Este blog busca problematizar a Realidade mediante a expressão de linhas múltiplas e signos dispersos.
quarta-feira, 31 de janeiro de 2024
ENSAIOS SOBRE A DIFERENÇA - I
Em tempo capitais, a diferença parece inexistir. Do que se trata? O que se passa? O que se passou? Perguntas sem sujeito e sem resposta. Elas boiam num oceano vazio. O mundo atual é um mundo demasiado semelhante, demasiado igual. Torpe e raso. Por toda a parte circulam mercadorias da alma exausta. A diferença percebe esse mundo estranho onde ela não mais se reconhece, exceto por um fiapo de vida solto nos infinitos da mente colonizada. Andei por lados contrários à racionalidade triunfante e a diferença se fez. Me perguntei, ó idiota. Nada há mais a cobrar da consciência esclarecida na igreja racional dos homens de bem. Deus acabou seus dias como mercadoria e fetiche. Murchou a glória dos homens suaves. A diferença incorporou esse dado estatístico nas entranhas do Estado cínico e do Mercado sedutor. No entanto, um coração exangue (qualquer um) faz a prática de resistência... à infâmia, à vergonha e à morte...
A.M.
SENSAÇÃO
Pelas tardes azuis do Verão, irei pelas
sendas,
Guarnecidas pelo trigal,
pisando a erva miúda:
Sonhador, sentirei a
frescura em meus pés.
Deixarei o vento banhar
minha cabeça nua.
Não falarei mais, não
pensarei mais:
Mas um amor infinito me
invadirá a alma.
E irei longe, bem longe,
como um boêmio,
Pela natureza, - feliz
como com uma mulher.
Rimbaud
SEM RESSENTIMENTO
Contra os que pensam “eu sou isto, eu sou aquilo”, e que pensam assim de maneira psicanalítica (referência à sua infância ou destino), é preciso pensar em termos incertos, improváveis: eu não sei o que sou, tantas buscas ou tentativas necessárias, não-narcísicas, não-edipianas – nenhuma bicha jamais poderá dizer com certeza “eu sou bicha”. O problema não é ser isto ou aquilo no homem, mas antes o de um devir inumano, de um devir universal animal: não tomar-se por um animal, mas desfazer a organização humana do corpo, atravessar tal ou qual zona de intensidade do corpo, cada um descobrindo as suas próprias zonas, e os grupos, as populações, as espécies que o habitam. Porque não teria direito de falar da medicina sem ser médico, já que falo dela como um cão? Por que razão não falar da droga sem ser drogado, se falo dela como um passarinho? E por que eu não inventaria um discurso sobre alguma coisa, ainda que esse discurso seja totalmente irreal e artificial, sem que me peçam meus títulos para tal? A droga às vezes faz delirar, por que eu não haveria de delirar sobre a droga?
(...)
G. Deleuze in Carta a um crítico severo
terça-feira, 30 de janeiro de 2024
O QUE É NECRO-PSIQUIATRIA?
É a psiquiatria atual. Ela ocupa a hegemonia nas relações institucionais (mais que a psicologia ou a psicanálise) em saúde mental. Isto quer dizer que 1- Concebe os transtornos mentais como originários do cérebro. Tudo é orgânico. 2- Trata os pacientes apenas com remédios químicos ou mediante técnicas que atuam sobre o organismo físico-químico como a estimulação magnética transcraniana, o eletrochoque, entre outras. 3-Prioriza a internação em hospitais psiquiátricos para as patologias moderadas e graves, desconsiderando o valor dos Caps e de formas de tratamento em liberdade. 4-Estabelece alianças institucionais com a indústria farmacêutica internacional ( e nacional), além das farmácias comerciais, na volúpia pela obtenção de lucros às custas do sofrimento mental. 5-Dissemina-se como modo de ocultar problemas sociais na medida em que vê o mundo apenas sob a ótica psiquiátrica. Tudo é psiquiatrizável! 6- Reduz o conceito de saúde mental ao âmbito da psiquiatria, donde a equação saúde mental=saúde torna-se equivalente a cerebral=saúde psiquiátrica. 7-Adota de forma subliminar (maquiada) o axioma positivista (romântico) da ciência moderna de teor salvacionista para a humanidade. 8- Organiza-se na sociedade civil em associações psiquiátricas, produzindo corporativismos que atendem aos interesses de lucro, prestígio e poder dos seus pares. 9- Na universidade, usa as neurociências como referência de verdade científica rumo a construção de uma clínica psiquiátrica sempre e cada vez mais farmacologizada. 10-Na relação com os demais técnicos em saúde mental funciona na verticalidade do poder que o psiquiatra outorga a si mesmo como médico da mente.
Obs.: o termo "necro-psiquiatria" foi criado pelo brilhante psiquiatra e psicoterapeuta Manoel Campelo, a quem sou grato.
A.M.
domingo, 28 de janeiro de 2024
sábado, 27 de janeiro de 2024
PONTO MORTO
A minha primeira mulher
se divorciou do terceiro marido.
A minha segunda mulher
acabou casando com a melhor amiga dela.
A terceira (seria a quarta?)
detesta os filhos do meu primeiro casamento.
Estes, por sua vez, não suportam os filhos
do terceiro casamento da minha primeira mulher.
Confesso que guardo afeto pelas minhas ex-sogras.
Estava sozinho
quando um de meus filhos acenou para mim no meio do engarrafamento.
A memória demorou para engatar seu nome.
Por segundos, a vida parou, em ponto morto.
Augusto Massi
Necropsiquiatria - esboço de conceito: parte 5
Há uma história que estabeleceu condições de possibilidade para o surgimento da psiquiatria. É que ela não é uma especialidade médica comum.
Por que?
Porque as suas bases clínicas, epistemológicas, éticas e políticas estão fincadas nas ciências humanas. Ela compõe a produção social, assim como a medicina.
Em tempos do capital, a produção social está subsumida à produção do capital. Assim, um dos agentes de produção da morte, sob o disfarce de vida, é a psiquiatria atual. Não produção do "organismo", ao modo da medicina, mas produção do corpo e dos afetos que são o próprio corpo.
O corpo impregnado por fármacos é morte.
Trata-se de uma clínica abstrata mas com ações concretas. Formações de poder contam com isso para colonizar o inconsciente das massas.
A.M.
quinta-feira, 25 de janeiro de 2024
A HISTERIA, HOJE
A histeria, patologia que "deu origem" à psicanálise no final do século XIX, se expressa hoje, mais que nunca, numa espécie de cipoal da clínica psicopatológica. Suas formas de expressão mudaram. Não se pode,pois, dizer que ainda exista uma entidade clínica chamada histeria, ao modo de Freud. O que, então, existe? Uma profusão de linhas-sintomas disseminadas pelo corpo, constituindo-o: são as clássicas "somatizações conversivas" e/ou as "dissociações da consciência". Na prática, os quadros psiquiátricos ditos graves (psicoses de variados matizes, transtornos do humor - mania ou depressão - transtornos da personalidade, etc) costumam substituir a hipótese diagnóstica de uma histeria, e preencher o vazio nosológico, suscitando o emprego de mais e mais remédios químicos, mais e mais controle social, mais e mais preconceito moral, até que os pacientes deixem de incomodar a ordem da razão e as instituições que lhe são correlatas, bem como sejam “aliviados” dos sintomas incapacitantes para a vida autônoma. Fora da especialidade psiquiátrica, a histeria se expressa em fibromialgias, enxaquecas, algias múltiplas, parestesias, vastas extensões da pele, músculos e ossos em organismos codificados por universos virtuais, agitações psicomotoras, desorientações têmporo-espaciais, hetero-agressividades, irritabilidades fáceis, flutuações do humor. No meio de tudo, a autoflagelação pode ser vista como a busca de certezas “de que estou vivo”. Na esteira de tais sintomas, não é de admirar que a ideação suicida “evolua” ao ato suicida. A experiência de Caps nos mostra isso. Em suma, enquanto forma de ações-no-mundo ( organismo) e fluxo de imagens (consciência), a histeria pode “simular” rigorosamente qualquer transtorno mental, desconcertando a avaliação psiquiátrica, ainda mais em tempos de declínio da pesquisa psicopatológica. A psiquiatria acadêmica, neurobiológica e canônica costuma substituir sua monumental ignorância sobre os processos subjetivos de singularização existencial por condutas de imbecilização dos pacientes.
A.M.
domingo, 21 de janeiro de 2024
O RISCO DA INSÂNIA
Tomemos a psiquiatria biológica: uma compreensão da mente a partir do funcionamento cerebral não é um erro. É só uma visão incompleta e reducionista da realidade psíquica. E mais: pelo lugar de poder que a psiquiatria ocupa, tal manobra se transforma em danos irreversíveis sobre o paciente. Estamos na área obscura dos biopoderes que formigam por todos os cantos. Desse modo, fabrica-se em escala industrial um organismo físico-químico que consome verdades prontas. "Tome esse comprimido que é para o seu bem". A invisível engrenagem semiótica, para funcionar e funcionar bem (asséptica e sem travamentos), conta com a adesão (inconsciente) de segmentos sociais "bem intencionados" em suas respectivas subjetivações. Um padre, um juiz, um delegado, um burocrata, um pastor, um pai de família, um empresário, um diretor de RH, um médico, um professor, uma mãe, entre outros, são personagens sociais que sustentam o desejo de ordem e harmonia. Alguém que ouse quebrar o circuito afetivo da normalidade naturalizada arrisca-se a mergulhar nas trevas da insânia.
A.M.
Necropsiquiatria - esboço de conceito: parte 4
Se a psiquiatria atual não dispõe de uma teoria dos afetos, o dado clinico essencial é o de que o paciente não é escutado.
Trata-se de um truísmo.
No entanto, para além ou aquém do diagnóstico, há linhas de diferença afetiva que se somam, se chocam e se expressam numa dada semiologia. Isso está fora da grade sintomática estabelecida pela Necro.
Assim, o objetivo maior de um tratamento "mental", que seria o de afirmação da vida, é invertido.
O modelo da morte (por. exemplo, depressões profundas, catatonias, etc) o substitui. Não que a psiquiatria adote esse modelo.
Ela é o próprio modelo.
A.M.
sábado, 20 de janeiro de 2024
sexta-feira, 19 de janeiro de 2024
O ROSTO ÚNICO
O muro branco não pára de crescer, ao mesmo tempo que o buraco negro funciona várias vezes. A professora ficou louca; mas a loucura é um rosto conforme de enésima escolha (entretanto, não o último, visto que existem ainda rostos de loucos não-conformes à loucura tal como supomos que ela deva ser). Ah, não é nem um homem nem uma mulher, é um travesti: a relação binária se estabelece entre o "não" de primeira categoria e um "sim" de categoria seguinte que tanto pode marcar uma tolerância sob certas condições quanto indicar um inimigo que é necessário abater a qualquer preço. De qualquer modo, você foi reconhecido, a máquina abstrata inscreveu você no conjunto de seu quadriculado. Compreende-se que, em seu novo papel de detector de desvianças, a máquina de rostidade não se contenta com casos individuais, mas procede de modo tão geral quanto em seu primeiro papel de ordenação de normalidades. Se o rosto é o Cristo, quer dizer o Homem branco médio qualquer, as primeiras desvianças, os primeiros desvios padrão são raciais: o homem amarelo, o homem negro, homens de segunda ou terceira categoria. Eles também serão inscritos no muro, distribuídos pelo buraco. Devem ser cristianizados, isto é, rostificados. O racismo europeu como pretensão do homem branco nunca procedeu por exclusão nem atribuição de alguém designado como Outro: seria antes nas sociedades primitivas que se apreenderia o estrangeiro como um "outro" . O racismo procede por determinação das variações de desvianças, em função do rosto Homem branco que pretende integrar em ondas cada vez mais excêntricas e retardadas os traços que não são conformes, ora para tolerá-los em determinado lugar e em determinadas condições, em certo gueto, ora para apagá-los no muro que jamais suporta a alteridade (é um judeu, é um árabe, é um negro, é um louco..., etc). Do ponto de vista do racismo, não existe exterior, não existem as pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser como nós, e cujo crime é não o serem.
(...)
G.Deleuze e F. Guattari in Mil Platôs
Necropsiquiatria - Esboço de conceito : parte 3
Uma agência de controle "cuida" de pacientes impacientes.
À serviço da ordem estabelecida pelo capital financeiro e industrial, ela os torna "mortos-vivos".
Isso implica numa fabricação-em-série de serviços e servos.
Assim, a psiquiatria faz valer a fraude da razão utilitária. Sem vestígio do Conhecimento.
O mercado da angústia urge em demandas cruéis.
E prossegue o regime do abate das mentes ao ar livre.
A.M.
quinta-feira, 18 de janeiro de 2024
A EQUIPE TÉCNICA EM SAÚDE MENTAL : 10 LINHAS PARA O MÉTODO DA DIFERENÇA
(para Klécia e Vinicius, à época, companheiros de jornada)
1-A equipe técnica é um dispositivo grupal. Ou seja, trabalha e funciona visando um objeto e um objetivo: o paciente e o cuidado.
2-O Cuidado é um conjunto de ações práticas, incisivas, velozes, até mesmo ações não-práticas (por exemplo, usar novos conceitos, fazer diagnósticos, etc) que redundam em ações concretas e mudam alguma coisa para outra coisa.
3-Pensar é também uma prática, já que não se trata do pensamento reflexivo, mas do pensamento-em-ato, pensamento-corpo. Pensar é um exercício perigoso. Nisso há uma distinção importante para com os métodos da Academia, impregnados de positivismo e falso humanismo.
4-De acordo com o método da diferença, há um estilo deshierarquizado da equipe atuar em saúde mental. Figuras de autoridade técnica e institucional (como o médico, por exemplo) são usadas tão só como tijolos nas relações de produção do Cuidado.
5-Em face da sua história (cf. M. Foucault) a psiquiatria ainda ocupa o lugar da verdade em saúde mental, tanto em em relação ao paciente, quanto aos demais técnicos e à sociedade como um todo. Com status médico, compromissos morais e políticos inconfessáveis, aparece como o centro de ação para o Cuidado. Mas não é. Apenas reduz ou suprime (quando consegue) sintomas.
6-A busca da diferença no paciente é ao mesmo tempo a busca da diferença na equipe, em cada técnico, independente do nivel de escolaridade, do status social, do poder nas relações de trabalho e de tantas outras assimetrias O método da diferença valoriza a potência de criar e não a verticalidade dos contratos de mando e comando.
7-O método da diferença se corporifica na clínica da diferença. Um cuidado, para ser verdadeiro e real, passa pela escuta do outro e das suas linhas subjetivas expostas.
8-Se observarmos um caps, um ambulatório, um manicômio, há pistas cotidianas muito claras que mostram o quanto a clinica da diferença está sendo traída. Tudo começa pela Escuta quando não há escuta.
9-É necessária uma auto-análise grupal como condição para a Escuta. A questão técnico-individual (qual a sua graduação?) é substituída por qualidades como o senso de observação, a intuição, a sensibilidade fina, a inteligência, a atitude de espreita, entre outras.
10- Fazer a clinica da diferença é fazer a diferença na clínica. E seguir um método que vai além dos funcionários da organização, seja pública ou privada. Este método implica na produção do desejo de buscar e expressar novas linguagens, outros mundos, sonhos. Uma ética do trabalho se alia a uma estética da loucura não médica.
A.M. (fev/2021)
quarta-feira, 17 de janeiro de 2024
segunda-feira, 15 de janeiro de 2024
COMO FAZER A DIFERENÇA?
A diferença é um conceito discutido em profundidade em duas grandes obras do pensador Gilles Deleuze. Trata-se de Diferença e Repetição (1968) e Lógica do Sentido (1969). Tal densidade conceitual pode (e deve) ser usada por não-filósofos para o exercício de uma atitude ética essencialmente prática. Quer dizer: o mundo não é uma substância mas sim problemático (oco) por sua própria natureza e não por uma instância que lhe seria superior (a razão, por exemplo). Assim, tudo passa a ser imanência, tudo está na terra. O corpo da terra se tece na arte dos encontros pessoais e impessoais. Aí reside a diferença como linha curva, incerta, perigosa e delicadamente potente. Não exige nem possui explicações. Para experimentá-la basta seguir o fluxo do devir (o conteúdo do desejo) em suas infinitas possibilidades de conexão com outros devires. É com a criança-em-nós e com o tempo não-cronológico que a diferença estabelece seu traço irreversível. Mas não é fácil. Sem que se perceba, as instituições sociais administram o medo no interior de nós mesmos, naturalizando o horror e racionalizando a existência: o plano do capital é numa realidade mortuária for ever,
A.M.
A SOLIDÃO DO ESCREVER
Quando escrever é descobrir o interminável, o escritor que entra nessa região não se supera na direção do universal. Não caminha para um mundo mais seguro, mais belo, mais justificado, onde tudo se ordenaria segundo a claridade de um dia justo. Não descobre a bela linguagem que fala honrosamente para todos. O que fala nele é uma decorrência do fato de que de uma maneira ou de outra, já não é ele mesmo, já não é ninguém. O "Ele" que toma o lugar do "Eu", eis a solidão que sobrevêm ao escritor por intermédio da obra.
M. Blanchot - in O espaço literário
Lei e Corpo
A história do conhecimento humano registra pensadores e filósofos. Os pensadores menos importantes que os filósofos. Esta diferença torna-se transparente a partir do surgimento dos escritos de Nietzsche. Mas a distinção entre pensadores e filósofos é que os primeiros pensam a vida, os outros a sistematizam. É preciso pensar a vida nas suas manifestações e, livre das representações em sistemas fechados de pensamento. Dentre os recentes pensadores destacam-se os franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari, que melhor ilustram esta diferença. Ambos somam forças para uma reflexão em profundidade sobre os vários aspectos do mundo de conhecimentos. O pano de fundo de suas reflexões é a proposta de Nietzsche, pensador alemão do século dezenove. Através deles é possível trabalhar o campo da ciência e da arte como expressões dos movimentos vitais do corpo.
Os estudos sobre a “teoria do desejo” de Deleuze e Guattari se desenvolvem nos dois livros sobre Capitalismo e esquizofrenia. Um propõe o desejo enquanto “máquinas desejantes” e encontra-se no primeiro volume – O anti-Édipo. O outro trata de uma proposta para ver os efeitos desejantes nas produções lingüísticas enquanto “formação de regimes de signos” e se encontra no segundo volume – Mil platôs.
Gilles Deleuze e Felix Guattari, um filósofo e o outro psicanalista, uniram-se para refletir o indivíduo e a sociedade. Realizaram uma reflexão sobre os efeitos do capitalismo atuante e da esquizofrenia real manifesta nos dias atuais. O trabalho foi fazer uma inversão dos modos clássicos do pensamento, semelhante às praticadas por Nietzsche e que se aplica aos sintomas doentios dos atuais sistemas sócio-político-econômicos. A produção do pensamento desse modo não deve seguir sistemas rígidos e modelares de uma fixação ideal, mas tornar-se um fluxo vital das conexões desejantes.
Lei como regime de signos
Entende-se a lei como mecanismo que constrói códigos sobre os corpos. Regras nascidas da convenção e se instituem enquanto “marcas” nos indivíduos. A lei é signo e é a base da formação social. Segundo Deleuze e Guattari: “... a sociedade não é primeiramente um meio de troca onde o essencial seria circular ou fazer circular, mas um ‘socius’ de inscrição onde o essencial é marcar e ser marcado”. Por que a lei precisa fazer inscrição no corpo em forma de marcas? A lei não pertence ao corpo, isto é, não nasce com ele. Ela é necessária para organizar o corpo selvagem através de seus códigos. Pertence à ordem moral.
Ë nesse ‘socius de inscrição’ que a lei ganha conteúdo significativo. São signos que percorrerem a sociedade, produzindo direitos e deveres; instaurando-se enquanto mecanismos artificiais, isto é, artifícios inventados pelas convenções morais. São alianças que os homens fazem entre si, alianças calcadas num comprometimento de fazer cumprir deveres para receber direitos. São marcas necessárias para manter o mecanismo em funcionamento.
O homem ao receber as inscrições ele está recebendo um regime de signos instaurado na sociedade onde se encontra. É muito interessante observar este comportamento em “Capitalismo e esquizofrenia” de Deleuze e Guattari nos apontam este “regime de signos” : “... não dizemos que um povo inventa esse regime de signos, mas somente que efetua em um dado momento o agenciamento que assegura a dominância relativa desse regime em condições históricas .... Com o povo judeu, um grupo de signos se destaca da rede imperial egípcia da qual fazia parte, começa a seguir uma linha de fuga no deserto...”
O exemplo da fuga dos judeus do Egito permite perceber a explicação de uma lei que permanecerá na recordação do povo enquanto ordem social, mas que manterá o indivíduo num desconhecimento do próprio objeto dela; nesse sentido, ele precisará ser continuamente marcado através da repetição das regras de lei, componentes de sua moral. O que ocorre neste exemplo é o produto de um tipo de formação social que teve uma vivência primeira com a lei do faraó (a lei presente num corpo); depois os judeus fugiram com Moisés, que introduziu as Tábuas de Lei; a lei perde o corpo e se mantém apenas como normas, regras, padrões de conduta: sentenças.
A lei estará sempre numa sentença, se repetirá nas palavras. Existe uma “máquina”, produzindo a lei de forma substantiva; tirando-a da condição de sentença abstrata, a lei sai do regime de signos abstrato e se materializa. A noção de “máquina” enquanto regência nas relações de uma sociedade tem uma amplitude muito mais vasta nas questões colocadas por Deleuze e Guattari. Eles propõem três idéias para a utilização do termo Máquina: 1) Toda máquina está relacionada com um fluxo material contínuo que ela corta; são fluxos associativos no movimento intensos da matéria, movimentos este que a máquina, ao cortar, produz outros segmentos. 2) Toda máquina comporta uma espécie de código que se encontra engendrado e estocado nela. Um código inseparável de sua própria composição e que traz consigo uma cadeia de signos legisladores. A máquina assim tem uma face técnica e outra social: existe como mecanismo técnico e existe como meio de transmissão da lei. Por exemplo, um relógio é uma máquina técnica para medir o tempo, mas funciona como uma máquina social para conduzir os comportamentos, para reproduzir as horas, há muito tempo legislado e para assegurar a ordem na cidade. 3) Toda máquina, ao cortar o fluxo e produzir a organização através de seu código, provoca um corte-resto ou resíduo, que é efeito do funcionamento e existência da máquina. Esse terceiro aspecto da máquina é síntese dos dois primeiros; todos os três se inter-relacionam. A ação da máquina ao provocar o resíduo, efeito de seu funcionamento, provoca o surgimento de um “sujeito” ao lado dela, adjacente e inseparável da mesma, sujeito que se sacrifica para se integrar a ela.
Há um trabalho de Deleuze e Guattari sobre a obra literária de Kafka onde eles fazem uma reflexão sobre a “máquina abstrata da lei”: Sai assim da máquina abstrata da lei, que opõe a lei ao desejo, como o espírito ao corpo, como a forma à matéria, para entrar no agenciamento maquínico da justiça, isto é, na imanência mútua de uma lei decodificada e de um desejo desterritorializado“.
A máquina é um agenciamento, trata-se de uma associação de funções de agentes. Os agentes são múltiplos e mantêm entre si uma constante relação. É pela relação das peças que a máquina funciona. Cada elemento da relação é um agente que tem uma determinada função; o conjunto das funções produz o agenciamento.
Uma máquina, no seu aspecto técnico e material, tem, no seu constructo, peças ou funções próprias e características, que se relacionam para determinada finalidade. O conjunto destas funções da máquina é acionado para uma outra finalidade para além da máquina, e é acionado por agentes externos que correspondem ao aspecto social da máquina. É um outro agenciamento que implica um conjunto de funções externas dadas por outras relações, como no exemplo da máquina-relógio.
Logo, há uma função interna da máquina e uma função externa das relações sociais. Consideremos agora um corpo como se fosse uma máquina técnica, veremos que ele possui seu próprio agenciamento e vai se inserir num agenciamento transcendente a ele que são as funções dos códigos da lei. O corpo, então, possui seu próprio agenciamento e a lei possui outro e diferente agenciamento externo a ele. Como é possível se unirem?
Para compreender a introjeção da lei no corpo, utiliza-se a teoria dos afetos na obra do filósofo Espinoza (séc. XVII) o que facilita esta compreensão. Admite-se que todos os corpos se relacionam através de encontros; é um jogo de ação (agir) e de paixão (sofrer ação). Nesses encontros os corpos se afetam mutuamente. É uma questão de vida na matéria-natureza e esta matéria aparece em termos de composição e/ou decomposição.
A composição rege uma lei e uma ordem na Natureza, onde a matéria vive, quando a relação produz composição; e perece quando a relação produz decomposição: um encontro que produz composição produz mais vida, aumento de força; o contrário resulta em enfraquecimento: ...”o mal é sempre um mau encontro, é sempre uma decomposição de relação .... Espinoza insiste sobre este ponto quando interpreta o célebre exemplo: Adão comeu o fruto proibido. Não se deve pensar, diz Espinoza, que Deus proibiu algo a Adão. Simplesmente, Deus lhe havia dito que esse fruto era capaz de destruir o seu corpo e fazer a decomposição da relação. Exemplo da primeiríssima lei entre os homens. O conselho de Deus não é uma lei externa e transcendente ao corpo de Adão, mas um sábio aviso de que o fruto o envenenará, um encontro que traria decomposição.
Segundo o que Deleuze observa desta teoria de Espinoza, todos os fenômenos que agrupamos sob a categoria do ‘mal moral’, tais como as doenças e a morte, são desse tipo: mau encontro, indigestão, envenenamento, intoxicação, decomposição de relação. Logo, no jogo da ação (poder de um corpo de afetar outro) e da paixão (poder de um corpo de ser afetado) nascem as composições e ou as decomposições”.
No homem, um encontro que produz composição resulta num sentimento de alegria, é bom encontro; um encontro que produz decomposição resulta num sentimento de tristeza, é mau encontro. Estes sentimentos é que regem os desejos do homem. Um corpo se agencia com outro corpo, tem poder de afetar e de ser afetado, forma-se um agenciamento; neste os afetos se fortalecem ou se enfraquecem, dependendo dos bons ou dos maus encontros, ou seja, em termos dessa alegria ou dessa tristeza.
Nesta perspectiva da teoria dos afetos, o desejo se insere na região dos afetos; não está nem dentro do corpo, nem fora dele: é efeito das relações. Nesta noção do desejo utilizada por Deleuze e Guattari, o desejo não está regido pela falta, como na concepção das teorias freudianas; ele vai se constituir pelos estados do corpo, os seus humores, num agenciamento, na relação dos bons ou maus encontros ou relação de seus afetos.
Parece haver uma contradição entre lei e desejo, oposição que surge de uma antinomia do espírito e do corpo, contribuindo para uma incompatibilidade entre matéria e forma. O que ocorre é que lei, espírito e forma se inserem no campo da transcendência, mas desejo, corpo e matéria pertencem ao campo da imanência.
Concebemos imanência como sendo o que está “dentro de” e transcendência como sendo o que está “fora de”. Se desejo é o que se produz no interstício de um agenciamento, corpo é um agenciamento de matéria, e matéria é relação de intensidade de força (conforme a concepção da física pós-einsteiniana), logo, inserem-se numa imanência.
No entanto, a lei é abstrata, foi abstraída do conhecimento do mundo, está fora do mundo. O espírito é concebido como um estado de coisas, uma alma, uma atmosfera que não está na relação, logo também está fora; a forma é tomada na acepção de imagem, figura ou idéia, uma perspectiva do observador sobre a coisa observada, dependendo da posição do observador a forma ou imagem será sempre outra, ela não pertence à coisa, também se encontra fora. Portanto, podemos entender porque Deleuze e Guattari declaram a existência dessa oposição entre lei e desejo. E, durante uma formação social vai ocorrer alguma coisa que Deleuze e Guattari chamam de “captura do desejo”. A lei, que era código externo ao corpo, vai ser introduzida nos corpos, vai dominar os afetos, e nesse domínio ela se torna imanente. Haverá uma “imanência mútua de uma lei decodificada e um desejo desterritorializado”, como os vimos afirmar na Nota n. º 3 mais acima. Parece-nos ser esta a questão fundamental nos estudos sobre capitalismo e esquizofrenia que Deleuze e Guattari trabalharam.
Lea Guimarães e Murilo Guimarães
sábado, 13 de janeiro de 2024
quinta-feira, 11 de janeiro de 2024
QUATRO OBJETOS TEÓRICOS
A experiência clínica em psicoterapia conta com 4 objetos teóricos, entre outros. São, sem ordem de importância, o Tempo, a Morte, o Amor e o Poder. Eles configuram um enfoque existencial que segue o processo terapêutico como experiência do novo, ainda que este "novo" não se defina com clareza. E certamente não é para fazê-lo, tal a indeterminação do que virá, ou mais precisamente, dos objetivos a serem alcançados. Há muitas formas de psicoterapia, já que esta se põe à serviço das demandas urbanas nas sociedades atuais. O capitalismo, como diz F. Guattari, funciona em escala planetária, produz a angústia dos tempos que correm, notadamente como decomposição de valores tidos como eternos. É nesse ponto de inflexão teórica que os objetos teóricos referidos guardam pertinência como conceitos operacionais no interior de práticas sociais concretas, como é o caso da clínica psicoterápica. O tempo como irreversíbilidade, a morte como amálgama da vida, o amor como acontecimento amar e o poder como potência de existir, se expressam em linhas mutantes de uma vida a se construir.
A.M.
Necropsiquiatria - Esboço de conceito: parte 2
Os pacientes são considerados como totalidades orgânicas que demandam intervenção química.
E só.
Trata-se de um pressuposto epistemológico da psiquiatria atual. Não aparece na tecnologia clínica, nem há psicopatologia.
Assim é produzido um território clean na relação com o paciente.
A.M.
segunda-feira, 8 de janeiro de 2024
Necropsiquiatria: esboço de conceito - parte 1
A psiquiatria atual se mostra como agência de controle para comportamentos sociais incômodos. Não dispõe nem pesquisa uma psicopatologia que lhe daria suporte clínico. Funciona em agenciamentos policiais com respaldo jurídico.
Camufla-se em ciência médica.
Ao promover o conserto de organismos cerebrais, imobiliza a produção de afetos.
No seu lugar, instaura zumbis bioquimizados.
A.M.
domingo, 7 de janeiro de 2024
sexta-feira, 5 de janeiro de 2024
quinta-feira, 4 de janeiro de 2024
TEMPOS DE AGORA
A "verdade" é uma mercadoria produzida em escalas maiores e/ou menores, a depender dos veículos utilizados para tal. Entre estes, as redes sociais figuram como produção incontrolável de crenças morais, políticas, científicas, religiosas, etc... O mundo gira em torno de informações/comunicações em velocidades que desfazem toda e qualquer possibilidade de crítica. Há uma produção acelerada de retardos mentais. Ontem é hoje que já é amanhã que tornou-se ontem como bolha de sabão. As certezas metafísicas (quem sou?) são substituídas por fluxos eletrônicos e neurocabos conectados às imagens de uma imensa tela subjetiva. Sob tais condições, não há mais como dizer eu, pessoa, consciência, enunciar boas intenções humanísticas. Afinal, estamos todos imersos na mesma sopa mundial, cada vez mais unidos, cada vez mais beligerantes uns com os outros. Nem mais o apocalipse inspira tanto terror...
A.M.
quarta-feira, 3 de janeiro de 2024
terça-feira, 2 de janeiro de 2024
VIAGENS DE MIGUEL
Aos 3 anos e 8 meses, Miguel venceu o medo da água... Começou mergulhando,e depois, (não tanto depois), deu de nadar mergulhado,ou de mergulhar nadando. Seja que nome se dê a tal equilibrismo aquático, Miguel já se mistura à água numa alegria que faz vibrar o seu corpo: usa as mãos em ritmo de "cachorrinho" enquanto os pés e pernas se movem num vigoroso estilo, rs..Ele se joga, vai ao fundo e retorna em segundos diante da mãe assustada. Cuidado, Miguel! Ora, esse grito não lhe parece chegar aos ouvidos e sim uma outra coisa lhe toma, outro fluxo, movimentos rápidos que sustentam o fôlego em pequenas viagens na piscina imensa. Aprendeu o macete de segurar nas bordas ao alcance das mãos. Por aí se desloca até que de novo reinicia o nado sob a linha da água.Depois sobe, depois desce, flertando com os riscos da aventura num meio que não é o seu.No entanto, é sim o seu meio (somos água), é sim a sua linha de velocidade intensiva, tornando-se uno com as ondas que ele mesmo suscita. Miguel continua um viajante fluindo energéticas que escapam à minha limitada compreensão de adulto.Tento aprender com ele...
A.M. em 15/11/2014
segunda-feira, 1 de janeiro de 2024
COMANDOS DE VOZ