terça-feira, 30 de agosto de 2022

A FRAUDE

A grande limitação epistemológica, ou seja, a "doença" profunda da Medicina, chama-se mecanicismo. Trata-se de um pensamento raso em termos conceituais. Ele se baseia numa suposta linearidade causa-efeito na ocorrência das doenças. No entanto, esse fato não provocaria tantos estragos no paciente se o lugar social da Medicina não fosse o de um poder consolidado e inserido "naturalmente" na realidade do capital. Não falamos do capital somente como determinante econômico, mas sobretudo como operador semiótico (captura dos órgãos =significados fixos), de onde e por onde a Clínica Médica passa a ser utilizada como instrumento de controle dos corpos e, daí, uma produção incessante de lucro. Na esteira dessas questões, a psiquiatria contemporânea desponta como a especialidade médica que melhor traduz o reducionismo violento sobre o paciente, haja vista a ausência de objetos sólidos e visíveis na sua prática. Ninguém nunca "pegou" na mente, ou ninguém nunca "viu" a angústia ou a fobia ou o pânico ou o delírio de um paciente. É uma constatação - óbvia - mas que não aparece nas pesquisas etiológicas (causas das doenças) e talvez por isso elas constituam um campo tão pobre em investimentos e resultados. Há, pois, uma vontade política de querer fazer com que as coisas continuem para sempre como são. Ou como estão. O Medo, produto social, sustenta esse estado de coisas. Ou mais amplamente, todos os afetos baixos (que diminuem a potência de existir) são agenciados no mundo da mercadoria como antídotos subjetivos contra qualquer ideia de que um mundo não-capitalístico possa existir, ou sequer ser imaginado. Toneladas de tele-imagens virtuais, midiáticas, performáticas, linguageiras, são lançadas a cada minuto em todos, em tudo, em todas as partes, todos os lugares, tempos do cotidiano tecnológico cronometrado e apaixonantemente passivo.

A.M.


O DEVIR É OUTRA HISTÓRIA

Nós falamos muito de história. No entanto, o devir se distingue da história. Entre os dois, há toda espécie de correlações e de reenvios: o devir nasce na história e aí recai, mas não lhe pertence. É o devir e não o eterno que se opõe à história. A história considera certas funções segundo as quais os acontecimentos se efetuam, mas o acontecimento, na medida em que ele ultrapassa sua própria efetuação, é o devir como substância do conceito. O devir sempre foi o problema da filosofia.


G. Deleuze e F. Guattari,  entrevista, 1991

Família Bolsonaro comprou metade do patrimônio com dinheiro vivo; veja d...

domingo, 28 de agosto de 2022

SOBRE A DIFERENÇA

Pergunta-se o que é a diferença.  A diferença não é o indivíduo, não é a pessoa, não é algo fixo e estável onde se possa ancorar o corpo e a alma exaustos. Nem tampouco é ver, assuntar, medir, pesar, adjetivar, qualificar. Ela não é do campo do substantivo nem do adjetivo, ou de alguma substância dura, pétrea, imóvel, formatada em ideais do valor de troca. Nada a ver com a troca, pilar e essência do capital em seu cortejo mortuário. Tampouco é o ser-diferente, até porque não há o ser. Não é o estranho-em-nós. Já somos de antemão  e suficientemente estranhos, estranhos a nós e ao mundo. Não há, pois, medidas para identificá-la. Ela é desmedida. Quando há cálculos, dão sempre errado, as contas não fecham, tudo se frustra e se decompõe. Ao inverso, bem mais além e aqui mesmo, há somente corpos, corpos de corpos, corpos no interior de corpos, devires, processos, passagens, relâmpagos, criações, vertigens, intensidades, frêmitos, respirações, espontaneidades, ardores, ardências, viagens anômalas no mesmo lugar. Da diferença não se alimenta o narcisismo porque também não existe o narcisismo no seu universo, este sim, verso encantado, encantador e cantador em estradas desertas. A diferença é o bicho. Não tem forma, não é identificável pela percepção de representações exatas ou imagens-clichês. A diferença é o bicho na espreita. Percorre o mundo em linhas finas de sensibilidade e arte. Com delicadeza foge de todos os dualismos, de todos os títulos, de todos os senhores, de todas as pátrias, de todas as pretensões e boas intenções da racionalidade, da consciência e do pensamento da autoridade, mesmo a mais admirável e mansa. Brinca com o poder,  a morte e  o amor. Faz disso a própria natureza do seu percurso invisível e silencioso pelos caminhos desconhecidos do Encontro. Composta de multiplicidades ingênuas e  encravada na irreversibilidade do tempo, se tece e se faz inglória e pura. Mas quem a suporta?


A.M.

sábado, 27 de agosto de 2022

[Quando vier a primavera,], Alberto Caeiro - Pedro Lamares

Dez minutos


Um desconhecido

me pergunta as horas.

Faltam dez minutos.



Bruno Brum

Como identificar o fascismo? Uma introdução

Antes de tudo é preciso partir da análise dos microfascismos. São produções metastáticas (na oncologia se diz:  tumores secundários que se desgarram do tumor primário) , e seguem o rumo/ritmo de destruições múltiplas. Da vida. Há um fascismo maior (histórico) do Estado, dos partidos políticos, da grande política, etc,  que não existiria sem os  tumores subjetivos. Eles o fazem letal. O conceito de fascismo ( grande grito de "viva a morte") opera nas relações sociais como combustível de enunciados simples, inclusive e principalmente os do cotidiano.  Usa o universo tecnológico da internet como campo hiper-veloz onde são editadas suas palavras-de-ordem encharcadas de ódio. O que antes importa  dizer é que tais discursos convivem com mil outros: religiosos, filosóficos, científicos, acadêmicos, jornalísticos, todos supostamente voltados ao Bem. Em suma, o fascismo como método trabalha nos mil disfarces da produção mental. Só assim ele "pega". 


A.M.

terça-feira, 23 de agosto de 2022

A IMAGEM SOBERANA

Impossível negar: a nível planetário, uma tecnologia da imagem veio para ficar. Ela compõe talvez a face mais concreta das "conquistas"da modernidade. Tudo é imagem. Um universo imagético tornou-se a própria subjetividade. Não a entidade-do-eu, não a consciência, não a  racionalidade, mas o processo da subjetivação veloz e incessante que nos afeta e nos constitui. O real é a cada dia mais artificial. A sensação subjetiva ("eu existo, eu penso") e a correlata certeza de quem sou, são hoje sustentadas pela realidade da imagem, pela verdade da imagem, pela concretude da abstração, enfim. Tal verdade, sem que eu perceba, passa a ser a minha verdade, mesmo a mais íntima. Devastação do pensamento e até do inconsciente representativo (freudiano). Caminhamos para o fim da divisão mundo interno-mundo externo.Nesse ponto, a referência à esquizofrenia é inevitável: há um estilhaçamento da subjetividade na esteira de uma profunda erosão do sentido. Aniquilamento da linguagem verbal, dissolução de crenças e valores, convite ao fascismo (via apologia dos arcaísmos) e demonização da mídia (via a ideação paranóica) mesmo nas ditas esquerdas. Em que ou em quem acreditar? Um gigantesco buraco ontológico compõe o reino encantado das imagens verídicas: telefone fixo, internet, rede social, celular, zap, televisão, cinema, vídeo, videogame, fotografia, etc, tanto faz. Imagens, imagens, tão só imagens devoram tudo, arrastam tudo,  designam tudo, significam tudo, inclusive eu aqui escrevendo e você lendo o artigo agora. No entanto, tal estado de coisas não é um mal em si. Pois, se somos dominados "por dentro" no mais fundo da interioridade psíquica, algo se anuncia naquilo que Nietzsche chama "a transvaloração dos valores". A alma em revolta pela criação de uma nova terra.


A.M.

New York Jazz • Jazz Saxophone Instrumental Music • Jazz Standards

domingo, 21 de agosto de 2022

 O HOMEM E A SUA PAISAGEM

 

Toda paisagem tem um ar de sonho.

Vejo o tempo parado, inutilmente.

Tudo é menos real do que suponho.


Interrompi teu sonho, natureza.

Diante de um ser humano, de repente

Apareces tomada de surpresa.


No espaço que me cerca estou suspenso.

Em redor um olhar pasmado e mudo

E no ar a ameaça do silêncio denso.


Em todo sonho existe um extasiado

Olhar adormecido que vê tudo...

Senhor, eu sou o objeto contemplado


Dante Milano

Guilherme Amado: “Se Bolsonaro perder no 1º turno não terá força nem par...

SER  DELEUZIANO É  NÃO  SER DELEUZIANO.

NÃO  HÁ  PONTO  DE  ANCORAGEM  DE IDEIAS E PRÁTICAS.

TUDO É DEVIR E CAOS.


A.M.

TSE e os fantasmas da política passada | Ponto de Partida

  • A história da mulher é a história da pior tirania que o mundo conheceu: a tirania do mais fraco sobre o mais forte.

  • Oscar Wilde


 

COMO  RECONHECER  O  FASCISMO?

Há 100 anos (Itália, 1922)  nascia o fascismo de Mussolini.Ao seguir na história, esse movimento político inspirou outros regimes (Alemanha, Portugal, Espanha, etc) tornando-se referência até para a dita esquerda. No entanto, à medida em que a sociedade industrial avança , e com ela a tecnologia da imagem, o fascismo se fez diferenciar do totalitarismo. Para obter a dominação e o controle de milhões, formas sociais (instituições) passaram a utilizar métodos com micro-efeitos nas populações, no que Félix Guattari chama de microfascismo. Sem esse nível de “persuasão mental” o controle dos corpos e mentes se revelaria ineficaz. O fascismo tornou-se microfascismo. Dominar de modo explícito cedeu lugar ao controle sobre sujeitos sem que estes saibam que estão sendo controlados e mais, gostem de ser controlados. Óbvio que dominar “por dentro” sempre existiu, ainda que pelo terror induzido na mente dos supliciados. Mas falamos de outra coisa. 100 anos de fascismo foram suficientes para a produção em série (escala planetária) de pessoas humanas que adotam e adoram o capital com ponto hegemônico de subjetivação e desejam isso não só para si mas para todos, ou seja, para o restante da população mundial. Um processo “natural” é induzido por agências de controle, mormente os Estados nacionais e o grande sistema financeiro e internético com suas mídias afiadas como serviços num plantão ad aeternum. É difícil identificá-lo no coração das pessoas de bem. Se este sentimento de “viva a morte” se instaura e age à revelia do seu portador, a impossibilidade de auto-crítica surge como pressuposto subjetivo. “Que eu morra, mas que permaneçam os valores em que acredito”. Tal é o refrão macabro (inconsciente) do cidadão comum para, por exemplo, apoiar o atual governo federal brasileiro. Uma linha suicidária passa a ser o dado natural da vida. Morrer pela pátria equivale a morrer pela família, pela escola, pela religião, pela medicina,  por todas as formas sociais, enfim, de transcendências ( o além da vida).  Isso credita e legitima a existência da sociedade regida pelo capital,  não só como categoria de lucro econômico, mas como  fábrica de imagens para um gozo paranóico. O fascista é um paranóico. Tal sentimento se interiorizou a um ponto tal que parece ter deixado de existir existindo mais do que nunca: teorias da conspiração tamponam o buraco do sentido. Estaremos num universo linguístico de redundâncias e paradoxos? Na linha de montagem da subjetividade capitalística, parece, então, irreal e fantasioso o parto de um outro mundo no interior deste. Pensar se tornou obsceno.


A.M.,  21/08/2022

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

José Simão: “Tchuchuca é só para os íntimos de Bolsonaro, qualquer um não”

QUAL ENCONTRO?

A instituição psiquiátrica chama o seu paciente de “portador de transtorno mental”. Nem sempre explícito, tal enunciado compõe o sistema de grades dos diagnósticos, a CID-10.A expressão “mental” é usada de modo naturalizado, ou seja, todo mundo sabe o que é “mental”. A metonímia“ele é um mental” revela o estigma.Contudo, no Encontro com a loucura, acontece outra coisa: a mente desaparece como substância, ou como algo palpável, visível. Dilui-se num vazio sem forma.

Encontrar o paciente seria então  possível?

Sim, na medida em que o técnico adentre ao Acaso, ao Indeterminado e ao Desconhecido.Esta é a condição. Como, então, fazer a clínica? A experiência da prática mostra que ela só existe como abertura ao mundo. Por outro lado, a ética – essência da clínica -sustenta-se na alegria. É a força maior.“O regime da alegria é o do tudo ou nada: não  há senão alegria total ou nula”(*).

A.M.

(*) Clement Rosset in Lógica do pior

Banda Rock Beats - Medley Colombina, Fora da Lei & Ai ai ai (Acústico)

  1. A FORMA-ESTADO

  2.  Já não se trata das poderosas organizações extrínsecas, nem dos bandos estranhos: o Estado  torna-se o único princípio que faz a partilha entre sujeitos rebeldes, remetidos ao estado de natureza, e sujeitos dóceis, remetendo por si mesmos à forma do Estado. Se para o pensamento é interessante apóiar-se no Estado, não é menos interessante para o Estado dilatar-se no pensamento, e dele receber a sanção de forma única, universal. A particularidade dos Estados é só um fato; do mesmo modo, sua perversidade eventual, ou sua imperfeição, pois, de direito, o Estado moderno vai definir-se como "a organização racional e razoável de uma comunidade": a única particularidade da comunidade é interior ou moral (espírito de um povo), ao mesmo tempo em que sua organização a faz contribuir para a harmonia de um universal (espírito absoluto). O Estado proporciona ao pensamento uma forma de interioridade, mas o pensamento proporciona a essa interioridade uma forma de universalidade: "a finalidade da organização mundial é a satisfação dos indivíduos racionais no interior de Estados particulares livres". É uma curiosa troca que se produz entre o Estado e a razão, mas essa troca é igualmente uma proposição analítica, visto que a razão realizada se confunde com o Estado de direito, assim como o Estado de fato é o devir da razão. Na filosofia dita moderna e no Estado dito moderno ou racional, tudo gira em torno do legislador e do sujeito. É preciso que o Estado realize a distinção entre o legislador e o sujeito em condições formais tais que o pensamento, de seu lado, possa pensar sua identidade. Obedece sempre, pois quanto mais obedeceres, mais serás senhor, visto que só obedecerás à razão pura, isto é, a ti mesmo... Desde que a filosofia se atribuiu ao papel de fundamento, não parou de bendizer os poderes estabelecidos, e decalcar sua doutrina das faculdades dos órgãos de poder do Estado. O senso comum, a unidade de todas as faculdades como centro do Cogito, é o consenso de Estado levado ao absoluto.

  3. Gilles Deleuze e Félix Guattari in Mil platôs, vol.5

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

  • DEUS É O MUNDO

  • Deus não está separado do mundo como um grande legislador. Não existe uma entidade criadora do mundo que agora o observa à distância, julgando-o e decidindo seu destino final. Até hoje não conseguimos definir a natureza de Deus porque sempre o confundimos com um ser à nossa imagem e semelhança. Os teólogos, claro, mas também os filósofos. Não surpreende pois o objetivo dos teólogos sempre foi a obediência. A escritura é mandamento. A tradição descreve Deus como se fosse um homem, um rei, um déspota: com vontades, sentimentos, objetivos, e atributos corporais.
  • Esta visão é exageradamente antropomórfica e confessa uma ingenuidade para entender a essência das coisas. Por uma visão utilitarista, somos levados a crer que a natureza, e nós mesmos, temos um objetivo a ser cumprido, e concluímos que fomos criados com um destino a se cumprir. Sendo assim, achamos que um ser que nos criou à sua imagem e semelhança tem certo desígnios para nós. Mas Espinosa argumenta que se fosse dada a um triângulo a chance de definir Deus, este o faria dizendo que Ele possui três lados e a soma de seus ângulos internos resultam em 180 graus. E assim o homem, por ignorar as causas de seu conhecimento, o faz: Deus vê tudo, ouve tudo, sabe tudo, pode tudo e nos deu mandamentos que não podem ser quebrados.
  • Isto está de todo errado. Deus é o mundo, Deus é a Natureza. São dois nomes para uma única e mesma coisa. É preciso conhecer a natureza, o máximo que pudermos, se quisermos conhecer Deus. Ele não é exterior, ele é a causa interior de tudo que existe. A causa da essência e da existência de tudo, a causa imanente, não transitiva, ou seja, agindo em nós. Deus não gera o mundo por livre vontade, ele é o mundo por pura necessidade de sua essência. “Deus não produz porque quer, mas porque é” (Deleuze, Espinosa e o Problema da Expressão, p. 69)

  • .(..)Rafael Trindade, do blog Razão Inadequada

terça-feira, 16 de agosto de 2022

 FALTAM  47  DIAS

Não há grandes dores, nem grandes arrependimentos, nem grandes recordações. Tudo se esquece, até mesmo os grandes amores. É o que há de triste e ao mesmo tempo de exaltante na vida. Há apenas uma certa maneira de ver as coisas, e ela surge de vez em quando. É por isso que, apesar de tudo, é bom ter tido um grande amor, uma paixão infeliz na vida. Isso constitui pelo menos um álibi para os desesperos sem razão que se apoderam de nós.

Albert Camus


 

domingo, 14 de agosto de 2022

O QUE É UMA PSIQUIATRIA MENOR?


É uma psiquiatria da alma. Não a alma usada nas religiões, mas a alma do mundo das coisas,  a que se desloca veloz e invisível: o pensamento. A psiquiatria cuida disso. Ou deveria. Pelo menos, quando sai dos trilhos...

Uma psiquiatria menor busca captar o paciente através de percepções finas e encontrá-lo onde jamais alguém o encontrou. Uma ética de força e criação guia suas ações, mesmo as farmacológicas.

Seu instrumento de pesquisa e intervenção prática (clínica) é uma psicopatologia aberta às mil influências (saberes) do que está longe e ao mesmo tempo muito perto. O objetivo é sondar o fora,  não como espaço físico mas como ligação invisível ao cosmos aqui em terra firme. É uma psiquiatria do real.

Considera antes de tudo, os corpos-em-relação, os corpos-em-vibração,  o que move o paciente e o técnico: afetos. 

Nesta concepção, a política existe como trama de poder na qual a clínica está incluída.  Para além ou aquém do regime binário direita/esquerda, tal visão clínica é apaixonada pela diferença, pela singularidade e pelo múltiplo.

Uma psiquiatria menor é grande. Psiquiatras neuro-maníacos lhe são estranhos.


A.M.

sábado, 13 de agosto de 2022

HENRY MILLER


 

PARA  ALÉM  DA  ELEIÇÃO

O fascismo no Brasil pode ser visto como linha subjetiva presente em milhões de pessoas. No fim das contas, é o microfascismo que importa. Explícito ou camuflado, é um "afeto mortuário" que corresponde a mais ou menos 30% do eleitorado brasileiro (atuais pesquisas). Pode aumentar. Segmentos sociais progressistas subestimam o horror em marcha . As teses fascistas (por ex. a paranóia anti-comunista) são ridicularizadas. Mas funcionam sim, operam e possuem uma densidade existencial "sedutora" .Isso dá sustentação ao eu e às suas ações predatórias. Assim, o momento político é bem mais que o de uma eleição. O fascismo, mesmo derrotado (se for) retornará como um vampiro faminto.

A.M.

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

A VERDADEIRA DIALÉTICA


aí os caçadores chegaram

mataram o lobo e abriram a barriga

e encontraram a vovozinha

toda mastigadinha

quanto a chapeuzinho vermelho

eles comeram


Sebastião Uchoa

Mystical Adventures (Suite) , Pt. 1

REAL IRREAL


O que é o real? A psicanálise (lacaniana) diz que o real é impossível pois vivemos num mundo essencialmente simbólico. Conforme essa doutrina, o real é lançado para os rumos da psicose, ou seja, rompido com a formação social no qual se inscreve. Quem tem acesso ao real é louco, é o louco em seu desvario. Uma insanidade. Ao contrário, pensamos ao modo deleuziano. O real não está dado, ele é produzido, sempre produzido. Resta saber por quem. Há toda uma questão ético-política de fundo... Os artistas, os videntes, os poetas, os revolucionários (não os esquerdistas), entre outros, sabem disso porque experimentam o mundo na própria carne, na própria pele, melhor dizendo, no corpo sensível, desejante, nutrido de mil sensações. Assim, se a psicose é o real, as "mil sensações" se tornam mil sintomas clínicos do transtorno que a psiquiatria biológica chama de "mental". A tecnologia moderna inundou o cotidiano com tal profusão de imagens que a psicose (e os seus mil sintomas) ocupou o lugar da esquizofrenia reeditando-a como "A" psicose, mesmo que não seja. Depressões, neuroses, histerias, borderlines, retardos, paranóias, demências, drogadiçoes, fobias, pânicos, angústias, e tantos outros signos atuais do aniquilamento da subjetividade, se misturam numa espécie de sopa coletiva psicopatológica. No fim, tudo conduz à psicose (ou à loucura).Mas, se nem mesmo o psicótico sabe mais o que é o real, nos achamos em plena dissolução do sentido. Da clínica em saúde mental.


A.M.

Carta pela democracia é lida no Largo Sã...

RECEITA


Ingredientes:


2 conflitos de gerações

4 esperanças perdidas

3 litros de sangue fervido

5 sonhos eróticos

2 canções dos beatles


Modo de preparar


dissolva os sonhos eróticos

nos dois litros de sangue fervido

e deixe gelar seu coração


leve a mistura ao fogo

adicionando dois conflitos de gerações

às esperanças perdidas


corte tudo em pedacinhos

e repita com as canções dos beatles

o mesmo processo usado com os sonhos

eróticos mas desta vez deixe ferver um

pouco mais e mexa até dissolver


parte do sangue pode ser substituído

por suco de groselha

mas os resultados não serão os mesmos

sirva o poema simples ou com ilusões



Nicolas Behr

CONSIGNADO - A CRUELDADE LEGAL


 

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

RELIGIÕES OCULTAS


A propósito de uma análise político-institucional do fenômeno religioso, trabalhamos com a forma-religião ao invés da religião como organização sociocultural, ou mesmo como um sistema de crenças para além da vida, o dito reino do sagrado. Nada nos interessa, pois, além da FORMA social da religião que se espraia por toda a parte, por mil credos, até os inconfessáveis, ocupando lugares considerados não religiosos, mas que na prática atuam como sendo. Exemplos simples e evidentes são a forma-ciência e a forma-capital, duas religiões profanas, mas não menos incisivas em ações de mando e comando sobre os humanos, erigindo seus deuses, suas transcendências e controles sociais na produção de subjetividades imbecilizadas e imbecilizantes.


A.M

Joao Donato, Bud Shank & Ed Motta - Black Orchid

terça-feira, 9 de agosto de 2022

CLÍNICA E TECNOLOGIA DA IMAGEM - IV


Como F. Guattari previu, vivemos tempos esquizofrênicos. Isso faz retirar do conceito de Capitalismo Mundial Integrado (Guattari, 1982) elementos teóricos contingentes e necessários a uma análise institucional. A produção social (econômica) estendeu-se à produção subjetiva (semiótica) como matéria prima, ou, como diz Foucault,  biopoder. A vida passa a ser produzida, e com ela, tudo que parece imitá-la. Antigos códigos sociais (por ex., na Idade Média, o código teológico) cedem lugar à auto-dissolução numa espécie de esquizofrenização generalizada do corpo social (socius). Não há mais eu, mesmo que pareça. Há, sim, um eu voltado às logísticas de manutenção do cotidiano. É possível olhar em torno: o cenário de dissolução do Sentido é devastador. Indagações da alma ("estarei vivo?") atracam-se no território do corpo-imagem. Assim, pensar para além da simples cognição da realidade só se torna possível mediante a representação dessa realidade e não com e através dela. A realidade "real", o corpo das intensidade mundanas, cede a sua vez, seu número e seu lugar à teatralidade de um mundo em decomposição. Notícias de toda a parte chegam instantâneas. Registram as  linhas subjetivas do consumidor (orgulhoso) de ordens implícitas. Sem saber, é o desejo encalacrado nas dobras da alma: o capital.


A.M

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Linhas singulares da existência

A materialidade subjetiva do individuo compreende elementos visíveis e invisíveis; ela sempre acontece no plural. São muitas linhas singulares funcionando num   movimento  incessante. O organismo visível fornece o lastro concreto para uma subjetividade. Contudo, ele é composto por partes infinitamente divisíveis as quais chamamos corpo.O organismo  não é  o corpo. Este ultrapassa  os  limites  do  organismo  de  onde a medicina extrai a sua  mais-valia  de prestígio. As  linhas singulares  inscrevem-se  num  corpo não  imediatamente  visível nem tampouco separado do meio (social) por uma linha de  fronteira bem demarcada. Elas são antes de tudo micro-potências que impulsionam o funcionamento motor, cognitivo, intelectual, existencial, enfim, tudo que  signifique produção incessante de  vida. O paciente é composto  por  elas e são elas  que se expressam como  devires. Um sintoma é uma  linha singular , já que, apesar de  ser  signo de uma doença cadastrada  na CID-10, ao mesmo  tempo é  expresso como território  existencial.”Eu sou  meu  delírio”, “Eu sou  minha  tontura”, etc. 

A.M.

ELES VÃO PEGAR SEU AUXÍLIO

Eu sou contraditório, eu sou imenso. Há multidões dentro de mim.


Walt Whitman

Saying goodbye to NDT 1 dancers after season 2021-2022

 FALTAM  58  DIAS

O que é uma organização?


É um conjunto de pessoas (ou indivíduos) com  objetivos comuns. Isso os une. A organização é um grupo ampliado. Nos seus objetivos está contida a natureza do trabalho. Na execução do trabalho  funcionam os afetos. Estes são o que move a produção.

Toda organização é composta por grupos e subgrupos que se expressam de modo aparente ou inaparente. 

Consideremos uma organização (ou serviço) em saúde, educação, comércio, indústria, etc. Os grupos que lhe constituem são por sua vez linhas institucionais. Algumas delas: divisão de trabalho, hierarquia, formação e função técnica, salário, gênero, papel social. A lista é extensa e infinda.

O essencial a reter é o seguinte: para além da organização visível, há níveis de funcionamento do serviço que não são captados a “olho nu”. São os grupos, as instituições e os afetos. Este último é o combustível que faz andar (ou desandar ) a organização.

Afetos remetem a pessoas. Entre elas, ou seja, na relação umas com as outras, é onde se dá a prática diária da natureza do trabalho para obtenção dos objetivos propostos.

Entre os afetos passam correntes (fluxos) de produção ou antiprodução dos resultados propostos. Os bancos (capital financeiro) costumam isso chamar de metas.

Há três correntes possíveis de afetos: 1- atração; 2-repusão; 3-indiferença. São correntes moldadas pela função técnica. Ou seja, as relações são técnicas. Nesse nível alguém é atraído (gosto de trabalhar com você), sente repulsa (não gosto de trabalhar com você) ou é indiferente (para mim tanto faz).

Uma configuração que não costuma aparecer em reuniões, discussões, conversas, problemas do dia a dia do serviço.

É que a realidade institucional é muito mais complexa. Dois elementos a fazem mutável, plástica e por vezes enigmática. O primeiro diz respeito à mutualidade dos afetos. Uma atração pode não corresponder a outra atração e sim a um rechaço. Ou o inverso. O segundo é o tempo: tal configuração pode mudar: a atração pode se tornar indiferença ou rechaço.

O conjunto das correntes afetivas não se mostra, não se explicita porque a sua fonte geradora é o inconsciente institucional. Não ao estilo freudiano como “a outra cena” mas como a cena real do cotidiano do serviço, onde e quando os afetos são a própria consistência de se estar trabalhando.  O prazer, a alegria ou a tristeza e a irritação, entre tantos outros afetos “empurram” a produção tanto para alcançar os objetivos do trabalho como ao inverso, ou seja, rumo ao declínio e a destruição.  

A.M.