sábado, 30 de março de 2024

O QUE É DEVIR?

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Escrever como um rato que agoniza: o conteúdo mudou na maneira de escrever, ambos se tornaram indiscerníveis. Mas isso é por que são parecidos, ou imitam um ao outro? Nisso consistem possibilidades literárias reais, mas o texto de Kafka começa pela exclusão esta hipótese. O que significa “escrever como um rato que agoniza”? Não há um risco de recairmos em algum tipo de comentário desatualizado, usando metáforas para descrever o estilo, e escavando para fazê-lo a partir do conteúdo, como se o estilo e o conteúdo fossem semelhantes (a adequação é então conseguida por meio de trapaça). Não está claro por que razão se deve exigir que se descreva caninamente um cão, mas tigremente um tigre, ou o que isso poderia significar. Deleuze & Guattari sabem bem que a escrita de Hofmannsthal não se assemelha à agonia de um bando de ratos, nem a de Melville à estratégia de uma baleia para escapar de seus predadores. A primeira impressão é, no entanto, que eles nos deixam loucos: escreva como animais (ou outra coisa qualquer), mas tenha cuidado – sem imitá-los (senão você obviamente vai parar de escrever). Uma outra formulação nos coloca no caminho, no trecho dos Diálogos citados acima: “dar escrita àqueles que não a têm”.

O problema é aquele que nós colocamos desde o início: pensar uma espécie de identidade ou de indistinção de expressão e do conteúdo, uma vez excluída a categoria impotente da imitação. Esbocemos uma interpretação. O que é um animal na linguagem? Ele é descrito, representado, com mais ou menos habilidade (nós somo dotados da capacidade mais ou menos bem fazer um uso comum da língua). Mas a escrita propriamente dita começa quando a representação não é mais apenas exata, mas viva, quando se atinge o animal intenso, afetivo, pois isso supõe recursos sintáticos próprios, um estilo.

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François Zourabichvili, conferência em 27/03/1997

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