa, mas é possível situar em 2018. Não que não atuasse antes, mas 2018 é o ano em que as fake news são alavancadas por uma candidatura à presidência que se tornou vitoriosa. Ou o contrário, tanto faz.

Existe hoje apenas o fato histórico da produção internética de uma visão de mundo marcada por valores antigos e autoritários.

No fundo, uma recusa "irracional"  à democracia burguesa se tece na intentona do golpe.

Dizemos "irracional" porque isso não se coaduna com o projeto socialista, ao contrário.

O delírio da extrema direita fabrica suas metástases. Entre elas uma erosão de sentido invade a ideia de democracia e normatiza a subjetividade individuada do cidadão de bem. Um eu à deriva.

Surge então a figura caricata do patriota delirante. E os lideres dessa corrente neo-fascista  se aproveitam. Extraem  mais-valia de prestigio e  o voto secreto para 2026.

Não há ideologia. Não há ilusionismos de classe, o que talvez dissesse uma análise marxiana. Ao contrário, tudo se passa naturalmente à luz do dia, levado pelo fluxo das mídias sociais. 

Algoritmos do terror.



A.M.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Tarkovsky quartet: "Le temps scellé: Mychkine"

Mais do que em qualquer outra época, a humanidade está numa encruzilhada. Um caminho leva ao desespero absoluto. O outro, à total extinção. Vamos rezar para que tenhamos a sabedoria de saber escolher.


Woody Allen

Onde anda a política

que muda?

Onde  anda a muda

que floresce?


A.M.