Este blog busca problematizar a Realidade mediante a expressão de linhas múltiplas e signos dispersos.
domingo, 30 de maio de 2021
O fazedor de amanhecer
Sou leso em tratagens com máquina.
Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.
Em toda a minha vida só engenhei
3 máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono.
Um fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.
Fui aclamado de idiota pela maioria
das autoridades na entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre
em minha existência.
Manoel de Barros
sexta-feira, 28 de maio de 2021
CONCEITO DE SAÚDE MENTAL
O conceito de "saúde mental" constitui a essência da prática de um Caps. Mesmo que não esteja explícito e/ou não operacionalizado, é o que move (ou deveria mover) o trabalho técnico. Vamos tentar descrevê-lo em dez ítens (poderia ser mil, cem mil...). 1-"Saúde mental" refere-se a um bem estar subjetivo inserido no conjunto das circunstâncias (condições) que chamamos de mundo; "mental" não é "cerebral", ainda que o cérebro seja um órgão, digamos, nobre. 2- O mundo é composto de instituições (família, escola, religião, estado, casamento, etc) e daí a saúde mental é avaliada junto ao funcionamento das instituições presentes em cada caso. É um conceito singular e mutável. 3-A saúde mental inclui a saúde do organismo visível (sistema de órgãos) do qual a medicina se ocupa (rins, fígado, coração e demais). Este organismo é essencial, mas não é o objeto da pesquisa e da clínica em saúde mental. 4- Como a psiquiatria é uma especialidade médica, é importante descolar o conceito de saúde da psiquiatria (bom funcionamento do cérebro e adequação aos códigos sociais) do conceito de saúde mental (produtividade social, laboral e autonomia existencial). Dito de outro modo, separar a "saúde do cérebro" da "saúde da mente". 5- O cérebro, óbvio, é um órgão visível, palpável, mensurável. A mente é invisível, impalpável e não mensurável. Quem disser que já "viu, palpou ou mediu" a mente pode estar sofrendo de algum transtorno. 6- A técnica em saúde mental é regida por princípios éticos que valorizam a potência de viver uma clínica das singularidades em cada caso. Dai o uso do diagnóstico como função terapêutica e não como essência cadastrada (CID-10). 7- A posição antimanicomial é apenas um linha de combate que inspira e compõe algumas práticas em saúde mental. Há práticas que não dizem respeito aos muros do manicômio. São linhas invisíveis que combatem microfascismos. 8 - A saúde mental é uma saúde da alma no sentido de lidar com o sem-forma. Ou seja, trabalhar sem crenças a priori (preconceitos); não saber quem é o paciente. Retirar o conceito de exame e por no lugar o de "Encontro", não só com a pessoa do paciente, mas com tudo que lhe rodeia, o determina e o coage. 9- Saúde mental é um conceito que opera situações essencialmente práticas interferindo numa vida e mais que isso, produzindo uma vida. Daí florescer numa ética do Cuidado em oposição às redes institucionais modernas envelhecidas no "cuidado integral". ( corações manicomiais são apenas um dos exemplos). 10 - Concluindo, promover a saúde mental é promover a auto-saúde mental. A implicação numa clínica psicopatológica aberta às determinações (causas) múltiplas do sofrimento mental é a base para um trabalho (duro) no dia-a-dia de um Caps.
A.M.
quinta-feira, 27 de maio de 2021
sexta-feira, 21 de maio de 2021
SEM EU
Ao final do expediente no Caps, o psiquiatra se prepara para sair, quando um barulho forte invade a sua sala. Veio do lado. Ao avistar um paciente em estado de desespero, choro, agonia e delírio, o psiquiatra viaja nas planícies acinzentadas do seu próprio pensamento, apesar de estar contido nas teias da razão médica. Em torno de si e para si ele se encurva num movimento dolorosamente imperceptível. Pensa em silêncio o próprio silêncio da morte em vida. De há muito sabe (e compreendeu) que não existe a esquizofrenia como entidade clínica, a que é formatada pela ciência biomédica. Isso (evidente) é uma fraude neurofabricada ao longo da história da psiquiatria. No entanto, existe, existe sim a experiência esquizofrênica, a qual se expressa fora dos enquadres normais da convivência humana. Mas ela não está fora da normalidade. Ela, a experiência, é o próprio fora como território afetivo órfão, um traste psíquico (não explícito) de acordo com o código internacional dos transtornos mentais, o CID. A desrazão assombra e desconcerta o senso comum, preciosa linha subjetiva que naturalmente costuma organizar a pessoa e sua conduta civilizada. No universo da loucura a experiência esquizofrênica dilacera o próprio eu, não só cindindo-o, estilhaçando-o, mas fazendo dele um mero joguete das intensidades mais destrutivas. Quem sou senão o produto de mil forças que escapam ao controle? Ao contrário, me controlam, me compõem, me impõem, me levam, me determinam, fazendo do mundo (mesmo num Caps) um lugar onde não mais me reconheço. É essa alma errante que configura o choro convulso no aniquilamento da subjetividade humilhada diante dos homens saudáveis. Que fazer diante de tanto desamparo existencial, psiquico, social, linguístico, ontológico e espiritual? Do outro lado da rua, do outro lado do muro chega a notícia de que não podem ajudá-lo porque ele tem um transtorno da personalidade. Um estigma científico. O horror de tal notícia ecoa nos tímpanos estourados de uma psiquiatria que já "não ouve vozes", pelo menos não mais a voz dos seus pacientes. Um pouco mais tarde, o psiquiatra fica sabendo que aquele era o seu dia, o dia do psiquiatra...
A.M.
O ORÇAMENTO SECRETO QUE BLINDA BOLSONARO
“Há tempos estamos lutando por esta verba em Brasília e aqui ressaltamos o importante papel desempenhado pelo senador Eduardo Gomes (MDB)”, agradeceu Celso Morais, prefeito emedebista de Paraíso do Tocantins, cidade de 51.000 habitantes localizada a 63 quilômetros da capital Palmas, ao anunciar a chegada de 38 milhões de reais para o município, na segunda-feira passada. Estava ao lado de representantes da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco (Codevasf), vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional e Urbano. “A equipe técnica já está em campo fazendo os levantamentos necessários para que a obra seja licitada e venha a ser executada o mais breve possível no município”, disse o prefeito. Morais também agradeceu ao deputado federal Carlos Henrique Gaguim (DEM-TO) pela ajuda durante a cerimônia de entrega simbólica do dinheiro —que só foi possível depois de uma emenda do senador, líder do Governo do presidente Jair Bolsonaro no Congresso. A verba para Paraíso do Tocantins vem do que ficou conhecido como orçamento secreto, um mecanismo para repassar recursos federais a bases eleitorais de aliados na Câmara dos Deputados e no Senado sem regras ou supervisão popular em um valor total de pelo menos 3 bilhões de reais.
O escândalo, também chamado de “bolsolão” ou de “tratoraço”, foi revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo. A destinação do dinheiro não ocorreu pelo caminho mais natural: as emendas parlamentares tradicionais, a que todos os parlamentares tem direito no orçamento que é votado todos os anos, são públicas e possuem os recursos fiscalizados pelos órgãos de controle, o que permite uma maior transparência do dinheiro. Ocorreu por um novo mecanismo criado pelo Congresso, batizado de emenda do relator, que corre de maneira legal mas extraoficial. Só quem tem o controle das emendas e seus valores é o Palácio do Planalto e os congressistas envolvidos na negociação. Elas não são descriminadas em nenhum lugar, não tem seu vínculo com os parlamentares que as indicaram registrado oficialmente e, assim, essa relação não passa por escrutínio público ou de órgãos de controle como o TCU. Também não há limite claro para o montante que cada parlamentar pode destinar. Na reportagem, o jornal teve acesso a pelo menos 101 ofícios entregues por esses deputados e senadores, a maioria do chamado Centrão, que garante a sustentação política de Bolsonaro, ao Ministério do Desenvolvimento Regional ou diretamente à Codevasf. Outros pedidos de verba foram feitos verbalmente. O rastro do dinheiro, desta forma, ficou longe dos olhos públicos e só foi possível conhecê-lo graças ao esforço de reportagem. Além de destinar verbas apenas para políticos aliados, o que fere o princípio da distribuição equânime de emendas parlamentares, o mecanismo permitiu que os beneficiados extrapolassem o limite de 16 milhões por ano e emendas individuais cada um.
De acordo com o Estado de S. Paulo, parte do dinheiro foi destinada à compra de tratores e de outras máquinas pesadas, mas obras de infraestrutura país afora também foram contempladas. Partidos de esquerda como PT, PSB, PSOL, PCdoB, PDT e REDE, que fazem oposição ao presidente no Congresso, além do direitista NOVO, apresentaram três pedidos de investigação do caso ao Tribunal de Contas da União (TCU) e ao Ministério Público Federal. O subprocurador-geral junto ao TCU, Lucas Rocha Furtado, também pediu que o tribunal investigue as denúncias feitas pelo jornal. O próprio TCU já havia aberto um procedimento no início do ano após levantar indícios de irregularidades em pregões eletrônicos promovidos pela Codevasf em obras contempladas pelo dinheiro do orçamento secreto.
Em um passeio por sites e páginas em redes sociais de prefeituras, Governos do Estado, jornais e blogs locais país afora, é possível ver o resultado prático desse arranjo. Prefeitos e governadores inauguram obras e recebem equipamentos vistosos com os recursos conseguidos com a ajuda de aliados e padrinhos políticos em Brasília. Em troca, oferecem agradecimentos efusivos, recebem com festa os parlamentares que enviaram as benfeitorias, e apoiam suas campanhas, oferecendo palanques. Com isso, o parlamentar reforça sua base eleitoral para a próxima eleição. E assim a engrenagem do poder se mantém: o presidente que autorizou o envio da verba consegue apoio no Congresso para aprovar seus projetos e evitar crises políticas que podem levar até a um impeachment —Bolsonaro tem dezenas de pedidos a espera de uma autorização do presidente da Câmara, Arthur Lira, também contemplado por verbas do orçamento secreto. Independentemente de qualquer suspeita de desvio ou corrupção, é um arranjo que vale a pena para todos os envolvidos.
As obras previstas em Paraíso do Tocantins com a verba obtida via orçamento secreto ―pavimentação asfáltica, recapeamento, drenagem e sinalização de vias públicas em seis bairros― não têm projeto, edital nem licitação prontos. Isso apesar de ser uma demanda antiga da cidade (era pleiteada pelo menos desde 2019) e o dinheiro em questão já estar liberado e ser parte de um convênio assinado desde dezembro com o Codevasp. “A Codevasf celebrou com o município convênio cujo plano de trabalho encontra-se em fase de elaboração”, afirma a assessoria de imprensa da companhia ao EL PAÍS. “A seleção da empresa que realizará os serviços ocorrerá por meio de processo licitatório, a ser organizado pelo município”, segue a nota, que explicita que a companhia recebeu os recursos por meio do Termo de Execução Descentralizada (TED) nº 138/2020, do Ministério do Desenvolvimento Regional.
Para conseguir os recursos, Eduardo Gomes não enviou ofícios ao Ministério do Desenvolvimento Regional ou à Codevasf, como algum dos colegas parlamentares que usaram recursos do orçamento secreto. Foi diretamente à sede da companhia em Brasília, com o prefeito Morais, no dia 3 de maio, conforme documentou a assessoria de imprensa do prefeito e a imprensa local. A pauta da reunião com Marcelo Moreira, presidente da Codevasf, era a liberação do dinheiro. Também participaram da reunião o deputado federal Carlos Gaguim (DEM) e a secretária de infraestrutura do Tocantins, Juliana Passarim. Uma semana depois, o prefeito anunciou a chegada do dinheiro e disse que os projetos estão em fase final de elaboração.
Segundo a assessoria de imprensa do senador Eduardo Gomes, o valor total da emenda destinada por ele via Codevasf a Paraíso é de “40 milhões de reais com valor líquido de 38 milhões, repassados por convênio da Codevasf com execução da Prefeitura municipal, para asfaltamento na cidade de Paraíso”. De acordo com a assessoria, não há nada de secreto ou incomum na forma que o repasse foi feito ao município, já que o montante sai do Orçamento Geral da União aprovado no Congresso.
Em Tocantins, o nome do senador na entrega de obras e equipamentos milionários tem sido uma constante nos últimos tempos. Em dezembro, Gomes anunciou ao lado do governador, Mauro Carlesse, a liberação de 30 milhões para o projeto de irrigação do Rio Formoso. “Quero agradecer ao presidente Jair Bolsonaro”, afirmou ele ao jornal Gazeta do Cerrado. “Só na primeira etapa são 150 milhões, 30 milhões já foram liberados. É o começo de um grande ciclo de obras”, disse. O dinheiro saiu da Codevasf. Em outra entrevista ao mesmo jornal, anunciou mais três projetos de asfaltamento de vias no Estado: 5 milhões para o município de Araguatins, 2,5 milhões para Sítio Novo e 2,5 milhões para Arapoema. A reportagem contou outros 86 milhões de reais da Codevasf em quatro projetos ou entregas de máquinas anunciados sem a participação ou menção ao senador Tocantins afora do ano passado para cá.
O ex-deputado federal Homero Barreto, chefe do recém-criado escritório da Codevasf no Tocantins, no início do ano passado com um orçamento de cerca de 200 milhões de reais, é uma indicação do Centrão, no geral, e do senador, em particular. A região hidrográfica dos rios Tocantins-Araguaia foi incluída na área de atuação da Codevasf por meio uma lei, em agosto de 2018. Atualmente, a área de atuação da empresa abrange 27% do território nacional, em 12 Estados e no Distrito Federal. Isso corresponde a 1.641 municípios.
“O que seria destinado por critérios técnicos passou a obedecer interesses políticos paroquiais sem transparência, pois apenas os ministérios sabem quem indicou o que, para onde, com qual valor... É um mensalão disfarçado de emendas parlamentares, compra explícita de apoio político”, afirma Gil Castello Branco, da Associação Contas Abertas. “Em plena pandemia, sem recursos para Universidades, pesquisas, Ciência e Tecnologia e tudo o mais, alguns parlamentares selecionados conseguem 3 bilhões de reais para asfaltamento, calçadas, caminhões, tratores, escavadeiras, tá muito errado. Por coincidência, 3 bilhões era, por exemplo, o valor necessário para o Censo Demográfico desse ano, que foi cancelado.”
A reportagem procurou o prefeito de Paraíso do Tocantins e não obteve retorno.
Aiuri Rebello, El País, São Paulo, 21/05/2021, 13:30 hs
quinta-feira, 20 de maio de 2021
ENFERMAGEM E SAÚDE MENTAL
A enfermagem tem uma história profundamente ligada à medicina e, portanto, é uma extensão do modelo biomédico usado como concepção de mundo. Em termos essenciais esse modelo prioriza o corpo como organismo visível sobre o qual se faz uma intervenção objetiva, seja aplicar uma injeção, realizar um curativo, controlar os dados vitais, entre vários procedimentos importantes para a recuperação do paciente. No entanto, em saúde mental as coisas se passam de modo diferente. Nessa área da clínica social e dos saberes múltiplos, o modelo psiquiátrico (que é obvio o da medicina) revela uma insuficiência secular e infelizmente nociva, na medida em que despreza o universo invisível do outro. Quer dizer, da mente. Um dos efeitos desse modelo foi a trágica era dos manicômios (século XIX) quando os pacientes eram humilhados e torturados (cf Foucault e tantos autores mostraram). Ora, o que queremos ressaltar é o fato de que a enfermagem em saúde mental, para chegar ao paciente, de fato ajudá-lo, servi-lo, encontrá-lo, tem que se descolar do modelo biomédico. Por que? Porque estamos no universo de sentido da saúde mental (isso é caps!) e não no da psiquiatria. O cuidado psicossocial extrapola os limites do organismo visível, mensurável e palpável. Estabelecidas tais condições, como atuaria a enfermagem em saúde mental? Não há protocolos fixos, mas critérios clínicos: o essencial é experimentar o ato-da-enfermagem como relação com o paciente. Isso vem imerso numa ética da alegria, do prazer, da produção de autonomia social, das linhas subjetivas singulares e da espontaneidade criativa. O que não exclui algo da tradicional função da enfermagem à la Florence Nightingale (século XIX) nas condutas de assepsia, por exemplo.
A.M.
A DIFERENÇA NA SAÚDE MENTAL - IV
O conceito de loucura norteia o trajeto da diferença num campo (a clínica) que por natureza é desconcertante. Não tem "norte". A sua densidade existencial é regida e composta pelo caos. Isso não significa a crença em "algo ruim"que estaria como um fantasma assombrando as ações humanas. Ao contrário, o caos constitui a diferença exatamente em função das linhas de multiplicidade a brotarem pelos quatro cantos do mundo. Se a saúde mental prioriza a potência de existir (sua ética mais profunda) ela se acha ligada a uma opção política no nascedouro das práticas. Somente a experiência da loucura, vista como processo a um tempo dilacerante e libertador da alma escrava, torna possível ao técnico em saúde mental evadir-se de si mesmo, sair de si, escapar do medo, dar o fora, em prol do Encontro com o outro, o paciente. A diferença é o puro movimento que impulsiona o encontro para além dos enquadres clínicos demasiado conhecidos. No entanto, sabemos, aí reside o perigo da desestabilização brutal da subjetividade. Contra isso, o trabalho da diferença utiliza critérios de aumento ou diminuição das forças de criação, tanto no paciente quando no técnico que o atende. Neste segundo caso, uma espécie de "termostato" do sentido se desenha como pergunta: vale a pena?
A.M
segunda-feira, 17 de maio de 2021
A LUTA, MAIS AINDA
O Movimento da Luta Antimanicomial nasceu com as lutas políticas no Brasil durante o período imediatamente pós-ditadura militar. Corria o ano de 1987. Ele se alia à chamada reforma psiquiátrica e se conjuga ao projeto de implantação do SUS. Pensar hoje (não comemorar) a Luta é um exercício ético-político gestado na relação (direta ou indireta) com o paciente, no momento em que forças conservadoras e fascistas se espalham, impregnam e devastam o país. Tais forças são poderes explícitos (todos veem) ou implícitos (ninguém vê, mas todos sentem). De toda sorte penetram na alma das pessoas na expressão de um euzinho ajuizado e consciente. A psiquiatria, não como especialidade médica, mas como forma social (instituição), odeia a lógica antimanicomial. Ela funciona em aliança com outros dispositivos de controle (escola, estado, direito, polícia, família, exército etc) e busca no caldo da deusa-ciência diluir a forma antimanicomial do pensar. Produz seguidores aos milhões, inclusive o próprio paciente e seus familiares. Com as melhores intenções humanísticas quer mais é medicalizar e moralizar a vida, tamponar o desejo, racionalizar a existência, demonizar a loucura, mantendo seu status hegemônico na relação com os poderes vigentes. Figura sinistra essa a do manicômio, origem "baixa" da psiquiatria, ainda é concreta ( mais que nunca) na ordem subjetiva dos serviços de saúde mental. Apesar de tudo, apesar do aborto das suas linhas criativas de potência, a Luta insiste e ainda pode ser um ato de resistência aos hospícios internos em cada um de nós.
A.M.
domingo, 16 de maio de 2021
18 DE MAIO: O DIA DA LUTA
Outrora, uma luta.
Chamava-se antimanicomial. Queria acabar com os manicômios.
Mas não acontecia isolada. A reforma psiquiátrica e o SUS lhe eram parceiras.
Um combate ativo.
Para além dos horrores da psiquiatria manicomial, a luta não era contra os manicômios (os muros visíveis) mas a favor de uma ética do cuidado, dos afetos e a da autonomia social.
No fundo, era contra os muros invisíveis, manicômios da alma.
Houve uma luta.
Muitas frentes de combate, mil práticas clínicas, cem mil experimentações técnicas.
Loucura!
A política, arte do impossível, era aplicada na veia.
Hoje, não.
Resta e reina a burocracia do calendário oficial para cumprir festas onde não há mais festa.
Só a melancolia dos risos imotivados.
A.M.
sábado, 15 de maio de 2021
sexta-feira, 14 de maio de 2021
DEZ PONTOS PARA DIAGNOSTICAR UM FASCISTA
1-O fascista sabe apenas usar um método que é do fascismo. Este método tem como principal característica um grito: " Viva a morte".
2-Acontece que para funcionar na prática, o fascismo necessita estar "dentro" das pessoas, dentro de nós. Daí, todo fascismo é um microfascismo.
3-Apesar da origem histórica situá-lo na direita, hoje (usando-se lentes de aumento) não há mais fascista de direita ou de esquerda. Existe apenas o fascista e seus cânticos de destruição.
4-O fascista se aproxima do paranóico. No entanto, enquanto o paranóico acaba no manicômio, o fascista continua solto. Opera ao ar livre, destila e propaga seu delírio como normal e talvez salvador.
5-O fascista anseia por uma verdade pronta, reta e simplória. Vive de certezas absolutas. Isso o alimenta sem cessar. Sofre de uma espécie de bulimia ideológica.
6-Gosta de raciocinar por dualismos; bem/mal, esquerda/direita, homem/mulher, rico/pobre, louco/normal, bonito/feio. Seu cérebro mente.
7-As regras do jogo democrático lhe são quase insuportáveis. No caso brasileiro, o fascista costuma pregar o golpe e a intervenção militar.
8- O diálogo com o fascista é muito difícil. Ele se expressa como pensamento único. Nazistas e estalinistas, velhos amigos, trocam ideias e figurinhas.
9-Os sentimentos fascistas podem conviver sob harmonias bizarras. Hitler amava a sua cadela Blondie.
10-Por fim, mas não menos importante, o fascista costuma atirar pra matar em tudo que se movimenta: a vida.
A.M.
quinta-feira, 13 de maio de 2021
EXAME PERICIAL?
Um grupo de juristas de renome e professores universitários deu entrada hoje no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma ação para obter a declaração de incapacidade do presidente Jair Bolsonaro, com seu consequente afastamento da Presidência.
São autores da ação e firmam a petição os professores Renato Janine Ribeiro, da USP, Roberto Romano, da UNICAMP, Pedro Dallari, da USP, José Geraldo de Sousa Jr, da UNB, e os advogados Alberto Toron, Fábio Gaspar e Alfredo Attié, presidente da Academia Paulista de Direito.
Na petição, os autores ressaltam que não estão imputando crimes a Bolsonaro. "Não se trata, sublinhamos, de julgamento por crime de responsabilidade ou por crime comum, casos previstos na Constituição", diz o texto. "Não o acusamos de crimes, sequer o acusamos. Estamos observando apenas que ele não pode exercer, e de fato não está exercendo devidamente, o cargo no qual foi empossado".
Os juristas e professores argumentam que essa ausência de exercício da Presidência "denota incapacidade, passível de ser investigada por meio de processo de natureza civil - portanto, não criminal nem de responsabilidade -, que tem o nome de interdição", que se refere exclusivamente "à capacidade de exercer o cargo e a função de Presidente da República, não dizendo respeito a nenhum outro aspecto da vida civil e penal".
Bolsonaro é acusado de fazer pouco caso de cidadãos "não apenas em manifestações de ódio, desprezo e preconceito, mas sobretudo ao deixar de implementar os meios de realização de políticas públicas determinadas na Constituição e nas Leis, e ao deixar de proteger a integridade física e moral de cidadãos e cidadãs".
Os autores alegam que o presidente não cumpre o dever de "erradicar a pobreza e a marginalização, protegendo a saúde, o meio ambiente, a educação, a cultura, o trabalho e a livre iniciativa, assim, portanto, promovendo o bem de todos, sem preconceito de qualquer natureza". Além disso, dizem que ele promove o fanatismo.
Diz a peça que essa situação se agrava com a pandemia, sendo visível que Bolsonaro deixa de tomar medidas para minimizar os efeitos da doença, proteger cidadãos e cidadãs, agravando os riscos de contágio, doença e morte. "Ele insiste em propagar notícias falsas, em defender e determinar a adoção de tratamentos falsos", sustenta o documento.
"É evidente que, sem exame pericial por profissionais reconhecidamente competentes, não se pode decidir a interdição de pessoa considerada insana", prossegue a petição. "Por conseguinte, cabe a essa Colenda Corte Suprema decidir e determinar a realização de exame pericial, a cargo de professores de psiquiatria e outras áreas da ciência psíquica, com currículo reconhecido e respeitado, para se verificar se e de que modo e em que extensão se apresenta essa insanidade daquele que ocupa o cargo de Presidente da República".
Caso constatada a insanidade, o STF decidiria qual "remédio jurídico" poderá ser adotado para corrigir os prejuízos para a sociedade e o próprio Bolsonaro, "sem que se olvide da necessidade de afastamento, quiçá imediato".
Chico Alves, UOl, 13/05/2021, 21:10 hs
segunda-feira, 10 de maio de 2021
domingo, 9 de maio de 2021
sábado, 8 de maio de 2021
AO TÉCNICO EM SAÚDE MENTAL
Considere o paciente (ou usuário de um serviço em saúde mental) antes de toda moral julgadora. Lembre-se que a existência é puro devir, e por isso vertigem, risco e potência. Esta é uma maneira de enxergar o mundo que busca apreender a passagem do tempo como sendo a própria subjetividade. Há só devires. E mais: considere que o que distingue os seres (humanos e inumanos) não é o gênero, a espécie, a função, a forma, o status, a raça, o credo, etc, mas os graus de potência. A instituição-medicina não sabe disso, não quer isso, não quer saber pois funciona essencialmente com objetos visíveis e sólidos. Isso não é um mal, mas uma postura clínico-teórica que se mostra insuficiente para encontrar a diferença em psicopatologia. Saia da ótica biomédica marcada pela ciência positivista, pelo mecanicismo newtoniano e pela adesão ao mercado do consumo desenfreado. Escape dos horrores do capital. Adote uma posição ético-estética no dia-a-dia da clínica. Os fluxos vitais que animam o corpo do paciente, que o fazem viver, são os do desejo-produção, não os do desejo coagulado, cronificado, humilhado, desejo-produto, desejo-em-falta, carência infinita, tédio. É certo que no pais do carnaval, do futebol, e das matas, a melancolia anda sem freios. Experimente o Encontro ao escutar antes que a escuta, ao Amar antes que o amor. Faça o acontecimento. Não há fórmulas, receitas ou protocolos. Arrisque-se ...jogue os dados do acaso. Ou então, tome a benção aos poderes dominantes... e peça autorização para existir.
A.M.
sexta-feira, 7 de maio de 2021
terça-feira, 4 de maio de 2021
sábado, 1 de maio de 2021
SEM EU
Ao final do expediente no Caps, o psiquiatra se prepara para sair quando um barulho forte invade a sua sala. Veio do lado. Ao avistar um paciente em estado de desespero, choro, agonia e delírio, o psiquiatra viaja nas planícies acinzentadas do seu próprio pensamento, apesar de estar contido nas teias da razão médica. Em torno de si e para si ele se encurva num movimento dolorosamente imperceptível. Pensa em silêncio o próprio silêncio da morte em vida. De há muito sabe (e compreendeu) que não existe a esquizofrenia como entidade clínica, a que é formatada pela ciência biomédica. Isso (evidente) é uma fraude neurofabricada ao longo da história da psiquiatria. No entanto, existe, existe sim a experiência esquizofrênica, a qual se expressa fora dos enquadres normais da convivência humana. Mas ela não está fora da normalidade. Ela, a experiência, é o próprio fora como território afetivo órfão, um traste psíquico (não explícito, claro) de acordo com o código internacional dos transtornos mentais, o CID. A desrazão assombra e desconcerta o senso comum, preciosa linha subjetiva que naturalmente costuma organizar a pessoa e sua conduta civilizada. No universo da loucura a experiência esquizofrênica dilacera o próprio eu, não só cindindo-o, estilhaçando-o, mas fazendo dele um mero joguete das intensidades mais destrutivas. Quem sou senão o produto de mil forças que escapam ao controle? Ao contrário, me controlam, me compõem, me impõem, me levam, me determinam, fazendo do mundo (mesmo um Caps) um lugar onde não mais me reconheço. É essa alma errante que configura o choro convulso no aniquilamento da subjetividade humilhada diante dos homens saudáveis. Que fazer diante de tanto desamparo existencial, psiquico, social, linguístico, ontológico e espiritual? Do outro lado da rua, do outro lado do muro chega a notícia de que não podem ajudá-lo porque ele tem um transtorno da personalidade. Um estigma científico. O horror de tal notícia ecoa nos tímpanos estourados de uma psiquiatria que já "não ouve vozes", pelo menos não mais a voz dos seus pacientes. Um pouco mais tarde o psiquiatra fica sabendo que aquele era o seu dia, o dia do psiquiatra...
A.M.