quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

TEMOR AO DESEJO


Os desejos edipianos não são de maneira alguma recalcados, nem têm de sê-lo. Porém, estão numa relação íntima com o recalcamento, mas de outro modo. Eles são o engodo ou a imagem desfigurada com que o recalcamento arma uma cilada ao desejo. Se o desejo é recalcado, não é por ser desejo da mãe e da morte do pai; ao contrário, ele só devém isso porque é recalcado e só aparece com essa máscara sob o recalcamento que a modela e nele a coloca. Aliás, pode-se duvidar que o incesto seja um verdadeiro obstáculo à instauração da sociedade, como dizem os partidários de uma concepção de sociedade baseada na troca. Vê-se cada coisa... O verdadeiro perigo não é este. Se o desejo é recalcado é porque toda posição de desejo, por menor que seja, pode pôr em questão a ordem estabelecida de uma sociedade: não que o desejo seja a-social, ao contrário. Mas ele é perturbador; não há posição de máquina desejante que não leve setores sociais inteiros a explodir. Apesar do que pensam certos revolucionários, o desejo é, na sua essência, revolucionário — o desejo, não a festa! — e nenhuma sociedade pode suportar uma posição de desejo verdadeiro sem que suas estruturas de exploração, de sujeição e de hierarquia sejam comprometidas. Se uma sociedade se confunde com essas estruturas (hipótese divertida), então, sim, o desejo a ameaça essencialmente. Portanto, é de importância vital para uma sociedade reprimir o desejo, e mesmo achar algo melhor do que a repressão, para que até a repressão, a hierarquia, a exploração e a sujeição sejam desejadas. É lastimável ter de dizer coisas tão rudimentares: o desejo não ameaça a sociedade por ser desejo de fazer sexo com a mãe, mas por ser revolucionário. E isto não quer dizer que o desejo seja distinto da sexualidade, mas que a sexualidade e o amor não dormem no quarto de Édipo; eles sonham, sobretudo, com outras amplidões e fazem passar estranhos fluxos que não se deixam estocar numa ordem estabelecida. O desejo não “quer” a revolução, ele é revolucionário por si mesmo, e como que involuntariamente, só por querer aquilo que quer. Desde o começo deste estudo, sustentamos, ao mesmo tempo, que a produção social e a produção desejante são uma só coisa, mas que diferem em regime, de modo que uma forma social de produção exerce uma repressão essencial sobre a produção desejante, e também que a produção desejante (um “verdadeiro” desejo) pode potencialmente explodir a forma social.

(...)

G. Deleuze e F. Guattari in O anti-édipo

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