quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

DEVIRES 

O paciente vive  entristecido pela Grande Máquina. Sua alegria  foi aniquilada  em plena  vigília.  Do nada.   Ninguém assume  a  autoria dos pequenos  crimes.  Eles   são  administrados em nome da  paz  de espírito.  Ora, o   espírito  também caga.  Avise  aos últimos  palhaços  que  a    arte   foi  solapada em nome do ideal dos   homens  de branco.  Ao que  me consta, nada  mudou no sulco das  bocas. Elas falam rachando dentes.    Mastigam   auroras   nati-mortas.   Mas o   Rosto carrega  uma expressão justa, como negar? A  bondade natural dos  humanos.  Ó Lovecraft,  socorrei! Apenas uma   cidade  respirando um  arco-íris, manda por  favor...  Não falo por  mim. Por  mim, ó... Falo pelo que  não sou, falo  por  devires. Escutai   a  canção   do mundo... Você  dança?  O paciente sucumbe à  Ordem.  Por  favor, o senhor pode  me dizer  as  horas? Já vai  tarde o tempo dos  mestres, com todo  o  respeito.   Sonâmbulos da própria  dor,  como  falar  aos  que  não  falam? A  Grande Máquina é uma   pequena dose de benefícios a  curto e  médio   prazo. Ela  se  insinua na febre dos corredores infectos. Um susto, um sus.  Tudo é  contágio. Resistir à  morte,  querida, e fazer dessa vibração algo novo, será  possível? Talvez um devir-amante   imerso  em trepadas millerianas. Bicho,  perdoa  o jeito canino: o que  é necessário  para  viver por  viver?   Pacientes  são pacientes  demais.  Armaduras químicas, lições de casa, manuais de sobrevivência, coisas  simples, eles   são  normais. Eu queria um gosto de  sol  em você, em suas dores mais  intensas e  irremediáveis. Pena  que  a sombra dos quintais do passado  anuncie sessões de  tortura regadas à dinheiro. A entrega  é  às  oito. Todos estarão  lá, até o  chefe da  Facção Sinistra,  aquele  mesmo que  começou a seduzir  a multidão  com  truques de  falar  macio.  Não   tem jeito. Somos  inocentes radicais.


A.M.

67 milhões de brasileiros não terão um Feliz Ano Novo l Tales faria

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

 Anônimo


 Onde você estava no dia onze de agosto de mil

[novecentos e trinta e quatro?

No Natal de setenta e sete,

no inverno de mil duzentos e treze?

Onde você se encontrava na madrugada do dia


 [vinte para o próximo dia,

primeiro de janeiro do ano passado,

primavera de sessenta e nove

do século quarto?


Onde você passava quando já era tarde

e ninguém te chamava

naquela noite dos anos dourados?


Quando tudo acontecia e sumia sem deixar

[rastros, por onde você andava?


Bruno Brum

 

domingo, 27 de dezembro de 2020

Luiz Melodia - Que Loucura (Sergio Sampaio)

CONCEITO DE SAÚDE MENTAL

O conceito de "saúde mental"  constitui a essência da prática de um caps. Mesmo que não esteja explícito e/ou não operacionalizado, é o que move (ou deveria mover) o trabalho técnico. Vamos tentar descrevê-lo em dez ítens (poderiam ser mil, cem mil...). 1-"Saúde mental" se refere a um bem estar subjetivo inserido no conjunto das circunstâncias (condições) que chamamos de mundo; "mental" não é "cerebral", ainda que o cérebro seja um órgão, digamos, nobre. 2- O mundo é composto de instituições (família, escola, religião, estado, casamento, etc) e daí a saúde mental é avaliada junto ao funcionamento das instituições presentes em cada caso. É um conceito singular e mutável. 3-A saúde mental inclui, engloba a saúde do organismo visível (sistema de órgãos) do qual a medicina se ocupa (rins, fígado, coração e demais). Este organismo é essencial, mas não não é o objeto da pesquisa e da clínica em saúde mental. 4- Como a psiquiatria é uma especialidade médica, é importante descolar o conceito de saúde da psiquiatria (bom funcionamento do cérebro e adequação aos códigos sociais) do conceito de saúde mental (produtividade social, laboral e autonomia existencial). Dito de outro modo, separar a "saúde do cérebro" da "saúde da mente". 5- O cérebro, óbvio, é um órgão visível, palpável, mensurável. A mente é invisível, impalpável e não mensurável. Quem disser que já "viu, palpou ou mediu" a mente pode estar sofrendo de algum transtorno. 6- A técnica em saúde mental é regida por princípios éticos que valorizam a potência de viver uma clínica das singularidades em cada caso. Dai o uso do diagnóstico como função terapêutica e não como essência cadastrada (CID-10). 7- A posição antimanicomial é apenas um linha de combate que inspira e compõe as práticas em saúde mental. Há outras que não dizem respeito aos muros do manicômio. São linhas invisíveis que combatem microfascismos. 8 - A saúde mental é uma saúde da alma no sentido de lidar com o sem-forma. Ou seja, trabalhar sem crenças a priori (preconceitos); não sabe quem é o paciente. Retira o conceito de exame e põe no lugar o de "Encontro" não só com a pessoa do paciente, mas com tudo que lhe rodeia, o determina e o coage. 9- Saúde mental é um conceito que opera situações essencialmente práticas interferindo numa vida e mais que isso, produzindo uma vida. Daí florescer numa ética do Cuidado em oposição às redes institucionais modernas envelhecidas no "cuidado integral". ( corações manicomiais são apenas um dos exemplos). 10 - Concluindo, promover a saúde mental é promover a auto-saúde mental. A implicação numa clínica psicopatológica aberta às determinações (causas) múltiplas do sofrimento mental é a base para um trabalho (duro) no dia-a-dia de um caps.


A.M.

PLANO DE VACINAÇÃO


 

E O BRASIL?

SPUTNIK V NA ARGENTINA


Buenos Aires — O presidente argentino Alberto Fernández e os governadores do país decidiram, neste sábado, começar a vacinar os profissionais de saúde com doses russas de Sputnik V em menos de 72 horas, na esperança de que seja a base para aliviar as consequências graves do coronavírus.

— A ideia é que quando chegar o outono (no hemisfério Sul) teremos o maior número de pessoas em risco vacinadas, essa é a minha meta — disse o presidente do país sul-americano ao final do encontro virtual que realizou a partir da Residência Olivos em Buenos Aires com os representantes políticos de cada jurisdição.


O GLOBO, com agências internacionais, 26/12/2020, 20:37 hs

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Mais do que em qualquer outra época, a humanidade está numa encruzilhada. Um caminho leva ao desespero absoluto. O outro, à total extinção. Vamos rezar para que tenhamos a sabedoria de saber escolher.


Woody Allen

NÃO VEM MESMO!


 

QUEM FALA O QUE

Psiquiatra biológico - Estamos do lado da ciência neuro-biológica  e das  tecnologias  de ponta. Falamos em nome delas. Trazemos os modernos avanços das pesquisas em neurociência, principalmente quanto aos processos da memória. Na verdade,  afirmamos com convicçâo e fé que  somos a própria ciência. Trazemos a verdade do conhecimento científico para poder ajudar os portadores de transtornos mentais. Fora disso, não há solução. Só o charlatanismo, a taumaturgia, o esquerdismo e o caos nos serviços de saúde mental.

Representante da Luta Antimanicomial - Sobre o discurso acima,  é do tipo "glace de bolo". Tem uma casca humanista e científica ornando sua aparência de bondade, mas que não resiste a uma análise crua dos fatos. Os fatos são o funcionamento da sociedade: a pobreza e a miséria brutais. Esse discurso quer mais é assegurar o status médico. Sua ética deriva disso. É a ética do capital. O declínio dos manicômios (ainda que incompleto) pouco muda as coisas. Permanece a ótica psiquiátrica (mesmo entre os não-psiquiatras) encravada no corpo do paciente e sustentada por alianças políticas com instituições poderosas: a medicina, o estado, a mídia, os laboratórios farmacêuticos, o grande capital, etc... 


A.M.

domingo, 20 de dezembro de 2020

A DIREITA NO PODER

A direita, desde os avoengos, existia quando alguém (não uma pessoa, mas um coletivo) sentia a necessidade de argumentar (ou sofria o pavor) em face dos processos do afeto ou seja, dos devires: o inconsciente, não dentro do cérebro mas como campo social. Esse fato tem um alcance histórico-social que compõe a "evolução" da humanidade, sem dúvida, um pesadelo que não acaba nunca. Assim, a direita começa desde sempre como aquilo que freia os devires. Usamos esse conceito no plural porque não existe um devir único, universal para todos. Pensar assim é contrariar a natureza dos devires, toda ela grávida de criação ilimitada num tempo irreversível. Os devires constituem então o real em si mesmo, compondo mil territórios, cem mil, milhões de funcionamentos da subjetividade em qualquer região do planeta. Ora, já que é impossível, numa análise dos signos do real (as linguagens) abarcar toda a amplitude desses tempos irreversíveis, resta operar um peneira no caos da existência e estabelecer alguma verdade potencial, atuante, fragmentária e alegre.Tais pressupostos filosóficos não são abstratos, e sim ferramentas que fraturam os aparelhos de tortura da direita, por exemplo, no campo psiquiátrico. Aí, neste campo complexo e essencialmente ético-político, a ideação tosca da clínica psicopatológica da psiquiatria atual se expõe servilmente ao funcionamento do capital (mais, mais lucro, mais poder, mais controle...), gerando monstruosidades éticas em nome de um conceito espúrio de saúde mental. De volta ao início desse breve texto, a direita traça a sua linha performática das boas intensões administrativas na esteira de um cientificismo à la Comte. O discurso da saúde coletiva (e do SUS, óbvio) é escorraçado como delírio incurável.


A.M.

LIVE do Caetano de Natal #LivedoCaetanodeNatal

sábado, 19 de dezembro de 2020

As coisas que te cercam, até onde

alcança tua vista, tão passivas

em sua opacidade, que te impedem

de enxergar o (inexistente) horizonte,

que justamente por não serem vivas

se prestam para tudo, e nunca pedem


nem mesmo uma migalha de atenção,

essas coisas que você usa e esquece

assim que larga na primeira mesa —

pois bem: elas vão ficar. Você, não.

Tudo que pensa passa. Permanece

a alvenaria do mundo, o que pesa.


O mais é enchimento, e se consome.

As tais Formas eternas, as Ideias,

e a mente que as inventa, acabam em pó,

e delas ficam, quando muito, os nomes.

Muita louça ainda resta de Pompéia,

mas lábios que a tocaram, nem um só.


As testemunhas cegas da existência,

sempre a te olhar sem que você se importe,

vão assistir sem compaixão nem ânsia,

com a mais absoluta indiferença,

quando chegar a hora, a tua morte.

(Não que isso tenha a mínima importância.)



Paulo Henriques Britto

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

SOBRE OS AFETOS

Questão técnica : em psiquiatria clínica uma teoria da afetividade é essencial para estabelecer a relação com o paciente. Trata-se de uma análise dos afetos (bons e maus, construtivos e destrutivos) ; isso move a relação de cuidado. Questão ética: ao analisar seus próprios afetos, o psiquiatra se implica no trabalho com o outro como sendo um trabalho consigo mesmo. Questão política: entre as forças que compõem a relação vertical médico-paciente, é possível fazer um combate contra o poder que é a própria luta (invisível) pela saúde. Questão estética: na medida em que o psiquiatra é afetado pelo outro, torna-se um criador de formas de sensibilidade clínica até então atrofiadas pela medicina. Uma arte.


A.M. 

sábado, 12 de dezembro de 2020

Samory I - Rasta Nuh Gangsta [Official Video 2017]

 JEJUM


Cuspiu no prato em que comia

Tiraram o prato



Francisco Alvim

SIGNOS DO AMOR


(...) Apaixonar-se é individualizar alguém pelos signos que traz consigo ou emite. É tornar-se sensível a esses signos, aprendê-los  (como a lenta individualização de Albertina no grupo das jovens). É possível que a amizade se nutra de observação e de conversa, mas o amor nasce e se alimenta de interpretação silenciosa. O ser amado aparece como um signo, uma "alma": exprime um mundo possível, desconhecido de nós. O amado implica, envolve, aprisiona um mundo, que é preciso decifrar, isto é, interpretar. Trata-se mesmo de uma pluralidade de mundos; o pluralismo do amor não diz respeito apenas à multiplicidade dos seres amados, mas também à multiplicidade das almas ou dos mundos contidos em cada um deles. Amar é procurar explicar, desenvolver esses mundos desconhecidos que permanecem envolvidos no amado. É por essa razão que é tão comum nos apaixonarmos por mulheres que não são do nosso "mundo", nem mesmo do nosso tipo. Por isso, também as mulheres amadas estão muitas vezes ligadas a paisagens que conhecemos tanto a ponto de desejarmos vê-las  refletidas nos olhos de uma mulher, mas que se refletem, então, de um ponto de vista tão misterioso que constituem para nós como que países inacessíveis, desconhecidos: Albertina envolve, incorpora, amalgama "a praia e a impetuosidade das ondas". Como poderíamos ter acesso a uma paisagem que não é mais aquela que vemos, mas, ao contrário, aquela em que somos vistos? "Se me vira, que lhe poderia eu significar? Do seio de que universo me distinguia ela?"

Há, portanto, uma contradição no amor. Não podemos interpretar os signos de um ser amado sem desembocar em mundos que se formaram sem nós, que se formaram com outras pessoas, onde não somos, de início, senão um objeto como os outros. O amante deseja que o amado lhe dedique todas as suas preferências, seus gestos e suas carícias. Mas os gestos do amado, no mesmo instante em que se dirigem a nós e nos são dedicados, exprimem ainda o mundo desconhecido que nos exclui. O amado nos emite signos de preferência; mas, como esses signos são os mesmos que aqueles que exprimem mundos de que não fazemos parte, cada preferência que nós usufruímos delineia a imagem do mundo possível onde outros seriam ou são preferidos. "Mas logo o ciúme, como se fosse a sombra de seu amor, se completava com o double desse novo sorriso que ela lhe dirigira naquela mesma noite – e que, inverso agora, escarnecia de Swann e enchia-se de amor por outro... De sorte que ele chegou a lamentar cada prazer que gozava com ela, cada carícia inventada e cuja doçura tivera a imprudência de lhe assinalar, cada graça que nela descobria, porque sabia que dali a instantes iriam enriquecer de novos instrumentos o seu suplício." A contradição do amor consiste nisto: os meios de que dispomos para preservar-nos do ciúme são os mesmos que desenvolvem esse ciúme, dando-lhe uma espécie de autonomia, de independência, com relação ao nosso amor. 

A primeira lei do amor é subjetiva: subjetivamente o ciúme é mais profundo do que o amor; ele contém a verdade do amor. O ciúme vai mais longe na apreensão e na interpretação dos signos. Ele é a destinação do amor, sua finalidade. De fato, é inevitável que os signos de um ser amado, desde que os "expliquemos", revelem-se mentirosos: dirigidos a nós, aplicados a nós, eles exprimem, entretanto, mundos que nos excluem e que o amado não quer, não pode nos revelar. Não em virtude de má vontade particular do amado, mas em razão de uma contradição mais profunda, que provém da natureza do amor e da situação geral do ser amado. Os signos amorosos não são como os signos mundanos: não são signos vazios, que substituem o pensamento e a ação; são signos mentirosos que não podem dirigir-se a nós senão escondendo o que exprimem, isto é, a origem dos mundos desconhecidos, das ações e dos pensamentos desconhecidos que lhes dão sentido. Eles não suscitam uma exaltação nervosa superficial, mas o sofrimento de um aprofundamento. As mentiras do amado são os hieróglifos do amor. O intérprete dos signos amorosos é necessariamente um intérprete de mentiras. O seu destino está contido no lema "Amar sem ser amado". 

(...)

Gilles Deleuze in Proust e os signos


 

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

DESAPARECIDA


Ela desapareceu ontem à noite:


Vestia sapatos obscenos


e aparentava a tristeza de um amor sem fim.


Sofre de alguns probleminhas mentais,


consequências de um passado


que não passa mais.


Foi vista pela última vez na noite de ontem,


na porta de sua casa.


Quem souber noti¬¬cias dela,


quem souber seu paradeiro,


por favor não diga nada,


por favor


me deixe em paz



Flávio de Castro

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

O CHOQUE DO REVOGAÇO


 

DIRETORIA DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
PSIQUIATRIA – ABP GESTÃO 2020-2022

 

A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) como representante legítima
de 12.000 psiquiatras brasileiros defende, veementemente, a melhor
assistência possível em Saúde Mental para a população seguindo os
princípios do Sistema Único de Saúde e da Lei 10.216 de 2001.
Os Transtornos Mentais são doenças crônicas altamente prevalentes
no mundo e contribuem para morbidade, incapacidade e mortalidade
precoces. Calcula-se que 25% da população geral apresentem um ou
mais transtornos mentais ao longo da vida (Rodriguez et al, 2009).
Somados aos transtornos neurológicos, representam 14% da carga global
de doenças, sendo que na América Latina atinge 21% (OMS, 2008). Nos
países em desenvolvimento, a defasagem no tratamento (proporção dos
que necessitam deste e não o recebem) chega a 75%. Na América Latina
esta taxa deve ser maior, pois a qualidade e a efetividade do tratamento,
como também as comorbidades, não são estudadas (PAHO, 2009). Um
estudo publicado em 2012 mostrou que na região metropolitana de São
Paulo 29,6% da população apresenta transtorno mental, sendo que em
dois terços ele era em grau moderado ou grave (Andrade et al 2012).
Desde 1995 a política de saúde mental dominante no Brasil adota como
premissa do seu modelo assistencial a desvalorização do saber psiquiátrico
e redução do papel do psiquiatra. O psiquiatra vem sendo colocado como
profissional secundário e prescindível à Psiquiatria. A assistência à Saúde
Mental implementada pelos governos ao longo deste período continua
baseada nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de eficácia não
demonstrada como serviços de reabilitação e reinserção social.
A Lei Federal 10.216 /2001 determina o redirecionamento do modelo
assistencial, garantindo ao paciente o melhor tratamento do sistema de
saúde, consentâneo às suas necessidades, mas isto não tem sido efetivado
no país.
A ABP discorda da construção de modelos assistenciais em saúde
mental centrados em um único serviço, seja qual for. A saúde mental
exige serviços diferentes para necessidades diferentes. A Coordenação
de Saúde Mental do Ministério da Saúde por décadas investiu na
desospitalização sem o concomitante investimento nos equipamentos
complementares, nem na qualificação de serviços hospitalares e extrahospitalares, 
o que está levando a uma desassistência generalizada.
A maior demanda observada hoje, e sem assistência adequada, é
por atendimento secundário efetivo aos transtornos mentais de alta
prevalência, os quais, em geral, têm bom potencial de resposta terapêutica.
São eles: o primeiro episódio psicótico, as depressões, o transtorno
afetivo bipolar, os transtornos ansiosos, somatoformes e alimentares, e o
abuso e a dependência de álcool e outras substâncias. Atenção especial
e emergencial deve ser dada aos quadros prevalentes em crianças,
adolescentes, mulheres, principalmente às gestantes e idosos.

          I - INTRODUÇÃO  

A elaboração de um modelo de assistência em saúde deve levar em conta
a rede de atendimento atualmente existente melhorando sua eficiência.
Nesse sentido, os Ambulatórios de Saúde Mental e as Unidades
Psiquiátricas em Hospitais Gerais são indispensáveis para uma rede
eficaz. Uma Unidade Psiquiátrica em Hospital Geral (UP-HG) não deve
ser confundida com simples “leitos psiquiátricos em HG”, sem equipes
treinadas. No entanto, um moderno Hospital Psiquiátrico pode ser uma
instituição aberta e ter um custo operacional menor do que igual número
de leitos em Hospitais Gerais. Ele pode ter ambientes diversificados
e equipes multiprofissionais dedicadas ao atendimento específico
e diferenciado a psicoses, transtornos do humor, álcool e drogas,
adolescência, psicogeriatria, etc.
Há demandas que necessitam de maior atenção. Com o aumento da
expectativa de vida dos doentes mentais há uma demanda cada vez maior
de pacientes que necessitam de serviços que possam propiciar cuidados
prolongados de enfermagem. O Transtorno de Uso de Substâncias (TUS)
vem se tornando um problema crescente e com repercussões além da
área da saúde. Outro problema grave e crescente é o das taxas de suicídio.
Levando em conta estudo demonstrando que há relação comprovada
entre suicídio e doença mental (96,8%) e que o tratamento da doença
mental de base é a forma mais eficaz de prevenção do suicídio, a atual
desassistência tem como consequência pelo menos 10.000 mortes ao
ano. (MS).
Um problema no planejamento das políticas públicas voltadas para a
Saúde Mental é que a qualidade e a resolutividade dos serviços não são
avaliadas: o que é feito, onde, para quem, por que, como, a que custo e
com quais resultados. Ou seja, instrumentos e programas de avaliação
devem ser implementados sob o risco de perpetuar serviços ineficazes.
A médio e longo prazo será necessário valorizar o ensino da Psiquiatria
nos currículos de graduação, incluindo-a entre as “grandes áreas da
Medicina”. Da mesma forma, os enfermeiros, psicólogos e demais
profissionais de Saúde Mental deverão receber informações atualizadas
e treinamento específico em técnicas de intervenção de eficácia
comprovada cientificamente. Avalia-se que cerca de 3% do currículo
nas faculdades de medicina são dedicados a temas de saúde mental
(psicologia médica e psiquiatria).
(...)

          Extraído de "Diretrizes para um modelo de Atenção Integral em Saúde Mental no Brasil"

sábado, 5 de dezembro de 2020

APOCALIPSE, NÃO?

As tecnologias da imagem, veiculadas pelos equipamentos de informação e comunicação (internet, celulares, TVs, etc) produzem formas de sentir, perceber, pensar e agir que chamamos de subjetividade contemporânea. Este fato atualíssimo alterou profundamente a consciência, o eu, a razão, valores, códigos, afetos, enfim, elementos psíquicos que respondiam pelo que outrora se chamava "pessoa". O "mundo interno", então constituído como território existencial de si mesmo, espécie de autonomia individual do ser-no-mundo, se desfez, se desfaz e desmorona a olhos vistos. Simples: considere o aumento da morbidade dos transtornos mentais. A fenomenologia e todas as doutrinas do pensamento calcadas no poder da consciência (inclusive o materialismo histórico) ruiram sob o efeitos da era da Tecnologia, ao que parece irreversível.  Veio para ficar. Nós não somos mais nós mesmos. De toda a parte as notícias e os comunicados chegam como recheio subjetivo para fatos, situações, tragédias, acontecimentos que não nos dizem respeito e ao mesmo tempo nos dizem respeito. O tempo não é mais a temporalidade de uma vivência e sim, ao contrário, a vivência é que está no Tempo Mundial (que importam os fusos horários?) e transfigura em éter o que era tão certo como este corpo-aqui-visível-de-carne. Há uma rachadura nas certezas do eu. As crenças vacilam. O virtual é o real. Não mais existe "o tempo vivido", mas o tempo mundial descarnado, evaporado, codificado, por exemplo, em mensagens do zap, a confluir naquilo que Virilio chama de cataclísma. Uma velocidade estonteante do tempo desconcerta a todos, mesmo quem não o saiba.Trata-se de uma mudança "espiritual" muito mais profunda do que se imagina, já que as comodidades objetivas (o mundo-em-mim-sem-sair-de-casa) escondem e legitimam a vertigem da loucura do cotidiano normal. Não mais é possível a nostalgia de tempos idos (bons tempos!) sob pena de afundarmos numa depressão coletiva. O que fazer? Não se tem a menor idéia! Em suma, as tecnologias da imagem nos fabricam à sua imagem e semelhança qual um deus profano que se expressa e se impõe pela ubiquidade, simultaneidade e pelo desaparecimento do passado e do futuro, portanto, da História. Se há um devir-revolucionário (sempre há!) ele é tragado pelas ondas gigantescas das imagens planetárias. Um novo conservadorismo sóciopolítico emerge; a direita se reveste de ciência triunfante. O axioma do progresso técnico se afirma como religião do capital. A busca de referências de sentido muitas vezes se instalam em fascismos políticos ou religiosos. Ou as duas coisas.Todos rezam. 


A.M.

  aumente o volume

  do teu grito


     Nicolas Behr

MIL ENCONTROS

Em tempos idos, trabalhamos o conceito de Encontro a partir de Espinosa, Moreno, Martin Buber e Deleuze-Guattari. Estes autores compuseram uma espécie de matriz teórica para pensar o Encontro, considerando-se o próprio-Encontro-com-eles. No entanto, para além de um cais seguro, outros autores foram conectados, formando um extenso rizoma onde e por onde linhas de pesquisa se tecem. Mais ainda além e aquém de tais conexões, o conceito de Encontro passou a ser engendrado no devir da clínica em psicopatologia. Observamos: a cada processo terapêutico aparecem signos que enriquecem o conceito, tornando-o peça essencial na construção de uma prática-clínica da diferença. Alguns desse signos podem ser registrados como balizas existenciais numa aventura em plagas do novo, do indeterminado e do desconhecido. Mistério da subjetividade. Em primeiro lugar, o signo da loucura como o lugar do não-lugar das significações prévias. Deserto de valores, vazio de sentido. Em segundo, o signo da morte, da finitude, da perplexidade em face do fio tênue da vida atravessando os discursos. Em terceiro, a irreversibilidade do tempo que passa e não volta jamais, truísmo imbricado na economia psíquica, e por isso nem sempre valorizado. Em quarto, a inferência direta do fracasso monumental da estadia da humanidade na Terra e o seu pesadelo do qual não se desperta. Em quinto, a relação indissociável dos modos de subjetivação com as formas sociais expressas segundo a ordem do capitalismo aparentemente vencedor. Tais pontos de ancoragem do pensamento do Encontro com a diferença podem e devem transmutar-se em mil linhas de intervenção prática na clínica psicopatológica, de onde se pode extrair a alegria de experimentar novos encontros. Sem garantias de poder, felicidade, sucesso,  dinheiro, prestígio, valores humanos, demasiado humanos, como diria o bigodudo alemão do século XIX.


A.M.

ALEXI ZAITSEV


 

O JOGO DA VIDA

Consideramos o futebol um esporte singular. Arrasta multidões, movimenta paixões como nenhum outro esporte. Sem considerar os aspectos extra-esportivos (econômicos, culturais, políticos, sociais etc) eis aqui ONZE obervações.1-Ele é trágico (intrinsecamente alegre) : expressa o imprevisível, o inesperado, a surpresa... Daí as famosas zebras e o personagem de Nelson Rodrigues "o sobrenatural de Almeida". Aos 49 min. do 2º tempo a bola bateu nas duas traves, passou por trás do goleiro e não entrou. Ou a constatação (por vezes, dolorosa)  de que nem sempre ganha o melhor. 2- O futebol trabalha basicamente (exceto o goleiro) com os pés, órgão  do corpo que não possui a mesma precisão motora  das mãos. 3-Algumas de suas regras são imprecisas, de difícil aplicação no tempo da jogada. Dois exemplos: a falta e o impedimento. Jornalistas idiotas passam horas discutindo o penalty que o juiz não marcou num segundo que teve para decidir... 4-Como consequência do ítem anterior, o juiz tende a errar muito, chamado e confundido com o "juiz ladrão"; 5- No entanto, esse personagem ("juiz ladrão") existe de fato, ao ponto de Nelson Rodrigues "defender" a sua "eterna"presença numa partida de futebol. 6- O futebol é plástico, coreográfico, artístico, o que o coloca para além do aprimoramento da técnica e/ou da profissionalização estrita. Romário disse que nunca foi um atleta... 7- Tomando por base as equipes que vencem, afirmamos que ele é basicamente coletivo, ainda que uma jogada individual possa decidir  o jogo. É que essa jogada individual necessita de um solo firme para nascer. Este"solo firme" pode ser, por exemplo, um médio volante que funciona apenas tomando a bola do adversário e passando-a para o "gênio". Quem é mais importante? 8-Numa partida há oscilações de ritmo, produtividade, humor, ansiedade, que contaminam todo o time. Fatores relacionais (entre companheiros, entre companheiros e adversários, entre o juiz e os jogadores) escapam à observação do torcedor. Isso, claro, acontece em outros esportes, mas no futebol há uma irrupção do novo: " aquela expulsão mudou o rumo do jogo" 9- No contexto anterior, ocorrem"tempos mortos", ou seja, momentos em que nada parece acontecer. A partida se arrasta, se arrasta, quando, de repente... 10- O futebol é "democrático" em suas tragédias ocasionais. Ou seja, qual o time, qual o clube, qual o país que não já sofreu derrotas memoráveis, ainda que tenha vivido outros momentos de glória...? Qual? A seleção canarinho é um ótimo exemplo: 5 vezes campeã mundial, mas oh 7x1 em 2014 , mas oh 2x1 em 1950... etc. 11- Por fim, tudo que foi dito acima não existiria sem um território coletivo (o povo) de intensidades múltiplas e móveis: a experiência da  loucura  encarnada  na torcida.


A.M.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Mater dos céus, regina-mãe das nuvens,

Cetro do sol, ó solidéu da lua,

Não há nada, não, não, nada jamais

Como o choque de dois verbos mortais.”

Era dela que eu ria triunfante-

Mente ou era de mim mesmo que eu ria?

Antes eu fosse uma pedra pensante.

Espumas do pensar trazem à tona a

Radiante bolha que ela foi. E então,

O jato de uma fonte mais salgada

Explode em mim a sílaba de água.


Wallace Stevens


(tradução de Augusto de Campos)