O poder em Michel Foucault: a questão da liberdade
Tenho impressão de que a abordagem do poder como o entende Foucault tem desencadeado inúmeras confusões entre os estudantes e certo regozijo por parte de uma casta acadêmica adepta da versão tradicionalista de História. Vou tentar descrever minha interpretação em alguns posts aqui sobre essa problemática, de uma maneira bem esquemática e até simplista, esperando que ela sirva para desfazer preconceitos e/ou gerar discussões mais avançadas.
Diferentemente dos anarquistas e dos comunistas clássicos, Foucault não considera que o Poder seja uma coisa centralizada que emana de um só lugar (que seria o Estado ou a Ideologia da classe dominante representada pelo Estado). O poder é uma relação. Por ser uma relação não possui um controle já dado. Ou seja, tomar o lugar de onde emana o poder ou destituir uma classe dominante das decisões políticas não seria a libertação de todo o resto, mas somente um jogo de força a partir do qual novas configurações de poder se dariam. Embora, as classes burguesas gozem de certo domínio numa organização social capitalista, tal domínio se deve mais pela participação, ou resignação dos demais sob esse domínio do que pelo poderio meticuloso dela. Se pudermos falar de “dominação” digamos que essa se dá de maneira muito mais sutil do que pela propaganda da democracia representativa nos meios de comunicação institucionalizados e com interesses de “classe”. Outras instituições, menos visíveis que o Estado, e diretamente ligadas a ele, como a escola, o hospital, o hospício, a penitenciária, o asilo e, sobretudo, a família exercem um poder tão “grande” quanto o Estado. O maior problema é que levamos para o cotidiano através de nossos comportamentos as relações sociais apreendidas em tais instituições. As relações, de mando e de obediência, de patriarca e de filho, de diretor e de subordinado, que alimentam essas instituições devem mudar caso queiramos uma transformação na sociedade. Foucault explica que no stalinismo o “poder” do Estado mudou de mãos, as relações produtivas foram alteradas, mas não houve uma mudança substancial na URSS porque as instituições sociais citadas (escola, hospício, hospital etc.) continuaram existindo tais como eram antes da Revolução.
O poder não opera em um único lugar, mas em lugares múltiplos: a família, a vida sexual, a maneira como se trata os loucos, a exclusão dos homossexuais, as relações entre os homens e as mulheres...todas essas relações são relações políticas. Só podemos mudar a sociedade sob a condição de mudar essas relações (
Alguns pensadores modernos (como Habermas e alguns marxistas) denunciaram o Direito (as leis, o estado de Direito) como um veículo que possibilita a hegemonia da classe social "detentora" do poder político. O Direito para esses teóricos, mais do que garantir a justiça, garante a legitimidade das coisas continuarem sempre favoráveis a essa classe burguesa. Foucault concorda com tais análises, mas não cai em um reducionismo de dizer que o Direito só serve aos interesses da burguesia num Estado capitalista. Essa rede de poderes tecida pelo Direito possibilita também contestação, resistência e luta dentro do mesmo campo onde aparentemente seria a "casa da opressão de classe". Portanto, o Direito funciona sempre como uma disputa por ter criado ferramentas que podem servir tanto a um quanto ao outro que dele utilizam. O bacana é que Foucault enxerga isso sob um extremo pessimismo e desconfiança. Pois, para as classes "oprimidas" utilizarem esses mecanismos de poder é preciso que elas os reconheçam como legítimos, e assim acontece. Para alterar esse quadro não basta remodelar de dentro ou consertar as falhas e as injustiças existentes de dentro dele, mas é preciso dele se desembaraçar (no caso do Direito).
O poder para Foucault é uma positividade. É uma teia de relações. Não é possível estar fora dele. Porém, onde existe poder existe resistência. E a resistência não é uma recusa do poder, é uma disputa de poder, para poder fazer da sua vida o que bem entender. Como esse exercício era para "poder fazer", logo, ele transforma e expõe micro poderes que já existiam antes, que nos chegaram de alguma maneira através das relações culturais. Outro dia aqui no blog falávamos sobre a liberdade. Digamos o poder para Foucault se relaciona de modo parecido com a questão da liberdade. Ele só existe sob uma relação de construção. Para alterar as relações de poder é preciso que dela participemos. Não podemos mudá-las de fora como um ser acima do tempo e do espaço. Portanto, o poder não pode ser tratado somente como interdição, como uma “coisa ruim”, como um controle ligado a uma classe ou exercido pelo Estado. O poder também cria. A liberdade é do mesmo jeito, não tem sentido em querer liberdade sem participar de uma relação de certo “aprisionamento”. Chamo esse “aprisionamento” à relação que configura a luta por poder e por liberdade. Nesse sentido, a liberdade para Foucault nunca será uma libertação completa ou uma emancipação absoluta, simplesmente porque novos poderes, e por novas relações de mando se criam. A liberdade para ele está no exercício ininterrupto da resistência, da revolta e da recusa. A liberdade para ele não é um estado, mas uma ética.
Muniz Alves, do blog Tempos Safados
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