Gilles Deleuze e Félix Guattari leitores de Marx: a inspiração marxista do conceito de desejo desenvolvido no Anti-Édipo
No primeiro capítulo de sua obra intitulada O Anti-Édipo, Gilles Deleuze e Félix Guattari sentam as bases de uma nova concepção de desejo que se opõe, segundo eles, a uma concepção clássica, que é qualificada como idealista e que havia dominado a história da filosofia até então. Eles censuram a tradição idealista por pensar o desejo negativamente, fazendo-o derivar de uma suposta falta (manque). Os dois autores procuram, em oposição a esta tradição, devolver ao desejo sua dimensão positiva. Empreender tal tarefa exige defender a tese segundo a qual o desejo é um processo de produção. Para defender essa tese eles retomam os conceitos e os desenvolvimentos presentes na obra de Marx, que é evocada sucessivas vezes, de forma explícita ou implícita, ao longo do primeiro capítulo do Anti-Édipo.
Consideramos que seria interessante estudar a maneira como Gilles Deleuze e Félix Guattari fazem uso, no primeiro capítulo do Anti-Édipo, do pensamento de Marx. Não nos deteremos sobre todas as referências feitas à obra de Marx em dito capítulo para poder concentrar nossa atenção principalmente sobre a definição de desejo como processo de produção. Tal definição constitui um ponto central na luta de Deleuze e Guattari contra o idealismo. Em seguida, procuraremos entender uma referência a Marx que parece, a primeira vista, estranha, posto que alude a uma noção que não faz parte daquelas que estamos acostumados a atribuir ao pensador alemão: “Como diz Marx, não existe falta, existe paixão como “ser objeto natural e sensível”” 1. Para concluir, tentaremos identificar, levando em conta toda a reflexão desenvolvida ao longo do texto, até que ponto Deleuze a Guattari seguem Marx.
O desejo como processo de produção.
No Anti-Édipo, o ponto de partida de Gilles Deleuze e Félix Guattari é a definição de desejo como um processo de produção, processo que deve ser entendido em dois sentidos.
Num primeiro sentido, processo quer dizer, segundo eles, “colocar o registro e o consumo na própria produção, fazer deles produções de um mesmo processo” 2 . Aqui reencontramos Marx e sua crítica da economia política, que vê a produção, o consumo, o intercâmbio e a distribuição como categorias independentes que às vezes se articulam, mas que num primeiro momento estão separadas. Esta crítica é claramente formulada por Marx na Introdução a Crítica de Economia Política de 1857. Neste texto ele propõe, como alternativa ao esquema idealista da economia política, um conceito de processo de produção que integra outros elementos (consumo, distribuição e intercâmbio) no seio da categoria de produção. Para ele, assim como para Deleuze e Guattari, qualquer parte da produção é produção.
A enunciação do segundo sentido de processo acompanha, ainda, os passos de Marx e é indissociável da primeira definição.
Com efeito, para Deleuze e Guattari a adequada compreensão do segundo sentido de processo evita que caiamos no esquema idealista que mencionamos mais acima. Este segundo sentido é formulado pelos autores da seguinte maneira: “homem e natureza não são como dois termos confrontados, mesmo que entre eles procuremos estabelecer relações de causação, de compreensão ou de expressão (causa-efeito, sujeito-objeto, etc.); pelo contrário trata-se de uma única e mesma realidade essencial do produtor e do produto. A produção como processo transborda todas as categorias ideais e forma um ciclo que se relaciona com o desejo enquanto princípio imanente” 3. Aqui encontramos o Marx dos Manuscritos de 1844 e sua posição “naturalista”. Uma passagem situada no final do primeiro manuscrito enuncia a questão: “A natureza, ou seja, a natureza que não é ela própria o corpo humano, é o corpo não orgânico do homem. Dizer que o homem provém da natureza significa afirmar que a natureza é o seu corpo; um corpo com o qual o homem deve permanecer constantemente em contato para não morrer. Dizer que a vida psíquica e intelectual do homem está indissoluvelmente ligada à natureza é o mesmo que dizer que a natureza está ligada a ela mesma, porque o homem é uma parte da natureza” 4. Este naturalismo não é fácil de entender. Em que sentido esta concepção da união essencial do homem com a natureza nos ajuda a sair do idealismo? Para compreender este ponto, podemos seguir o comentário de Gérard Granel, citado por Deleuze e Guattari em suas notas. Este comentário dos Manuscritos de 1844 se encontra em um artigo intitulado A ontologia marxista de 1844 e a questão da separação (L’ontologie marxiste de 1844 et la question de la coupure). Neste artigo, Granel mostra que Marx, em 1844, se apoia, antes de qualquer coisa, sobre a filosofia de Feuerbach para sair do esquema idealista que distingue sujeito de objeto. Este esquema idealista teve em Hegel seu último grande representante. Mas qual seria o pensamento feuerbachiano sobre o qual se apoiaria Marx segundo a perspectiva de Granel? A este respeito, Granel escreve o seguinte: “quando Feuerbach afirma “eu preciso de ar para respirar”, ele não pretende fazer a constatação trivial da dependência de uma função fisiológica no que diz respeito ao ambiente físico. A questão, na verdade, é estabelecer uma unidade essencial: “Um ser que respira é impensável sem o ar, um ser que vê é impensável sem a luz…”. Isto significa que a luz, na abertura na qual qualquer coisa é dada a ver, não é uma abertura que poderia se produzir como um movimento das coisas, um evento no real, mas uma abertura sobre o modo do sempre-já 5. Neste texto, Granel nos mostra como Feuerbach sai da concepção da “relação entre o homem e a natureza”. Quando falamos de “relação” se subentende que existem dois termos (o homem e a natureza) e mesmo se esta relação é enunciada como necessária (aqui esta relação necessária seria aquela do homem com o ar), ela acaba nos fazendo perder o que Granel chama de “unidade original do ser e do homem”, ou seja, a unidade original da natureza e do homem. Esta crítica feuerbachiana é uma crítica da metafísica moderna e de sua concepção do homem. Segundo Granel, esta concepção metafisica do homem foi fixada por Descartes em sua definição da essência do homem como coisa que pensa. Coube a Hegel realizar filosoficamente dita perspectiva. Esta metafísica da subjetividade e do ser pensante define a linguagem da razão moderna que nos conduz ao equívoco ao fazer-nos crer em uma distinção sujeito-objeto, na existência de uma interioridade que preexiste à sua inscrição no mundo, na exterioridade. Isto nos faz perder o terreno primeiro da experiência humana, o “sensível” ou ainda a “passividade” ou a “necessidade” que “testemunha que o homem não está em uma “relação” 6 nem consigo mesmo nem como as coisas”. Mas como podemos representar esta concepção anti-metafísica tão contrária à estrutura da linguagem? Como pensar o ser-no-mundo do homem sem a categoria “relação”? Granel nos esclarece este ponto ao desenvolver um exemplo feuerbachiano sobre a respiração: “Se eu respiro, eu recebo do ar não somente o que eu respiro, mas também a minha própria respiração”. Então isto não é nunca uma simples troca de oxigênio e CO2. O homem só respira, ou seja, aspira, retém profundamente e relaxa lentamente o abdome como uma resposta ao sopro do ar: esta forma-de-mundo que eu denomino “ar” não é uma mistura de gases, mas uma modalidade do ser-sobre-a-terra, da mesma natureza e da mesma extensão que as cores das madeiras, elas também respiradas, e que a luz que enche os pulmões dos olhos7. A respiração não é, então, uma relação de troca entre o interior (os pulmões) e o exterior (o ar). O ar é uma “modalidade do ser-sobre-a-terra” que existe numa unidade essencial do homem e da natureza. Granel entende tudo isso como o conjunto da vida e é esta perspectiva que lhe permite afirmar que “o mundo detém minha alma desmembrada em seu âmago; assim eu recebo um eu-mesmo que não posso pensar como separado de nada”. Permanecemos nas coisas antes de qualquer relação 8. Granel sugere que Marx assimila a revolução teórica feuerbachiana. Contudo, em Marx o reconhecimento da importância teórica da obra de Feuerbach vai de mãos dadas com uma crítica e com uma vontade de transcendê-la. A este respeito nós ainda podemos seguir o artigo de Granel, que aborda a questão num tópico intitulado Do “sensível” à “indústria”: o ser como produção. O conteúdo do tópico fica explícito no próprio título: trata-se de mostrar que a crítica de Marx a Feuerbach consiste em atacar o conceito feuerbachiano de “sensível” – muito teórico e ainda tributário da metafísica moderna – para lhe conferir um sentido mais prático graças à categoria de produção. Marx formula esta vontade teórica na quinta tese sobre Feuerbach: “Feuerbach, não satisfeito com o pensamento abstrato, faz um apelo à intuição sensível; mas ele não considera o mundo sensível enquanto atividade prática concreta do homem9”. A revisão do artigo de Granel deve nos permitir compreender um pouco melhor a leitura deleuzo-guattariana dos Manuscritos de 1844. Granel nos diz que a questão que deve nos ocupar é, fundamentalmente, a seguinte: “como e em que sentido o ser pode aparecer para Marx como produção? 10” Segundo ele, a resposta a esta questão se encontra na interpretação da equação formulada por Marx no primeiro manuscrito: “mas a vida produtiva é a vida genérica11”. Marx desenvolve esta ideia ao definir o vivente através da atividade (como Aristóteles, um dos seus mestres) e ao definir o modo de atividade de uma espécie viva como aquilo que nos permite defini-la. O modo de atividade vital de uma espécie define seu caráter genérico e Marx nos diz que “a atividade livre, consciente, é o caráter genérico do homem12”. Enquanto o animal se confunde com sua atividade vital, o homem faz dela o objeto de sua consciência e confronta de forma consciente e livre os produtos do seu trabalho. Ainda que o homem seja, junto com os animais, uma parte da natureza, um ser natural, ele dispõe de uma consciência que é fruto, por sua vez, de uma atividade natural. Esta especificidade do ser humano lhe permite criar para si um mundo que lhe é próprio. Marx nos mostra, assim, que existe uma vida especificamente humana. Enquanto ser genérico, ou seja, enquanto ser vivo consciente, o homem pode agir voluntariamente para os outros homens e pode produzir o mundo de determinada maneira. Em outras palavras, o homem pode recriar, transformar o mundo para ele e para os outros membros da sua espécie e inclusive para outras espécies porque, como diz Marx, ele (o homem) “sabe produzir à medida de todas as espécies e sabe aplicar ao objeto, em qualquer lugar, sua natureza inerente13 ”. Assim o homem se transforma a si mesmo e ao seu próprio gênero. Podemos, a partir de agora, regressar sobre o texto de Deleuze e Guattari que diz: “a indústria não está mais presa numa relação extrínseca de utilidade, mas sim em sua identidade fundamental com a natureza como produção do homem e pelo homem. Não mais o homem como rei da criação, mais sim o homem como aquele que é tocado pela vida profunda de todas as formas e de todos os gêneros (…) eterno auxiliar das máquinas do universo 14”. A partir daí podemos compreender como Deleuze e Guattari conseguem se apoiar na leitura dos Manuscritos de 1844 para construir seu conceito de desejo como processo de produção. Isto é o que lhes permite definir o “esquizo”, modelo conceitual do ser desejante, como “Homo natura”. É necessário acrescentar que esse “esquizo” será também qualificado como “Homo historia”, visto que Deleuze e Guattari não seguem Feuerbarch, mas sim Marx, que transcende Feuerbach ao fazer do “sensível” a produção – ou a indústria –, originando, assim, a equação “Natureza=Indústria, Natureza=História”. Também é interessante notar que Deleuze e Guattari se apresentam como os “Marx da psiquiatria”, superando o “Feuerbach da psiquiatria”, o doutor Clérambault: “Clérambault é o Feuerbach da psiquiatria no sentido em que Marx diz “na medida em que Feuerbach é materialista, nele já não podemos encontrar a história e na medida em que ele leva a história em consideração ele não é materialista. Uma psiquiatria verdadeiramente materialista se define por uma dupla operação: introduzir o desejo no mecanismo, introduzir a produção no desejo15”
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Guilhaume Mejar
Por GEAC - Antropologia crítica, dezembro/2021