domingo, 31 de agosto de 2025

O MONÓLOGO DA PSIQUIATRIA BIOLÓGICA

No exame do paciente, a psiquiatria biológica chama de sintomas positivos aqueles sintomas  expressos claramente. Ex.: diz o paciente: "eu sou o apocalipse". Por outro lado, sintomas negativos são os que não são expressos. O paciente se mostra negativista, mudo, olhar vago, não coopera, enfim. Ora, tal raciocínio é uma das maiores vergonhas da semiologia clínica em psicopatologia. Primeiro, porque não existe o não expresso. A  não expressão é uma expressão, assim como não existe o não afeto. O não afeto é um afeto. Segundo, porque a linguagem não é apenas verbal, podendo ser não-verbal, corporal, dramática, enfim, a-significante. Terceiro, porque baseada na não cooperação do paciente ("ele não se comunica") a psiquiatria justifica o uso indiscriminado de psicofármacos aparentemente para fazê-lo se comunicar. Ou seja, não tem diagnóstico, mas o paciente tem que falar, tem que dizer algo, tem que responder à interpelação psiquiátrica. Quarto, porque os modos de subjetivação não obedecem a uma lógica da consciência ou da racionalidade. Sendo assim, eles podem passar ao largo do olhar psiquiátrico. Ou até ameaçar o saber/poder psiquiátrico.Quinto, porque o exame tende a ser um fracasso da percepção médica em termos da realidade subjetiva, já que o paciente se apresenta como máquina que não funciona, mecanismo inerte, travado, entupido, quando sabemos que tudo está funcionando, talvez não do modo como a psiquiatria gostaria. Sexto, curiosamente, mas sem uma neuro-explicação, os psicofármacos costumam ser mais "eficientes" nos casos de sintomas positivos, enquanto que quanto aos sintomas negativos nada muda, nada melhora, exceto o rechaço cada vez maior à figura do psiquiatra remedeiro.


A.M.

O APRENDIZADO


 

CONTAGEM  REGRESSIVA

FALTAM   2   DIAS

comunistas

anarquistas 

alquimistas

feiticeiros

guerreiros


no frêmito

da  terra



A.M.

Kandace Springs - I Put A Spell On You (Live Session)

AINDA SOBRE REGIMES DE DELÍRIOS

O delírio é a matriz da produção desejante. No fundo da história, o Id. É preciso ler Marx, Nietszche, Freud, Groddeck e muito depois Deleuze/Guattari para situar o delírio como produção desejante no campo social e na história das civilizações. E com isso aniquilar o conceito de eu, pessoa, subjetividade cristã e boas intenções da consciência. Em tempos capitais, a produção desejante oscila entre nós subjetivos, se expressa em máscaras de rostidade e faz da macropolítica a micropolítica. E vice-versa. Atualiza e internaliza o inconsciente, o delírio, o chamado mundo psíquico, enfim, o fundamento-sujeito como centro de um mundo sem centro.

Que o diga a ultra-direita global.


A.M.

sábado, 30 de agosto de 2025

"Memories (Final Version)" Music By Nave Artificial

Hoje sinto no coração

um vago tremor de estrelas,

mas minha senda se perde

na alma de névoa.


A luz me quebra as asas

e a dor de minha tristeza

vai molhando as recordações

na fonte da ideia.


Todas as rosas são brancas,

tão brancas como minha pena,

e não são as rosas brancas

porque nevou sobre elas.


Antes tiveram o íris.

Também sobre a alma neva.


A neve da alma tem

copos de beijos e cenas

que se fundiram na sombra

ou na luz de quem as pensa.


A neve cai das rosas,

mas a da alma fica,

e a garra dos anos

faz um sudário com elas.


Desfazer-se-á a neve

quando a morte nos levar?

Ou depois haverá outra neve

e outras rosas mais perfeitas?


Haverá paz entre nós


como Cristo nos ensina?

Ou nunca será possível

a solução do problema?

E se o amor nos engana?

Quem a vida nos alenta

se o crepúsculo nos funde

na verdadeira ciência

do Bem que quiçá não exista,

e do mal que palpita perto?


Se a esperança se apaga

e a Babel começa,

que tocha iluminará

os caminhos da Terra?


Se o azul é um sonho,

que será da inocência?

Que será do coração

se o Amor não tem flechas ?


Se a morte é a morte,

que será dos poetas

e das coisas adormecidas

que já ninguém delas se recorda?


Oh! sol das esperanças!

Água clara! Lua nova!

Coração dos meninos!

Almas rudes das pedras!


Hoje sinto no coração

um vago tremor de estrelas

e todas as coisas são

tão brancas como minha pena.


Frederico Garcia Lorca

MOMENTO HISTÓRICO

QUEM É POETA?

A experiência poética não é só a de quem escreve o poema, mas também a de quem o lê. Em tempos de tecnologia industrial avançada e aparentemente vencedora, a poesia ocupa um lugar de criação "menor" e por isso, maior. Maior só o menor, o ínfimo. Não no sentido de uma forma "pequena", mas o "sem forma", como nos espaços infinitesimais do filme "O incrível homem que encolheu" ( Jack Arnold, 1957). A experiência poética se dá num processo de criação subjetiva (bem entendido, no mundo) onde a violência feita à sintaxe e à semântica afronta o caos no próprio terreno que é o da semiótica. Produzir signos a-significantes talvez seja a função do poeta/leitor como aventureiro dos universos indizíveis. Por isso experimenta o gosto das paixões sem dono. Ler um poema é ligar-se ao poema numa linha de fuga existencial nem que  por um segundo. Zero para a possibilidade de interpretar ou compreendê-lo, ele, o sem-razão e sem-governo, o sem-sentido, o poema. O sentido é o que é produzido pelo leitor. Assim, a experiência poética é  acessivel a todos. Basta sentir a pulsação das horas no coração da Terra. Não é fácil, mas vale a pena. 


A.M.

Supercombo - Amianto

não foi um cruzeiro


meu nome e

minha língua


meus documentos e

minha direção


meu turbante e

minhas rezas


minha memória de

comidas e tambores


esqueci no navio

que me cruzou

o Atlântico.


Lubi Prates

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

REGIMES DE DELÍRIOS

O termo "delírio" apresenta uma história atravessada pelo romantismo. Assim, quando se diz " delírio de amor", evoca-se uma intensidade afetiva  na constituição do sujeito e do objeto da sua paixão. Há uma imagem que força a desejar e delirar.

Na psiquiatria clínica, orgânica, biológica, o delirio tem origem no cérebro em alguma disfunção ou numa lesão das estruturas neuronais. Até se convencionou chamar isso de " delírium" (do latim) para qualificar o sintoma "causado" pela alteração do estado da consciência. Esse estado percorre amplo espectro clínico, indo da consciência vigil ao coma ( apagamento da consciência).

Ainda na psiquiatria clínica, o delírio cursa com a psicopatologia e suas múltiplas expressões, tais como nas psicoses, esquizofrenias, transtornos do humor, transtornos da personalidade, histerias, etc... todo um universo semiológico delirante.

Fora do círculo normativo e clínico da psiquiatria , encontramos o delírio, ou mais precisamente, a experiência delirante por toda a parte: na arte, na literatura, na política, na filosofia, no espiritualismo, nas religiões em geral e até no cotidiano das relações sociais e pessoais...

Em toda as manifestações persiste a dificuldade em avaliar o que é o delírio e qual a sua origem. Resta a psiquiatrização mais tosca. É que sob uma égide moral, o delírio é visto com "má vontade" . Ele escapa ao controle institucional e racional, e por conseguinte desconcerta a prática de normalização dos indivíduos levada à efeito pela necro psiquiatria. No entanto, a expressão delirante, para ser compreendida nos seus elementos históricos atuais, extrapola tal enquadre psicopatológico.

Desse modo é possível arriscar a hipótese teórica de que a modernidade produziu e produz em escala planetária condições sociais, políticas, culturais e tecnológicas para o desenvolvimento de um delírio não médico e não romântico. Aí está contida uma questão intrigante sobre a verdade.

E cada vez mais, movida a velocidades internéticas, tal questão se traduz em perguntas sem resposta: isso é verdade? qual a verdade? existe a verdade? para que serve a verdade? a quem serve?

Ó Nietzsche!


A.M.



terça-feira, 26 de agosto de 2025

D  de  DESEJO

(...)

CP: É por ser um agenciamento, que você precisou, naquele momento, ser dois para escrever por ser em um conjunto, que precisou de Félix, que surgiu em sua vida de escritor?

GD: Félix faria parte do que diremos, talvez, sobre a amizade, sobre a relação da filosofia com algo que concerne à amizade, mas, com certeza, com Félix, fizemos um agenciamento. Há agenciamentos solitários, e há agenciamentos a dois. O que fizemos com Félix foi um agenciamento a dois, onde algo passava entre os dois, ou seja, são fenômenos físicos, é como uma diferença, para que um acontecimento aconteça, é preciso uma diferença de potencial, para que haja uma diferença de potencial precisa-se de dois níveis. Então algo se passa, um raio passa, ou não, um riachinho… É do campo do desejo. Mas um desejo é isso, é construir. Ora, cada um de nós passa seu tempo construindo, cada vez que alguém diz: desejo isso, quer dizer que ele está construindo um agenciamento, nada mais, o desejo não é nada mais.

CP: É um acaso se… porque o desejo é sentido, enfim, existe em um conjunto ou em um agenciamento, que O anti-Édipo, onde você começa a falar do desejo, é o primeiro livro que você escreve com outra pessoa, com Félix Guattari?

GD: Não, você tem razão, era preciso entrar nesse agenciamento novo para nós, escrever a dois, que nós dois não vivíamos da mesma maneira, para que algo acontecesse, ou seja, e esse algo era, finalmente, uma hostilidade, uma reação contra as concepções dominantes do desejo, as concepções psicanalíticas. Era preciso ser dois, foi preciso Félix, vindo da psicanálise, eu me interessando por esses temas, era preciso tudo isso para dizermos que havia lugar para fazer uma concepção construtiva, construtivista do desejo.

CP: Você poderia definir, de modo sucinto, como vê a diferença entre o construtivismo e a interpretação analítica?

GD: Acho que é bem simples. Nossa oposição à psicanálise é múltipla, mas quanto ao problema do desejo, é… é que os psicanalistas falam do desejo como os padres. Não é a única aproximação, os psicanalistas são padres. De que forma falam do desejo? Falam como um grande lamento da castração. A castração é pior que o pecado original. É uma espécie de maledicência sobre o desejo, que é assustadora. O que tentamos fazer em O anti-Édipo? Acho que há três pontos, que se opõem diretamente à psicanálise. Esses três pontos são… isso por meu lado, acho que Félix Guattari também não, não temos nada para mudar nesses três pontos. Estamos persuadidos, achamos em todo caso, que o inconsciente não é um teatro, não é um lugar onde há Édipo e Hamlet que representam sempre suas cenas. Não é um teatro, é uma fábrica, é produção. O inconsciente produz. Não pára de produzir. Funciona como uma fábrica. É o contrário da visão psicanalítica do inconsciente como teatro, onde sempre se agita um Hamlet, ou um Édipo, ao infinito. Nosso segundo tema é que o delírio, que é muito ligado ao desejo, desejar é delirar, de certa forma, mas se olhar um delírio, qualquer que seja ele, se olhar de perto, se ouvir o delírio que for, não tem nada a ver com o que a psicanálise reteve dele, ou seja, não se delira sobre seu pai e sua mãe, delira-se sobre algo bem diferente, é aí que está o segredo do delírio, delira-se sobre o mundo inteiro, delira-se sobre a história, a geografia, as tribos, os desertos, os povos…

CP: … o clima.

(...0

O Abecedário - Gilles Deleuze e Clais Parnet, 1988 - transcrição in Machine Deleuze, site acessado em 27/08/2025

para um rosto

desconhecido

de mulher

num bar à noite

                          esta flor


A.M


DEPREFIT

Melhor do que roubar bancos é fundar um. O que é roubar um banco comparado a fundar um?


Bertolt Brecht

ESGOTO ESPIRITUAL

A palavra "espiritualidade" é tributária de longa tradição ocidental cristã, talvez do oriente milenar, hoje incorporada ao sistema do capital em seu estágio industrial avançado. Produção em série, linha de montagem. Conotada a "algo bom ", ao " bem", a espiritualidade, com toda a carga de afetos positivos que  evoca, faz por compor a vitrine das mercadorias destinadas a um "bom viver". Operada como substância,  objeto, "ter espiritualidade" ou "desenvolver a espiritualidade", torna-se um ato grotesco num mundo em putrefação ética. Seja o cinismo da geopolítica, o descaso pela pobreza de milhões ou a predação da natureza, a espiritualidade, sob as condições da sociedade moderna, é a eterna  fiadora da boa pessoa.


A.M. 

domingo, 24 de agosto de 2025

And It’s Supposed to be Love

CONCEITO DE ENCONTRO

Podemos  chamar   de    “dobras”  subjetivas   as  ligações    entre   as  linhas  do  Encontro.  Torná-las viáveis,  atualizá-las,   enfim, no campo da clínica   é   produzir  dobras, estendê-las,  distendê-las.   Isso  significa  criar   linhas   vivenciais   práticas.  Podemos  então  “dividir”  o Encontro em  5    linhas  que  se  misturam  e  se  materializam na  relação  técnico-paciente ao tempo  em que    a questão  se  coloca :  -  o  que  fazer?  o coletivo, o  socius,  a     ética,  a  estética e  a técnica são  referências,  linhas misturadas.  O coletivo é  a linha  das  multiplicidades.  Ele  tem  o delírio  como matriz  da  experiência  de  dissolução  do  sentido. Não  há  sentido  prévio, mas  apenas  o elemento  da repetição, a multiplicidade, o real  em si  mesmo .É  o  mundo  virtual que   possui  uma realidade própria.     Sua  tendência  é  atualizar-se  em ações  concretas que  resultam na  construção  de uma  clínica  do encontro e não  de  uma  clínica  do exame. É que  a  clínica  do  exame  já  vem pronta  nos  manuais  de propedêutica  médica. Por  outro lado,  é  preciso  dizer  que  a linha do  coletivo  recolhe   das  matérias  não  formadas    o  combustível  necessário à  inserção numa  dada realidade, o socius. O desejo  é  o  combustível   e  ao  mesmo  tempo  a   máquina  que  utiliza  esse  combustível. O socius,  de  cujas  regras   e  códigos    emanam   os   princípios   para  o exame  do  paciente  (a  formação   do  médico, a  deontologia  ,  etc...),  se  materializa no corpo  das  instituições,  formando   linhas que  se  cruzam. São  relações entre  forças      naquilo  que M. Foucault  chama   “poder”. Assim, falar  em   socius  é  falar  numa  política   sem  sujeito,   não   explícita,   nem  por  isso  menos  atuante e  concreta.  O Encontro  é uma política. Ele não  se   dirige  ao paciente  como  ser  individual   e  empírico,  mas  como  processo  subjetivo inserido  na  trama das instituições. Essa  trama   é a mesma da  qual  faz parte   o técnico   que  vai ao   paciente. Não se  trata  de   refletir  sobre  o  papel  político  do  profissional, mas  de tornar as relações de forças a  própria consistência  dessa “etapa”  do  encontro. Outrossim,   não se trata  de  fazer  política   fora  do contexto  da  política  (e  qual seria esse  contexto?  o  dos  partidos?  o  do estado? o  dos  sindicatos?) mas  de  fazer da  política algo  intrínseco  ao viver  humano. Por  fim, não    chamar    de  “política”  o que  já  não  é  político  mas  agir   politicamente  em estratégias  embutidas. Fazer    escolhas  do  tipo:  a quem serve  esse  encontro? Para  que  serve?  A  quem interessa? O  socius,   “grávido”  da política dos corpos,   nos  remeterá   à  ética. O roteiro  se   tece  em linhas de potência  (ou  de   não  potência)  de  existir,   fazer,  criar,  produzir  o  novo.  A psiquiatria  tem  respostas  epistemologicamente  frágeis  quando se trata de buscar   a origem  das  doenças.  Contudo, suas  práticas    são cada  vez    mais      técnicas  finas   de  imobilização    do  "movimento",  se   chamarmos assim  o    paciente, ainda  que o organize  em formas  de  adequação  social. Não importa. Estamos  desdobrando      uma linha (a  do Encontro) que  sai  dos   códigos   estabelecidos  e cria  seus  próprios   códigos  e  territórios   existenciais. A ética se  faz presente na medida  em  que as  situações  se  multiplicam  em nuances  novas. A clínica  do  Mesmo  atende às necessidades  de  manutenção da  ética  do  capital e  do  status  da  medicina.  Ela  valoriza o consumo  das subjetividades em  fila  disponíveis  para o  mercado.  São   mercadorias  avariadas, muitas  vezes  para  sempre  (o  doente  crônico).  Para  recuperá-las o mecanicismo  se  faz presente.  Nada  mais longe  de  um   bom encontro. Por extensão,  a  dimensão  ética  costuma  ficar  encoberta por  um    funcionamento institucional    naturalizado.  A  concepção  de transtorno mental, psicose, etc, é o que se  apresenta como  demanda produzida ao lado  da  ética  egressa  de   um    humanismo esgotado. Isso  é    o “normal”   que sustenta as  práticas clínicas  da  psiquiatria e  das  demais, suas  congêneres. Por  fim, onde  andará, após  tantas  vicissitudes, a  estética, ou  mais  precisamente, a  arte?  (...)


A. M.


do livro "Trair a psiquiatria", 2012

sábado, 23 de agosto de 2025

HENRIK SIEMIRADZKI


 

Esqueça segurança.

Viva onde você tem medo de viver.

Destrua sua reputação.

Seja notório.


.Rumi

POR QUE "NECRO PSQUIATRIA" ?

Refere-se a uma psiquiatria que produz a morte. Para demostrar isso usamos "alma" no sentido do que não é visível, mensurável, palpável e ao mesmo tempo expressa a vida em multiplicidades. Ora, avaliando um paciente, a psiquiatria não dispõe de exames complementares. Usa exames de outras especialidades ( exemplo da neurologia) que, não obstante, são úteis em momentos específicos. Mas a captação da realidade subjetiva (alma) do paciente só acontece pela conversa e pela escuta. Na Necro isso não acontece. Assim, o prefixo "necro" anexado ao nome "psiquiatria" visa realçar um empreendimento sócio-institucional de extermínio da alma. Se ele é movido em escala planetária, é claro que a psiquiatria não está só. Há muitos aliados.

A.M.

A QUEDA DO CÉU (2024) | TEASER - dirigido por Eryk Rocha e Gabriela Carn...

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

D de Desejo

CP: D de Desejo. Tudo o que sempre quiseram saber sobre o desejo. Primeira lição: Só se pode desejar em um conjunto. Então, sempre se deseja um todo. Vamos passar a D. Para D, preciso de meus papéis, pois vou ler o que há no Petit Larousse Illustré, em “Deleuze”, que também se escreve com D. Lê-se: “Deleuze, Gilles, filósofo francês, nascido em Paris, em 1925”.


GD: Talvez hoje esteja no Larousse.


CP: Hoje, estamos em 1988.


GD: Eles mudam todo ano.


CP: “Com Félix Guattari, ele mostra a importância do desejo e seu aspecto revolucionário frente a toda instituição, até mesmo psicanalítica”. E indicam a obra que demonstra tudo isso: O anti-Édipo, em 1972. Como você é, aos olhos de todos, o filósofo do desejo, eu gostaria que falássemos do desejo. O que era o desejo? Vamos colocar a questão do modo mais simples: quando O anti-Édipo…


GD: Não era o que se pensou, em todo caso. Estou certo disso, mesmo naquele momento, ou seja, as pessoas mais encantadoras que eram… foi uma grande ambigüidade, um grande mal-entendido, um pequeno mal-entendido. Queríamos dizer uma coisa bem simples. Tínhamos uma grande ambição, a saber, que até esse livro, quando se faz um livro é porque se pretende dizer algo novo. Achávamos que as pessoas antes de nós não tinham entendido bem o que era o desejo, ou seja, fazíamos nossa tarefa de filósofo, pretendíamos propor um novo conceito de desejo. As pessoas, quando não fazem filosofia, não devem crer que é um conceito muito abstrato, ao contrário, ele remete a coisas bem simples, concretas. Veremos isso. Não há conceito filosófico que não remeta a determinações não filosóficas, é simples, é bem concreto. Queríamos dizer a coisa mais simples do mundo: que até agora vocês falaram abstratamente do desejo, pois extraem um objeto que é, supostamente, objeto de seu desejo. Então podem dizer: desejo uma mulher, desejo partir, viajar, desejo isso e aquilo. E nós dizíamos algo realmente simples: vocês nunca desejam alguém ou algo, desejam sempre um conjunto. Não é complicado. Nossa questão era: qual é a natureza das relações entre elementos para que haja desejo, para que eles se tornem desejáveis? Quero dizer, não desejo uma mulher, tenho vergonha de dizer uma coisa dessas. Proust disse, e é bonito em Proust: não desejo uma mulher, desejo também uma paisagem envolta nessa mulher, paisagem que posso não conhecer, que pressinto e enquanto não tiver desenrolado a paisagem que a envolve, não ficarei contente, ou seja, meu desejo não terminará, ficará insatisfeito. Aqui considero um conjunto com dois termos, mulher, paisagem, mas é algo bem diferente. Quando uma mulher diz: desejo um vestido, desejo tal vestido, tal chemisier, é evidente que não deseja tal vestido em abstrato. Ela o deseja em um contexto de vida dela, que ela vai organizar o desejo em relação não apenas com uma paisagem, mas com pessoas que são suas amigas, ou que não são suas amigas, com sua profissão, etc. Nunca desejo algo sozinho, desejo bem mais, também não desejo um conjunto, desejo em um conjunto. Podemos voltar, são fatos, ao que dizíamos há pouco sobre o álcool, beber. Beber nunca quis dizer: desejo beber e pronto. Quer dizer: ou desejo beber sozinho, trabalhando, ou beber sozinho, repousando, ou ir encontrar os amigos para beber, ir a um certo bar. Não há desejo que não corra para um agenciamento. O desejo sempre foi, para mim, se procuro o termo abstrato que corresponde a desejo, diria: é construtivismo. Desejar é construir um agenciamento, construir um conjunto, conjunto de uma saia, de um raio de sol…


CP: De uma mulher.


(...)

O Abecedário, Gilles Deleuze e  Claire Parnet, 1988, transcrição in Machine Deleuze, site acessado em 22/08/2025

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

A ALMA QUÍMICA


 

Rápido e Rasteiro


Vai ter uma festa

que eu vou dançar

até o sapato pedir pra parar.

aí eu paro

tiro o sapato

e danço o resto da vida.


Chacal

Philip Glass - Glassworks - 08. In The Upper Room: Dance II

DEVIR-CONSCIÊNCIA

A consciência, mesmo que pareça  ser  uma  luz vinda de dentro do cérebro, ou da mente, é uma tela. É possível dizer a partir  de um Bergson   deleuziano que a consciência  é  o  contrário da luz. Ela  é uma espécie  de anteparo para  a luz, esta sim, vindo  de fora, do  cosmo. Para pensar desse modo, há a experiência não usual, não  cotidiana, “anormal” do “ser-consciente”. Uma psicopatologia em ato.  No encontro com o paciente  interessa operar clinicamente uma  “outra” consciência. Os  casos mais  ou menos evidentes de alteração  do nível da  consciência ( quadros orgânicos)  são percebidos como tais à medida em que a anamnese é feita com detalhes.  Há uma infinidade deles  ligados à  condições cerebrais específicas. No entanto,  pela via   do Encontro não existe a consciência e sim subjetivações  ou modos de subjetivação. Um modo  de subjetivação é uma composição de afetos. Um traumatismo de crânio, por  exemplo,  pode gerar uma  confusão mental.  Mesmo aí, o nível da consciência compõe  um modo de  subjetivação, e não o contrário. A consciência  chega  depois. Ela é  um efeito proveniente  de  estímulos que  vêm de fora  e com o cérebro estabelecem  relações de uso. Caso o tecido cerebral  esteja  danificado (lesionado) os efeitos mudam. O cérebro é matéria, claro, mas o que  chega  de fora também é matéria. São imagens  formando  a  subjetividade. Assim,  o chamado “mundo interior” não existe senão  como expressão corporal das imagens. Se estas são matéria, são afetos.O que muda então  na avaliação (exame) do paciente  portador de transtorno mental? 1-o comportamento observável é   sobretudo o afetivo-relacional: como o paciente sente  e  reage ao mundo? 2-as funções psíquicas não remetem a  um centro  organizador (a consciência, o eu)  como  modelo de conduta adequada; 3- a capacidade de autonomia social  passa a estar ligada  aos  devires ou processos  desejantes; 4- uma pesquisa  destes  devires ou: que linhas existenciais o paciente constrói? isso é essencial, mais até  do que obter  um diagnóstico nosológico; 5- traçar um plano de vida  que  comporte os devires como movimentos  singulares: o paciente não é o diagnóstico, sequer a doença (caso exista); ele é uma mistura de elementos  do real e  do não-real; resta usá-la como ato  terapêutico.  


 A.M.


 “ A consciência  é  o contrário  da luz; todos os  filósofos tem vivido  com a idéia de que  a consciência era uma  luz. Pois não  é. O que  é  luz é  a matéria e  daí  a consciência é  o que  revela  a luz. Por  que? Porque a  consciência é a tela negra. A consciência é  a opacidade, que  como tal vai levar a luz a revelar-se, isto é,a refletir-se”, Deleuze, G., Curso de los martes; La  imagem movimento, 1982, tradução  ao espanhol: Ernesto Hernandez, via  Internet,  web  Deleuze, acessado em 09/12/2003, tradução espanhol-português nossa.

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

os três 

poderes

são

um só:


o deles



Nicolas Behr

A anti-escuta  -  3


Na sociedade moderna a Escuta vira anti-escuta. Ou pelo menos são cultivadas as condições sócio-políticas para isso.

Está no ar a velocidade dos fluxos de comunicação e informação.  Como se o vento anunciasse tempestades. Ou se ele fosse a própria tempestade.

A linguagem do sistema do capital é composta de fluxos e não de significações prévias. Tudo se ajeita. Não importa que talvez você seja um analfabeto. As mensagens são feitas para isso, contam com isso.

Analfabetos, diz-se, no sentido da produção de uma realidade imagética que permeia os afetos e substitui a Terra finita por um infinito de lucro. Ó Marx!

A forma-pessoa é substituída pela forma-consumidor, mesmo e principalmente o que se consuma no próprio extermínio da alma.

Aldous Huxley disse tudo no " Admirável mundo novo" (1932). De lá para cá o aprofundamento do controle das massas e seu suicídio induzido.

Não há retorno do fascismo, do nazismo, da ultra-direita e de todas as expressões da pulsão de morte. Elas já estavam aí.

A anti-escuta avança como Tecnologia Científica com sua verdade religiosa. Hiroshima ainda não foi o pior.


A.M.

ALUMBRAMENTO


 

Gilles Deleuze e Félix Guattari leitores de Marx: a inspiração marxista do conceito de desejo desenvolvido no Anti-Édipo


No primeiro capítulo de sua obra intitulada O Anti-Édipo, Gilles Deleuze e Félix Guattari sentam as bases de uma nova concepção de desejo que se opõe, segundo eles, a uma concepção clássica, que é qualificada como idealista e que havia dominado a história da filosofia até então. Eles censuram a tradição idealista por pensar o desejo negativamente, fazendo-o derivar de uma suposta falta (manque). Os dois autores procuram, em oposição a esta tradição, devolver ao desejo sua dimensão positiva. Empreender tal tarefa exige defender a tese segundo a qual o desejo é um processo de produção. Para defender essa tese eles retomam os conceitos e os desenvolvimentos presentes na obra de Marx, que é evocada sucessivas vezes, de forma explícita ou implícita, ao longo do primeiro capítulo do Anti-Édipo.

Consideramos que seria interessante estudar a maneira como Gilles Deleuze e Félix Guattari fazem uso, no primeiro capítulo do Anti-Édipo, do pensamento de Marx. Não nos deteremos sobre todas as referências feitas à obra de Marx em dito capítulo para poder concentrar nossa atenção principalmente sobre a definição de desejo como processo de produção. Tal definição constitui um ponto central na luta de Deleuze e Guattari contra o idealismo. Em seguida, procuraremos entender uma referência a Marx que parece, a primeira vista, estranha, posto que alude a uma noção que não faz parte daquelas que estamos acostumados a atribuir ao pensador alemão: “Como diz Marx, não existe falta, existe paixão como “ser objeto natural e sensível”” 1. Para concluir, tentaremos identificar, levando em conta toda a reflexão desenvolvida ao longo do texto, até que ponto Deleuze a Guattari seguem Marx.

O desejo como processo de produção.

No Anti-Édipo, o ponto de partida de Gilles Deleuze e Félix Guattari é a definição de desejo como um processo de produção, processo que deve ser entendido em dois sentidos.

Num primeiro sentido, processo quer dizer, segundo eles, “colocar o registro e o consumo na própria produção, fazer deles produções de um mesmo processo” 2 . Aqui reencontramos Marx e sua crítica da economia política, que vê a produção, o consumo, o intercâmbio e a distribuição como categorias independentes que às vezes se articulam, mas que num primeiro momento estão separadas. Esta crítica é claramente formulada por Marx na Introdução a Crítica de Economia Política de 1857. Neste texto ele propõe, como alternativa ao esquema idealista da economia política, um conceito de processo de produção que integra outros elementos (consumo, distribuição e intercâmbio) no seio da categoria de produção. Para ele, assim como para Deleuze e Guattari, qualquer parte da produção é produção.

A enunciação do segundo sentido de processo acompanha, ainda, os passos de Marx e é indissociável da primeira definição.

Com efeito, para Deleuze e Guattari a adequada compreensão do segundo sentido de processo evita que caiamos no esquema idealista que mencionamos mais acima. Este segundo sentido é formulado pelos autores da seguinte maneira: “homem e natureza não são como dois termos confrontados, mesmo que entre eles procuremos estabelecer relações de causação, de compreensão ou de expressão (causa-efeito, sujeito-objeto, etc.); pelo contrário trata-se de uma única e mesma realidade essencial do produtor e do produto. A produção como processo transborda todas as categorias ideais e forma um ciclo que se relaciona com o desejo enquanto princípio imanente” 3. Aqui encontramos o Marx dos Manuscritos de 1844 e sua posição “naturalista”. Uma passagem situada no final do primeiro manuscrito enuncia a questão: “A natureza, ou seja, a natureza que não é ela própria o corpo humano, é o corpo não orgânico do homem. Dizer que o homem provém da natureza significa afirmar que a natureza é o seu corpo; um corpo com o qual o homem deve permanecer constantemente em contato para não morrer. Dizer que a vida psíquica e intelectual do homem está indissoluvelmente ligada à natureza é o mesmo que dizer que a natureza está ligada a ela mesma, porque o homem é uma parte da natureza” 4. Este naturalismo não é fácil de entender. Em que sentido esta concepção da união essencial do homem com a natureza nos ajuda a sair do idealismo? Para compreender este ponto, podemos seguir o comentário de Gérard Granel, citado por Deleuze e Guattari em suas notas. Este comentário dos Manuscritos de 1844 se encontra em um artigo intitulado A ontologia marxista de 1844 e a questão da separação (L’ontologie marxiste de 1844 et la question de la coupure). Neste artigo, Granel mostra que Marx, em 1844, se apoia, antes de qualquer coisa, sobre a filosofia de Feuerbach para sair do esquema idealista que distingue sujeito de objeto. Este esquema idealista teve em Hegel seu último grande representante. Mas qual seria o pensamento feuerbachiano sobre o qual se apoiaria Marx segundo a perspectiva de Granel? A este respeito, Granel escreve o seguinte: “quando Feuerbach afirma “eu preciso de ar para respirar”, ele não pretende fazer a constatação trivial da dependência de uma função fisiológica no que diz respeito ao ambiente físico. A questão, na verdade, é estabelecer uma unidade essencial: “Um ser que respira é impensável sem o ar, um ser que vê é impensável sem a luz…”. Isto significa que a luz, na abertura na qual qualquer coisa é dada a ver, não é uma abertura que poderia se produzir como um movimento das coisas, um evento no real, mas uma abertura sobre o modo do sempre-já 5. Neste texto, Granel nos mostra como Feuerbach sai da concepção da “relação entre o homem e a natureza”. Quando falamos de “relação” se subentende que existem dois termos (o homem e a natureza) e mesmo se esta relação é enunciada como necessária (aqui esta relação necessária seria aquela do homem com o ar), ela acaba nos fazendo perder o que Granel chama de “unidade original do ser e do homem”, ou seja, a unidade original da natureza e do homem. Esta crítica feuerbachiana é uma crítica da metafísica moderna e de sua concepção do homem. Segundo Granel, esta concepção metafisica do homem foi fixada por Descartes em sua definição da essência do homem como coisa que pensa. Coube a Hegel realizar filosoficamente dita perspectiva. Esta metafísica da subjetividade e do ser pensante define a linguagem da razão moderna que nos conduz ao equívoco ao fazer-nos crer em uma distinção sujeito-objeto, na existência de uma interioridade que preexiste à sua inscrição no mundo, na exterioridade. Isto nos faz perder o terreno primeiro da experiência humana, o “sensível” ou ainda a “passividade” ou a “necessidade” que “testemunha que o homem não está em uma “relação” 6 nem consigo mesmo nem como as coisas”. Mas como podemos representar esta concepção anti-metafísica tão contrária à estrutura da linguagem? Como pensar o ser-no-mundo do homem sem a categoria “relação”? Granel nos esclarece este ponto ao desenvolver um exemplo feuerbachiano sobre a respiração: “Se eu respiro, eu recebo do ar não somente o que eu respiro, mas também a minha própria respiração”. Então isto não é nunca uma simples troca de oxigênio e CO2. O homem só respira, ou seja, aspira, retém profundamente e relaxa lentamente o abdome como uma resposta ao sopro do ar: esta forma-de-mundo que eu denomino “ar” não é uma mistura de gases, mas uma modalidade do ser-sobre-a-terra, da mesma natureza e da mesma extensão que as cores das madeiras, elas também respiradas, e que a luz que enche os pulmões dos olhos7. A respiração não é, então, uma relação de troca entre o interior (os pulmões) e o exterior (o ar). O ar é uma “modalidade do ser-sobre-a-terra” que existe numa unidade essencial do homem e da natureza. Granel entende tudo isso como o conjunto da vida e é esta perspectiva que lhe permite afirmar que “o mundo detém minha alma desmembrada em seu âmago; assim eu recebo um eu-mesmo que não posso pensar como separado de nada”. Permanecemos nas coisas antes de qualquer relação 8. Granel sugere que Marx assimila a revolução teórica feuerbachiana. Contudo, em Marx o reconhecimento da importância teórica da obra de Feuerbach vai de mãos dadas com uma crítica e com uma vontade de transcendê-la. A este respeito nós ainda podemos seguir o artigo de Granel, que aborda a questão num tópico intitulado Do “sensível” à “indústria”: o ser como produção. O conteúdo do tópico fica explícito no próprio título: trata-se de mostrar que a crítica de Marx a Feuerbach consiste em atacar o conceito feuerbachiano de “sensível” – muito teórico e ainda tributário da metafísica moderna – para lhe conferir um sentido mais prático graças à categoria de produção. Marx formula esta vontade teórica na quinta tese sobre Feuerbach: “Feuerbach, não satisfeito com o pensamento abstrato, faz um apelo à intuição sensível; mas ele não considera o mundo sensível enquanto atividade prática concreta do homem9”. A revisão do artigo de Granel deve nos permitir compreender um pouco melhor a leitura deleuzo-guattariana dos Manuscritos de 1844. Granel nos diz que a questão que deve nos ocupar é, fundamentalmente, a seguinte: “como e em que sentido o ser pode aparecer para Marx como produção? 10” Segundo ele, a resposta a esta questão se encontra na interpretação da equação formulada por Marx no primeiro manuscrito: “mas a vida produtiva é a vida genérica11”. Marx desenvolve esta ideia ao definir o vivente através da atividade (como Aristóteles, um dos seus mestres) e ao definir o modo de atividade de uma espécie viva como aquilo que nos permite defini-la. O modo de atividade vital de uma espécie define seu caráter genérico e Marx nos diz que “a atividade livre, consciente, é o caráter genérico do homem12”. Enquanto o animal se confunde com sua atividade vital, o homem faz dela o objeto de sua consciência e confronta de forma consciente e livre os produtos do seu trabalho. Ainda que o homem seja, junto com os animais, uma parte da natureza, um ser natural, ele dispõe de uma consciência que é fruto, por sua vez, de uma atividade natural. Esta especificidade do ser humano lhe permite criar para si um mundo que lhe é próprio. Marx nos mostra, assim, que existe uma vida especificamente humana. Enquanto ser genérico, ou seja, enquanto ser vivo consciente, o homem pode agir voluntariamente para os outros homens e pode produzir o mundo de determinada maneira. Em outras palavras, o homem pode recriar, transformar o mundo para ele e para os outros membros da sua espécie e inclusive para outras espécies porque, como diz Marx, ele (o homem) “sabe produzir à medida de todas as espécies e sabe aplicar ao objeto, em qualquer lugar, sua natureza inerente13 ”. Assim o homem se transforma a si mesmo e ao seu próprio gênero. Podemos, a partir de agora, regressar sobre o texto de Deleuze e Guattari que diz: “a indústria não está mais presa numa relação extrínseca de utilidade, mas sim em sua identidade fundamental com a natureza como produção do homem e pelo homem. Não mais o homem como rei da criação, mais sim o homem como aquele que é tocado pela vida profunda de todas as formas e de todos os gêneros (…) eterno auxiliar das máquinas do universo 14”. A partir daí podemos compreender como Deleuze e Guattari conseguem se apoiar na leitura dos Manuscritos de 1844 para construir seu conceito de desejo como processo de produção. Isto é o que lhes permite definir o “esquizo”, modelo conceitual do ser desejante, como “Homo natura”. É necessário acrescentar que esse “esquizo” será também qualificado como “Homo historia”, visto que Deleuze e Guattari não seguem Feuerbarch, mas sim Marx, que transcende Feuerbach ao fazer do “sensível” a produção – ou a indústria –, originando, assim, a equação “Natureza=Indústria, Natureza=História”. Também é interessante notar que Deleuze e Guattari se apresentam como os “Marx da psiquiatria”, superando o “Feuerbach da psiquiatria”, o doutor Clérambault: “Clérambault é o Feuerbach da psiquiatria no sentido em que Marx diz “na medida em que Feuerbach é materialista, nele já não podemos encontrar a história e na medida em que ele leva a história em consideração ele não é materialista. Uma psiquiatria verdadeiramente materialista se define por uma dupla operação: introduzir o desejo no mecanismo, introduzir a produção no desejo15”

(...)

Guilhaume Mejar

Por GEAC - Antropologia crítica, dezembro/2021

terça-feira, 12 de agosto de 2025

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

TERAPIA, O NOVO

A clínica da diferença em psicoterapia constitui-se como uma superfície invisível onde se registram formas sociais. Não é, pois, um encontro interpessoal. É que as duas pessoas em jogo (terapeuta e paciente) são também formas sociais. Elas se misturam a mil outras formas que transversalizam o Encontro como um território-nexo entre multiplicidades. Este dado empírico condiciona a que afetos de alegria estabeleçam linhas de base que impulsionam o processo da metamorfose subjetiva. É o motor, a máquina, a energia (não metáforas) que consistem na materialidade do trabalho afetivo. Ainda que a terapia possa não avançar, não dê certo, não funcione, não atinja seus objetivos, enfim, fracasse, linhas intensivas de base e o conteúdo dos afetos fazem do agenciamento de forças uma aventura do novo, uma potência. Como diz Deleuze, não há potência má. Isso implica em se encarar o abismo do sem-eu e do caos como resposta ao desafio de produzir sentido à existência. Uns conseguem, outros não. De todo modo, uma clínica da diferença, ao contrário de psicoterapias  auto-intituladas de científicas, não coloca panos quentes em sintomas próprios do mundo civilizadamente violento em que vivemos, nem usa técnicas de adaptação passiva e resignada a esse mesmo mundo. 


A.M.

sábado, 9 de agosto de 2025

ÉTICAS

Gilles Deleuze é um pensador da ética. Mas ele não se refere à ética como reflexão (consciente) sobre a moral. Ao contrário, propõe a construção de outra ética, novas éticas em " si mesmas", éticas da diferença a partir do conceito de vida. Vida no plural, multiplicidade de mundos. Uns inacessíveis, outros não comunicantes entre si. A ética se expressa então como "uma" ética, linguagem não só significante (=remeteria a um significado) mas no coletivo (mesmo num indivíduo) como semióticas livres, intensas. Tal abstração conceitual se faz em práticas concretas. Assim é na clínica, na ciência, na educação, na política, no amor, etc...

A.M.

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

João Gilberto - Brasil Pandeiro (1982)

A potência do verdadeiro

A crise é estética – temos dito por aí. É uma pequena frase, que correlaciona arte e política em tempos de ascensão da nova direita. Às vezes é apenas um deboche, pelo qual zombamos do mau gosto dos caretas. Essa síntese elegante, porém, é mais do que isso, é a admissão de que a má arte é uma espécie de sintoma da decadência política, como um sinal da podridão na alma dos ricos e poderosos. Quem lembrar dos medonhos retratos presenteados durante o mandato do ex-presidente golpista não terá dificuldade em admitir essa correlação. Será apenas uma questão de gosto? Não parece o caso. Entre ética e estética existem mais correspondências do que parece. E não é difícil percebê-las, porque, no final das contas, o que cruza os dois campos é o desejo. Basta ser razoável para perceber a falta de ética da nova direita, assim como basta ter olhos e ouvidos para constatar o seu mau gosto para a arte. No entanto, essa simetria não se mantém quando chegamos à práxis: adoraríamos ver Bolsonaro preso, mas não falamos tanto em queimar os quadros de Romero Britto – por quê?     

Vamos voltar alguns milênios para buscar um motivo. Na República de Platão,  filósofo do século IV a.C., encontramos um diálogo em que Sócrates, o protagonista dos textos platônicos, transita entre a crítica da política e da poesia enquanto conversa com Glauco e outros amigos. Para compreender esse trânsito, precisamos começar com a proposta geral: se o desejo é o que movimenta as pessoas, ele é, portanto, um dos vetores principais da constituição da sociedade. Sendo assim, uma ideia de sociedade justa depende da formação de cidadãos que saibam moderar os seus desejos em função do melhor para a cidade. Nesta perspectiva política, Sócrates propõe uma hierarquia para os desejos que segue a divisão da alma em três partes: primeiro, os quereres que nos tomam pelo baixo ventre, comer, beber e transar; segundo, as forças que fazem arder o peito, a conquista, a honra e o poder; e por último, mas não menos importante, as ideias que excitam a razão, o bom, o belo e o justo.

Se seguirmos a divisão tripartite da alma para pensar três grupos distintos de sujeitos políticos, teremos em primeiro lugar os comerciantes, interessados na satisfação dos primeiros impulsos de prazer; em segundo lugar, os guerreiros, tomados pelo ímpeto da conquista, levados à guerra pela sede de poder; em terceiro, os filósofos, amantes de um saber que nunca possuem por completo, mas que os coloca em uma busca contínua por ideias boas, belas e justas. Entre estes três sujeitos, Platão insiste que cabe aos últimos a condução da república, porque o desejo de saber é o mais adequado à organização da sociedade. Em outras palavras, a política deveria ser protagonizada por pessoas dispostas a pensar sobre a justiça de uma perspectiva tão ampla quanto possível. O que a realidade mostra, entretanto, é que a sociedade é majoritariamente conduzida por pessoas interessadas no comércio e na guerra. Eis o diagnóstico platônico para a decadência de Atenas.

Neste contexto é que surge a famosa proposta do filósofo-rei. Tão conhecida, mas tão mal compreendida. Ela aparece como resposta ao problema do desejo na organização social e política. Ao longo do tempo, o filósofo-rei acabou se tornando um deboche na boca dos adversários da filosofia platônica. Para evitar esse engano, é importante retomar a proposta de Platão da maneira mais simples possível: a política deve ser feita por pessoas que buscam compreender o que é a justiça à luz da razão, e não em função do lucro e da conquista. Difícil discordar desta ideia, não é? Pois bem, passados milênios, lidamos ainda com problemas similares. Qualquer análise rasteira dos interesses dos parlamentares de nossa não tão nova república mostra isso. O boi, a bala e a bíblia são as forças que conduzem os desejos na política, e isso certamente não tem feito de nossa sociedade algo mais justo. 

Em outro momento da República, Platão coloca em diálogo uma controvérsia que até hoje leva alguns leitores a queimar de ódio: a moderação da arte, tema que ficou mais conhecido como a expulsão dos poetas. A base do argumento de Sócrates é que, dos diversos fazeres humanos, a arte é a prática que está mais distante das ideias: um filósofo pensa o que é uma mesa, um marceneiro sabe fazer uma mesa, agora um pintor sabe apenas retratá-la. Isso não significa que a arte é, por definição, algo ruim, mas perigosa, pelo fato de que ela movimenta as paixões a despeito da relação com a verdade. Aquilo que a tradição nietzscheana elogia como potência do falso é justamente o que está sendo criticado aqui. A diferença entre eles, é que a filosofia de Platão está intimamente ligada à política e, portanto, se preocupa com a falsidade enquanto força que movimenta os desejos e forma os cidadãos.  

Segundo o pensamento platônico, a arte depende de uma moderação, ela precisa de valores que não decorrem dela mesma, mas que são encontrados no processo de implicação com um pensamento mais amplo, que advém da filosofia e, consequentemente, está relacionado com a pólis. No entanto, o que é interessante no diálogo é que Sócrates é intimado a dar sua opinião sobre Homero – o mais nobre poeta da tradição grega – e fica preso em uma contradição: ele admite a grandeza de sua poesia, mas acaba obrigado, pelos argumentos que ele mesmo usou, a criticá-la. É um texto muito inteligente, porque dramatiza um problema nada fácil de resolver: como diferenciar a moderação da censura, a reflexão da expulsão?

Como em várias das outras aporias de Platão, não há resposta pronta para este problema, então ficamos com ele: Sócrates passa o bastão, para que pensemos por nós mesmos. Há inúmeros elogios a fazer à arte, o que não significa que ela deva ser imune ao pensamento crítico. O problema é que costumamos chamar de arte apenas aquilo que consideramos bom, ou aquilo que não tem função, que não precisa dar explicações a ninguém. No entanto, para compreender bem a crítica platônica, precisamos considerar como arte toda a técnica artística. Desta perspectiva ampla, a publicidade não deixa de ser também produtora de obras que movem as paixões, e aqui o perigo é evidente: quando a potência do falso se une ao capital, os cidadãos são seduzidos pelos comerciantes e guerreiros a continuar comprando e competindo. Assim, questionar a associação entre arte e capitalismo está longe de ser censura, é uma questão de justiça, e deve ser feita coletivamente.

Se expulsar um poeta fazedor de slogans de refrigerante soa exagerado aos ouvidos dos progressistas da esquerda institucional, podemos começar por uma discussão ampla sobre a regulação da publicidade. Isso evoca um outro problema: quem tem autoridade para fazer isso quando os poderes reguladores obedecem justamente aos donos do capital? Uma pergunta difícil de responder. De toda maneira, sabemos que a solução não passa por nenhuma casta elitizada, mas pela força da comunidade e seu pensamento radical, capaz de fazer da arte uma atividade política. Talvez ainda não estejamos preparados para queimar os quadros de Romero Britto como estamos prontos para incendiar as estátuas de Borba Gato, mas precisamos admitir que ambos representam valores que não convém à comunidade.


Do site "Razão inadequada", acessado em 07/08/2025

terça-feira, 5 de agosto de 2025

UMA ROSA É UMA ROSA É UMA ROSA É UMA ROSA


Uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa

Encanto extremo.

Botina extra.

Encanto extremo.

O mais doce sorvete.

Páginas épocas página épocas página épocas


Gertrude Stein

(tradução de Dalcin Lima)



ROSE IS A ROSE IS A ROSE IS A ROSE.


Rose is a rose is a rose is a rose

Loveliness extreme.

Extra gaiters,

Loveliness extreme.

Sweetest ice-cream.

Pages ages page ages page ages. 




Take Root - Imre van Opstal & Marne van Opstal (NDT 1 | Second Nature)

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

CONCEITO DE NECRO -  PSIQUIATRIA


A psiquiatria atual ocupa a hegemonia nas relações institucionais (mais que a psicologia ou a psicanálise) em saúde mental. Apesar da fragilidade científica de suas teorias e práticas,  exerce um poder de mando e comando explícito e implícito. Explícito quando está diante de um paciente (a clínica), diagnostica em 3 minutos e prescreve psicofármacos inadequados e em doses cavalares. Implícito quando faz as suas conexões institucionais com indústrias farmacêuticas e farmácias comerciais. Isto quer dizer que 1- Concebe os transtornos mentais como originados no cérebro. Tudo é orgânico :  império das sinapses, travamento dos neurônios e indisponibilidade dos neurotransmissores. 2- A psicopatologia clínica (teoria e técnica) é desprezada ou simplesmente ignorada. Busca o controle dos corpos e para isso trata os pacientes só com remédios químicos, ou, quando não há "melhora",  usa ainda assim técnicas que atuam sobre o organismo físico-químico: os chamados tratamentos "somáticos" que substituem os anteriores, também somáticos. 3-Prioriza a internação em hospitais psiquiátricos (mesmo adocicados por atividades lúdico-recreativas), desconsiderando o valor dos Caps, ambulatórios e outras formas de tratamento em liberdade. 4-Estabelece fortes alianças institucionais com a indústria farmacêutica internacional ( e nacional), além das farmácias comerciais, na volúpia pela obtenção de lucros às custas do sofrimento mental e da medicalização da sociedade. 5-Dissemina-se na midia e na mente das populações como modo de ocultar problemas sociais, já que enxerga o mundo tão só sob a ótica psiquiátrica. Tudo é psiquiatrizável! 6- Reduz o conceito de saúde mental ao âmbito estreito da psiquiatria "neurológica", donde a equação saúde mental=saúde torna-se equivalente à saúde cerebral=saúde psiquiátrica. 7-Adota de forma subliminar (maquiada) o axioma positivista (romântico) da ciência moderna de teor salvacionista para a humanidade. 8- Sob a proteção da ordem jurídica (só o psiquiatra está autorizado a dizer se você está ou é louco), organiza-se na sociedade civil em entidades, produzindo corporativismos que atendem aos interesses de lucro, prestígio e poder dos seus pares. 9- Na universidade, usa e abusa das pesquisas neurocientíficas como referência de verdade para a construção de uma clínica psiquiátrica cada vez mais "científica" e daí respeitada pelo establishment. 10-Na relação com os demais técnicos em saúde mental (exemplo das equipes dos Caps) funciona na verticalidade do poder que o psiquiatra outorga a si mesmo como médico da mente. 11 - Secreta sua verdade na avaliação de problemas da escola, diagnosticando e intoxicando crianças com psicofármacos e seus efeitos colaterais em cérebros jovens. Causas psicossociais e políticas são encobertas pela fala da autoridade médica. 12- Desse modo, efeitos clínicos, morais, políticos, éticos, educacionais e culturais são identificados  e linkados a uma necro concepção de mundo. 


A.M

Se... (1968) - Filme Completo - Legendado / If... 1968 Full Movie

domingo, 3 de agosto de 2025

Quadrilha


João amava Teresa que amava Raimundo

que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili

que não amava ninguém.

João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,

Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes

que não tinha entrado na história.



Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

não vai dar certo - @celsoviafora1 e @pedroviafora

ESTUDO CLÍNICO SOBRE OS DELÍRIOS - II


A avaliação semiológica em psicopatologia é condição essencial para o diagnóstico de um delírio. Antes de tudo, deve ser posta a questão: "É delírio?". Em caso afirmativo, tal sintoma remete a hipótese de uma síndrome, ou mais de uma. Como foi dito, há várias síndromes que se expressam como delírio ou como delírios. Elas podem vir juntas, se associarem. A análise da vivência-delírio e não apenas do sintoma-delírio extrai dados clínicos de como o paciente sente o delírio e como este se insere no seu sistema de crenças. Há, por exemplo, pacientes que guardam alguma distância crítica em relação ao delírio, enquanto outros estão como que tomados pelo sintoma. Nos casos graves, "eles são o próprio delírio". Os aportes teóricos que ligam o delírio à questão da verdade são um tema que excede os limites desse texto. No entanto, o objeto aqui é a clínica no que ela põe a questão a ser respondida: "o que fazer com o paciente?" Isto induz a uma ação prática (talvez imediata),  foco da técnica psiquiátrica. Entre as síndromes delirantes, a histeria dissociativa se destaca.  O motivo é que a histeria costuma desconcertar a visão biomédica, mesmo hoje, mais de 100 anos após Freud, e daí, o paciente ser reduzido a uma pecha de não-doente, fingidor, simulador e outros epítetos depreciativos.


A.M.