sábado, 13 de julho de 2013

POÉTICAS EM FLOR

(...) Todas as noites, mergulhando a envergadura das minhas asas na memória agonizante, evocava a lembrança de Falmer... todas as noites. Os seus cabelos loiros, o seu rosto oval, os seus traços majestosos estavam ainda gravados na minha imaginação... indestrutivelmente.., sobretudo os seus cabelos loiros. Afastai, afastai pois essa cabeça sem cabelo, polida como a carapaça da tartaruga. Ele tinha catorze anos e eu um ano mais. Essa voz lúgubre que se cale. Porque vem ela denunciar-me?
Mas sou eu mesmo que falo. Servindo-me da minha própria língua para exprimir o meu pensamento, sentindo que os meus lábios mexem e que sou eu mesmo que falo. E sou eu mesmo que, contando uma história da minha juventude e sentindo o remorso penetrar-me o coração... sou eu mesmo, a não ser que esteja enganado... sou eu mesmo que falo. Eu tinha só um ano mais. Quem é então aquele a quem me estou a referir? É um amigo que eu tinha em tempos passados, julgo eu. Sim, sim, já disse o nome dele... não quero soletrar outra vez essas seis letras, não, não. Também é inútil repetir que eu tinha um ano mais. Quem sabe? Repitamos, no entanto, mas com um penoso murmúrio: eu só tinha um ano mais. Mesmo então, a preeminência da minha força física era um motivo para sustentar, através do rude atalho da minha vida, aquele que se me tinha dado, mais do que para maltratar um ser visivelmente mais fraco. Ora, eu julgo que na verdade ele era mais fraco... Mesmo então. É um amigo que eu tinha em tempos passados, julgo eu. A preeminência da minha força física... todas as noites... Sobretudo os seus cabelos loiros. Muitos seres humanos viram cabeças calvas: a velhice, a doença, a dor (as três juntas ou em separado) explicam este fenómeno negativo de modo satisfatório. Tal é, pelo menos, a resposta que um sábio me daria, se eu o interrogasse a este respeito. A velhice, a doença, a dor. Mas eu não ignoro (sim, também eu sou sábio) que um dia, só porque ele me deteve a mão no momento em que eu erguia o punhal para trespassar o seio de uma mulher, o agarrei pelos cabelos com braço de ferro e o fiz girar no ar, a tal velocidade que a cabeleira me ficou na mão, e o seu corpo, lançado pela força centrífuga, foi embater no tronco de um carvalho... Não ignoro que um dia a sua cabeleira me ficou na mão. Também eu sou sábio.
(...)
Lautréamont in Cantos de Maldoror

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