terça-feira, 31 de dezembro de 2013

SEM IDENTIDADE

É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.

Clarice Lispector

ALLEN GINSBERG


da chamada geração beat

QUESTÃO DE MÉTODO

Para uma clínica da diferença, o diagnóstico (preciso) de depressão é muito  importante. Até  (no mínimo)  para se poder responder a pergunta: é depressão? Ora, como a psiquiatrização da sociedade e da condição humana são uma realidade concreta dos tempos contemporâneos, vale discernir o que é e o que não é depressão. Por isso, talvez seja preciso dizer coisas simples: tristeza não é depressão. Depressão é em "essência",  o  esvaziamento energético do corpo sem órgãos em prol da hegemonia do corpo-organismo ( de onde a medicina extrai sua mais-valia de prestígio). Este organismo passa a ditar as regras  do existir. Elas se encaixam no crono-tempo, o tempo do capital, quando "não se pode perder tempo". Em resumo, o corpo-desejo e o tempo do devir são substituídos pelo organismo anátomo-funcional e pelo crono-tempo. Cota zero. Stop. A vida parou? Ou foi o automóvel?  disse Carlos, o poeta... quem acredita?

A.M. 
Liberdade busca jeito. Sou água que corre entre pedras. Quem anda no trilho é trem de ferro.

Manoel de Barros

EU TE AMO


CÉLULA

A alma é um absoluto fora-da-lei
assaltante contumaz do corpo
com pé-de-caba-fantasmático
que entra-e-sai, a alma é ah!
instantâneo em qualquer disfarce:
aparência de água, ar
insinuação de mercúrio
cara enluvada por meia de náilon
capuz sem furos, avessa e celofane
sombra que a luz seca, vice-versa.

Armando Freitas Filho

ODILON REDON



HOSPÍCIO DA ALMA

(...) Vivemos em um mundo desagradável, onde não apenas as pessoas, mas os poderes estabelecidos têm interesse em nos comunicar afetos tristes. A tristeza, os afetos tristes são todos aqueles que diminuem nossa potência de agir. Os poderes estabelecidos têm necessidade de nossas tristezas para fazer de nós escravos. O tirano, o padre, os pastores, os gurus, os tomadores de almas, têm necessidade de nos persuadir que a vida é dura e pesada. Os poderes têm menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar, ou, como diz Virilio, de administrar e organizar nossos pequenos terrores íntimos. A longa lamentação universal sobre  a vida: a falta-de´ser que é a vida... Por mais que se diga "dancemos", não se fica alegre. Por mais que se diga "que infelicidade a morte", teria sido preciso viver para ter alguma coisa a perder. Os doentes, tanto da alma quanto do corpo, não nos largarão, vampiros, enquanto não nos tiverem comunicado sua neurose e sua angústia, sua castração bem amada, o ressentimento contra a vida, o imundo contágio.
(...)
G. Deleuze e C. Parnet in Diálogos

JOÃO BOSCO - NAÇÃO


A CASTIDADE COM QUE ABRIA AS COXAS

A castidade com que abria as coxas
e reluzia a sua flora brava.
Na mansuetude das ovelhas mochas,
e tão estreita, como se alargava.
Ah, coito, coito, morte de tão vida,
sepultura na grama, sem dizeres.
Em minha ardente substância esvaída,
eu não era ninguém e era mil seres
em mim ressuscitados. Era Adão,
primeiro gesto nu ante a primeira
negritude de corpo feminino.
Roupa e tempo jaziam pelo chão.
E nem restava mais o mundo, à beira
dessa moita orvalhada, nem destino.

C.D. de Andrade
Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada.

Clarice Lispector

RODRIGO AMARANTE - Cavalo


FUSÃO DOS CORPOS

Somos seres descontínuos, indivíduos que isoladamente morrem numa aventura ininteligível, mas que tem a nostalgia da continuidade perdida. Suportamos mal a situação que nos amarra à individualidade que somos (...) (...) Falarei sucessivamente destas três formas, ou seja, do EROTISMO DOS CORPOS, DO EROTISMO DOS CORAÇÕES e, finalmente, DO EROTISMO SAGRADO. Depois falarei que o que está sempre em questão é a substituição do isolamento do ser, da sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda.
(...)
G. Bataille in O erotismo

VLADIMIR VOLEGOV


ISRAEL LIBERTA, SE REVOLTA E SE FRUSTRA

Israel confirmou a liberação de 26 prisioneiros palestinos na madrugada desta terça-feira, no horário local. A libertação já era esperada e faz parte de um plano dos EUA para retomar as negociações de paz na região.

Depois de deixarem as prisões israelenses de ônibus, os prisioneiros receberam recepções com honras de oficiais na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Em seu quartel-general em Ramallah, o presidente palestino, Mahmoud Abbas, ainda aguardava para encontrar os prisioneiros.

Em Israel, a libertação foi acompanhada de revolta e frustração com o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu. O primeiro-ministro planeja construir centenas de novos imóveis em assentamentos judeus, mas apoiadores das negociações de paz disseram que isso irá destruir qualquer boa vontade criada com a libertação dos prisioneiros.
(...)
Fonte: O Globo

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Capa do livro Holocausto Brasileiro


Tenho uma folha branca
                            e limpa à minha espera:

mudo convite

tenho uma cama branca
                            e limpa à minha espera:

mudo convite

tenho uma vida branca
                            e limpa à minha espera.


Ana Cristina César

JAIR RODRIGUES - Tristeza


DEPENDE

Mas o que quer dizer este poema? - perguntou-me alarmada a boa senhora.
E o que quer dizer uma nuvem? - respondi triunfante.
Uma nuvem - disse ela - umas vezes quer dizer chuva, outras vezes bom tempo...

Mario Quintana

ANDERSON YAMADA

luzes de Manaus

domingo, 29 de dezembro de 2013

Faço análise há trinta anos e a única frase inteligente que já ouvi do meu analista é a de que preciso de tratamento.

Woody Allen

VIKTOR TSYGANOV


A poesia não voltará a ritmar a ação; ela passará a antecipá-la.

Arthur Rimbaud
VIOLÊNCIA DO ESTADO

(...) Donde o caráter muito particular da violência de Estado: é difícil assinalar essa violência, uma vez que ela se apresenta sempre como já feita. Não é nem mesmo suficiente dizer que a violência reenvia ao modo de produção. Marx observava no caso do capitalismo: há uma violência que passa necessariamente pelo Estado, que precede o modo de produção capitalista, que constitui a "acumulação original" e torna possível esse próprio modo de produção mesmo. Se nos instalamos dentro do modo de produção capitalista, é difícil dizer quem rouba e quem é roubado, e mesmo onde está a violência. É que o trabalhador nasce aí objetivamente todo nu e o capitalista objetivamente "vestido", proprietário independente. O que formou assim o trabalhador e o capitalismo nos escapa, uma vez que já é operante em outros modos de produção. É uma violência que se coloca como já feita, embora ela se refaça todos os dias.
(...)
G.Deleuze e F. Guattari - in Mil platôs
segredos da Malásia

Era uma vez
uma mulher que
via um futuro grandioso
para cada homem
que a tocava.
Um dia
ela se tocou

Alice Ruiz

ALAN PARSONS PROJECT TALES OF MYSTERY AND IMAGINATION


BEBÊ CAUÃ NASCE EM BOTE

Durante três dias sem chuva na maior parte do Espírito Santo, uma grávida foi resgatada em uma área isolada pela enchente e teve o filho dentro do bote dos bombeiros.

Parte de uma ponte caiu no distrito de Pontal do Ipiranga, no muncípio de Linhares. Na Grande Vitória, mesmo com sol, bairros continuavam alagados. A Defesa Civil registrou a 24ª morte e mais de 1700 pessoas voltaram para suas casas. No estado, 69% das cidades foram afetadas pelas chuvas.

Em Vila Velha, mais de 10 bairros continuavam alagados. Para resolver o problema, a prefeitura abriu as três comportas do Rio Jucu. A expectativa é dar vazão a água acumulada nas comunidades pelo Canal Guaranhuns, neste domingo (29).

A auxiliar de enfermagem Janete Medeiros, de 53 anos, encontrou uma cobra atrás do sofá. "Além da cobra, vivo encontrando ratos morto e nesta manhã o muro da casa do meu vizinho estava tomado pro caramujos africanos", contou
(...)
Fonte: Juliana Borges, G1,ES

sábado, 28 de dezembro de 2013

PSICOPATOLOGIA:A BOLHA  

a psicanálise exalta o discurso
para reduzi-lo
à grade edipiano-sacana.

a psiquiatria, surda, magarefe suave, 
exclui a fala, 
e a substitui
pelo erro prenúncio do coma
estroma da mente
expropriada.

assim temos
duas pequenas-grandes
mortes equipadas, equiparadas:

a psicanálise,
deslumbrada com um saber católico 
e cômico.
a psiquiatria,
sem nada saber,
gozando  de  um  poder
químico e cínico.

no entanto,devires insólitos
assombram, desandam, desmontam
a organização da patologia
e a harmonia do tempo
cronológico.

A.M.

MICHEL FOUCAULT

Pensar: um exercício perigoso

RIZOMAS

(...) Buscamos uma clínica órfã. Começar do zero: considerar as forças que animam essa ou aquela concepção da doença. As forças e suas relações constituem poderes. Estes não falam mas fazem falar o diagnóstico. Mais: fazem falar o paciente, convencido de que a sua verdade é a da psiquiatria. Desse modo, refazer a psiquiatria é deixar aparecer a fala no encontro com o paciente. Tal fala não tem que ser compreensível nem ser só verbal. Há outras formas de expressão, às vezes sequer sonhadas pelos que estão embalados ao ritmo da razão triunfante. Fazer psiquiatria é sair da psiquiatria para o seu lado de fora que, ao mesmo tempo, é o seu lado de dentro, ou seja, o diagnóstico. Assim, outro uso do diagnóstico significaria um movimento de "oxigenação" do saber psiquiátrico por outros saberes que, com ele, comporão rizomas. Uma transdisciplinaridade, enfim.
(...)
A.M. 
Tão logo essa palavra ''amor'' lhe ocorreu, ela a rejeitou.

Virginia Woolf

PIER PAOLO PASOLINI

Pensar por imagens

ela tem os olhos azuis
mais verdes que vi
a poesia arrebenta
em suas praias de carne


A.M.

A FANTÁSTICA FÁBRICA DAS DEPRESSÕES

Tenho atendido muitos pacientes que já chegam com o diagnóstico de Depressão. Tal diagnóstico, é claro, lhes foi imposto por psiquiatras apaixonados pelo ato de passar remédio. É como se fizessem (aos pacientes) dizer a priori: "Eu sou a Depressão". Esta é uma espécie de  identidade factícia que tampona um "vazio" subjetivo de múltiplas causas e linhas existenciais heterogêneas. Ora, tal diagnóstico irá referendar o uso indiscriminado de psicofármacos. A crença instilada na mente do  paciente é a de que o remédio químico irá curá-lo, ainda que a palavra "cura" possa não ser usada. Ela circula implícita mas não menos atuante na produção da morbidade do século. Fico sabendo dessas histórias de terror clínico através dos próprios pacientes, quando dos relatos anamnésticos. O essencial a reter desse breve comentário é: 1-Existem vários tipos de depressão que não se coadunam com as categorias semiológicas da CID-10; 2-Há depressões com indicação exclusiva para psicoterapia; 3-A depressão grave (antiga endógena) tem indicação para farmacoterapia, desde que haja suporte psicológico do próprio psiquiatra, o que não significa psicoterapia no sentido usual. Quero dizer que o remédio químico, por melhor e mais "avançado" que seja, é insuficiente para o Encontro com o deprimido; 4-Há pessoas não deprimidas diagnosticadas como deprimidas. Talvez, sob a palavra de ordem do psiquiatra travestida de ajuda clínica,tornem-se, enfim, deprimidas for ever. 5-A depressão não é uma entidade clínica ou uma essência do ser-doente, mas uma síndrome psíquica gestada por múltiplos vetores etiológicos que é preciso pesquisar; 6- A depressão pode estar no mundo e não no paciente...

A.M.

SEBASTIÃO SALGADO


FELIZ 2015


Algo vai mal quando um país que precisa enfrentar seus problemas chama de ano da Copa um ano de eleições presidenciais. É o que está a acontecer com o Brasil.

Cinquenta mil brasileiros são assassinados por ano, outros cinquenta mil morrem no trânsito e outros 515 mil estão presos; a droga compromete a vida, a capacidade de trabalho e o futuro de centenas de milhares de nossos jovens; metade da população não tem acesso a água e esgoto; e a economia se desindustrializa.

Quanto ao potencial científico e tecnológico estamos cada dia mais para trás em relação ao resto do mundo; as avenidas estão atravancadas; a educação apresenta um retrato vergonhoso e uma brutal desigualdade; os hospitais públicos estão caóticos; e a natureza está sendo degradada.

No país, temos 13 milhões de adultos que não diferenciam as letras e outros 40 milhões sem capacidade de leitura; a produção não dispõe de logística eficiente para sua distribuição; e cinquenta milhões de brasileiros vivem graças à (felizmente) ajuda do programa Bolsa Família. Apesar disso, em vez de propostas dos presidenciáveis para 2015, estamos preocupados se os estádios da Copa ficarão prontos em 2014.

Isto se explica por nossa paixão pelo futebol, mas também pela descrença com a política, sobretudo porque não há candidatos propondo programas que empolguem a população. Até aqui, todos são tão iguais no comportamento e na falta de propostas diferenciadas. Assim, sobra apenas o grito de Viva a Copa.

Os candidatos ainda não apresentaram propostas para transformar a viciada economia brasileira de exportadora de bens primários, inclusive, alguns de indústria mecânica, em produtora de bens de alta tecnologia; nem mostraram como vão fazer o desenvolvimento ser sustentável ecologicamente e justo socialmente.

Não há propostas para o cerco em que vivem os brasileiros por causa da violência urbana provocada por desesperados com suas pobrezas diante da imensa guerra ao redor, nem para enfrentar a crescente mobilização de desiludidos, movidos pelas redes sociais, para promoverem atos de bloqueio de trânsito, queima de veículos e quebra de vidraças.

Nenhum candidato propôs ações para emancipar nossos pobres da necessidade de ajuda mensal.

Nenhum dos presidenciáveis disse como vai conduzir o Brasil no rumo da erradicação do analfabetismo e como garantir educação de qualidade igual para todos. Nem qual será o salário dos professores ao fim de seu mandato, nem como eles serão selecionados e avaliados.

Nesse quadro de “des-eleição”, o ano de 2014 será o ano da Copa. No primeiro de janeiro de 2015, poderemos acordar com a sensação de que tudo continuará no mesmo rumo de um país que cresce se desfazendo.

Por isso, só nos resta desejar um Feliz 2014 para cada um dos brasileiros e um Feliz 2015 para o Brasil.


Cristovam Buarque 

EMMANUEL CRUZ


DEVIR-CONSCIÊNCIA


A consciência, mesmo que pareça  ser  uma  luz vinda de dentro do cérebro, ou da mente, é uma tela. É possível dizer a partir  de um Bergson   deleuziano que a consciência  é  o  contrário da luz. Ela  é uma espécie  de anteparo para  a luz, esta sim, vindo  de fora, do  cosmo. Para pensar desse modo, há a experiência não usual, não  cotidiana, “anormal” do “ser-consciente”. Uma psicopatologia em ato.  No encontro com o paciente  interessa operar clinicamente uma  “outra” consciência. Os  casos mais  ou menos evidentes de alteração  do nível da  consciência (os quadros orgânicos)   são percebidos como tais à medida em que a anamnese é feita com detalhes.  Há uma infinidade deles  ligados à  condições cerebrais específicas. No entanto,  pela via   do Encontro não existe a consciência e sim subjetivações  ou modos de subjetivação. Um modo  de subjetivação é uma composição de afetos. Um traumatismo de crânio, por  exemplo,  pode gerar uma  confusão mental.  Mesmo aí, o nível da consciência compõe  um modo de  subjetivação, e não o contrário. A consciência  chega  depois. Ela é  um efeito proveniente  de  estímulos que  vêm de fora  e com o cérebro estabelecem  relações de uso. Caso o tecido cerebral  esteja  danificado (lesionado) os efeitos mudam. O cérebro é matéria, claro, mas o que  chega  de fora também é matéria. São imagens  formando  a  subjetividade. Assim,  o chamado “mundo interior” não existe senão  como expressão corporal das imagens. Se estas são matéria, são afetos.O que muda então  na avaliação (exame) do paciente  portador de transtorno mental? 1-o comportamento observável é   sobretudo o afetivo-relacional: como o paciente sente  e  reage ao mundo? 2-as funções psíquicas não remetem a  um centro  organizador (a consciência, o eu)  como  modelo de conduta adequada; 3- a capacidade de autonomia social  passa a estar ligada  aos  devires ou processos  desejantes; 4- uma pesquisa  destes  devires ou: que linhas existenciais o paciente constrói? é essencial, mais até  do que obter  um diagnóstico nosológico; 5- traçar um plano de vida  que  comporte os devires como movimentos  singulares: o paciente não é o diagnóstico, sequer a doença (caso exista); ele é uma mistura de elementos  do real e  do não-real; resta usá-la como ato  terapêutico.  

 A.M.

 “ A consciência  é  o contrário  da luz; todos os  filósofos tem vivido  com a idéia de que  a consciência era uma  luz. Pois não  é. O que  é  luz é  a matéria e  daí  a consciência é  o que  revela  a luz. Por  que? Porque a  consciência é a tela negra. A consciência é  a opacidade, que  como tal vai levar a luz a revelar-se, isto é,a refletir-se”, Deleuze, G., Curso de los martes; La  imagem movimento, 1982, tradução  ao espanhol: Ernesto Hernandez, via  Internet,  web  Deleuze, acessado em 09/12/2003, tradução espanhol-português nossa.
Mishima: uma vida em quatro tempos, 1985, direção de P.Schrader

EXTERIOR

Por que a poesia tem que se confinar 
às paredes de dentro da vulva do poema? 
Por que proibir à poesia 
estourar os limites do grelo 
da greta 
da gruta 
e se espraiar em pleno grude 
além da grade 
do sol nascido quadrado?

Por que a poesia tem que se sustentar 
de pé, cartesiana milícia enfileirada, 
obediente filha da pauta?

Por que a poesia não pode ficar de quatro 
e se agachar e se esgueirar 
para gozar 
-CARPE DIEM!- 
fora da zona da página?

Por que a poesia de rabo preso 
sem poder se operar 
e, operada, 
polimórfica e perversa, 
não poder travestir-se 
com os clitóris e os balangandãs da lira?

Waly Salomão

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

DENTRO-FORA

Custava-lhe esforço aquela decência tranqüila, aquela face calma - nervosa, no cansaço da noite maldormida, da luta inglória contra o desejo em brasa do seu ventre. Por fora água parada, por dentro uma fogueira acesa.

Jorge Amado

MPB4 e CHICO - Roda Viva


Goze.
Quem sabe essa
é a última dose?

Millôr Fernandes
mistérios do sol nascente

VAZIO

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente as casas,
Os bondes, os automóveis, as pessoas,
Os fios telegráficos estendidos,
No céu os anúncios luminosos.

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente os homens,
Pequeninos, apressados, egoístas e inúteis.
Resta a vida que é preciso viver.
Resta a volúpia que é preciso matar.
Resta a necessidade de poesia, que é preciso contentar.

Augusto Frederico Schmidt

GUSTAV MAHLER - Adajetto from Symphony n° 5


O FETICHISMO DA MERCADORIA NA OBRA DE MARX

Segundo o Minidicionário da Língua Portuguesa Aurélio, o termo fetiche significa “objeto animado ou inanimado, feito pelo homem ou produzido pela natureza, ao qual se atribui poder sobrenatural e se presta culto” (Holanda, 1993), foi este significado conferido ao fenômeno da atribuição de valor simbólico aos produtos (manufaturas) que o sociólogo por Karl Marx (1818 – 1883) observou em meio aos seus estudos sobre o mundo do trabalho na modernidade.
Marx em sua obra máxima intitulada “O Capital”, nota que a mercadoria (manufatura) quando finalizada, não mantinha o seu valor real de venda, que segundo ele era determinado pela quantidade de trabalho materializado no artigo, mas sim, que esta, por sua vez adquiria uma valoração de venda irreal e infundada, como se não fosse fruto do trabalho humano e nem pudesse ser mensurado, o que ele queria denunciar com isto é que a mercadoria parecia perder sua relação com o trabalho e ganhava vida própria.

Karl Marx denomina este fenômeno como sendo um “Fetiche da mercadoria”, para isto ele se baseia na história do personagem bíblico Moisés, que após vagar quarenta anos com o povo escolhido por Deus (Judeus) atrás da terra prometida se depara com a crescente descrença dos seus seguidores, que já estavam cansados de se deslocar errantemente por vários lugares, dado esta insatisfação Moisés, deixa o seu povo em uma terra fértil e se retira temporariamente para meditar e procurar algum sinal que indique a existência real deste Deus, a localização da terra prometida e que com isto possa recuperar a fé do seu povo que ia se perdendo rapidamente.

Moisés sobe ao monte Sinai e fica por muito tempo lá a meditar, o povo ao sentir o sumiço de seu “guia”, se reorganiza politicamente e espiritualmente naquele lugar onde fixaram sua vida material, elegendo a partir disto novas lideranças e novos deuses em que acreditar e orar. Muito tempo se passa em cima do monte Sinai, onde está Moises a meditar até que após vários dias e quem sabe meses os céus se abrem e deles surgem o sinal tão esperado pelo povo Judeu, as tabuas da salvação, onde estavam contidos os “Dez Mandamentos”. A partir deste sinal Moises, desce o monte Sinai e vai de encontro ao seu povo para lhes contar e mostrar a boa nova, ao chegar nota que estes haviam se reorganizado em sua ausência e que possuíam novas lideranças e principalmente que haviam juntado todo o ouro e jóias que carregavam consigo e fundiram estas para fazer uma imagem, um novo Deus, que segundo a bíblia seria a imagem de um animal (possivelmente um bezerro) que havia se tornado objeto de adoração e glorificação pelo povo, o nome atribuído a esta imagem era “Fetiche”.

Marx se utilizou desta parábola bíblica e principalmente do nome atribuído à imagem citada para exemplificar na modernidade como o homem estava tratando as mercadorias (sapatos, bolsas, etc.), estas, que com o tempo deixaram de ser um produto estritamente humano para tornarem-se objeto de adoração, a mercadoria deixa de ter a sua utilidade atual e passa a atribuir um valor simbólico, quase que divino, o ser humano não compra o real, mas sim a transcendência que determinado artefato representa.

Este tema infelizmente não foi suficientemente esgotado por Marx que faleceu prematuramente em 1883, porém outros filósofos e sociólogos Neo-Marxistas da pós-modernidade como Max Horkheimer, Theodor Adorno, Walter Benjamin, Bernard Stiegler, Gilles Lipovetsky, Antonio Negri, Alain Badiou, se ocuparam deste assunto, assim criando uma tradição rica de analise deste fenômeno da fetichisação da mercadoria, como esta se dá objetivamente e subjetivamente no ser humano e principalmente propondo encaminhamentos para a resolução deste problema.

 Leonardo Dlugokenski

Fontes
SELL, C.E. Sociologia clássica: Durkheim, Weber e Marx. Itajaí: Editora Univali, 2006.

MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Centauro Editora, 2005.

MANNION, James. O livro completo da filosofia. São Paulo; Madras, 2006

OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução à Sociologia: Série Brasil. São Paulo; Ática, 2006.
PRODUÇÃO DE CONSUMO

O objetivo do consumidor não é possuir coisas, mas consumir cada vez mais e mais a fim de que com isso compensar o seu vácuo interior, a sua passividade, a sua solidão, o seu tédio e a sua ansiedade.

Érico Veríssimo
rosa branca: o acontecimento que resiste

DECADÊNCIA

Cada uma das suas iniqüidades mesquinhas lança uma luz sobre a desgraça da vida humana. Cada um dos seus atos mesquinhos diminui a esperança de que se possa melhorar seu quinhão, mesmo que só um pouco.

Wilhelm Reich

ANSEL ADAMS


SEM LÓGICA

Não faça da lógica uma religião. Porque com a passagem do tempo, a razão pode lhe falhar; e quando isso ocorrer você poderá se descobrir procurando refúgio na loucura.

Anne Rice
Nosferatu - 1922 - outros vampiros

Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!...


Fernando Pessoa

MONET


MINHA ALEGRIA

minha alegria permanece eternidade soterrada 
e só sobe para a superfície 
através dos tubos alquímicos 
e não da causalidade natural. 
ela é filha bastarda do desvio e da desgraça, 
minha alegria: 
um diamante gerado pela combustão, 
como rescaldo final de incêndio.

Waly Salomão

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

a poesia
é melhor


A.M.
PULSAÇÕES LIVRES

Como qualquer um pode lhe dizer, não sou um homem muito bom. Não sei que palavra usar para me definir. Sempre admirei o vilão, o fora-da-lei, o filho-da-puta. Não gosto dos garotos bem barbeados com gravatas e bons empregos. Gosto dos homens desesperados, homens com dentes rotos e mentes arruinadas e caminhos perdidos. São os que me interessam. Sempre cheios de supresas e explosões. Também gosto de mulheres vis, cadelas bêbadas que não param de reclamar, que usam meias-calças grandes demais e maquiagens borradas. Estou mais interessado em pervertidos do que em santos. Posso relaxar com os imprestáveis, porque sou um imprestável. Não gosto de leis, morais, religiões, regras. Não gosto de ser moldado pela sociedade.

Charles Bukowski
OS WHITE BLOCS

Eles estão infiltrados no Estado brasileiro desde os seus primórdios: vieram com a Corte Absolutista de Dom João, em 1808. Não em naus menores, atrás das principais da esquadra que fugia da invasão napoleônica, mas bem ao lado da Família Real. Aqui compuseram a alta burocracia, renovaram os privilégios, aprofundaram a distância entre administração inchada e população desvalida. Propagaram a cultura da corrupção.

Eles não usam máscaras, pois suas caras de pau prescindem disso. Bem vestidos — os ternos de corte fino substituindo as perucas do século XIX —, têm incrível capacidade de renovação. Seus espaços no poder são mantidos como capitanias hereditárias. Arcaicos em suas práticas do tráfico de influência e enriquecimento ilícito, vestem a roupagem da “modernidade” das “tribos” da livre concorrência e do capitalismo sem riscos.

Eles não atacam bancos: esmeram-se em neles fazer operações sigilosas, aqui ou em paraísos fiscais, que passam ao largo dos órgãos de controle financeiro. Têm força junto aos grandes partidos e abortam qualquer investigação sobre suas movimentações milionárias, como nas CPIs do Banestado, Cachoeira/Delta e quantas outras surgirem tentando jogar luz em tenebrosas transações.

Crescidos na estufa dos negócios particulares, estão, anônimos, nas esferas dos três poderes da República. Nos Judiciários tentam comprar sentenças, envolver magistrados, fazer chicanas e absolver os poderosos. Regozijam-se quando a Justiça tarda e falha. Quanto mais ela pender sua balança para os ricos, melhor.

Nos Executivos, armam licitações dirigidas, beneficiam grandes empresas e estabelecem consórcios de propinas. Montam uma rede de “amigos” especializada em quebrar todas as barreiras republicanas que distinguem o público do privado, o interesse social do negócio mercantil.

Nos Legislativos, alavancam esquemas vitoriosos de financiamento empresarial de campanha e de publicidade despolitizadora. Assim elegem, além dos governos, sua “base de sustentação”, alimentada pela distribuição de cargos para nomeação de apaniguados. Direcionam as emendas orçamentárias para aqueles que possam se beneficiar de sua execução, cobrando retribuição.

Eles não gostam da claridade das ruas. Agem nos bastidores, justificando-se, no seu fatalismo interessado, com o “sempre foi assim”. Vandalizam o bem comum, frequentam as altas-rodas e têm certeza da impunidade.

Para enquadrá-los, é preciso desmontar a estruturas do poder oligárquico. Uma consigna, efetivamente praticada, também combateria essa chaga: LIMPE. De Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência, princípios fundamentais da administração pública, inscritos no artigo 37 da Constituição Cidadã que nos rege, há 25 anos.

Chico Alencar, O Globo 

OS NOVOS DISPOSITIVOS DA ESCRITA

Gilles Deleuze

ISSO NÃO PÁRA

O Natal foi marcado pela violência em comunidades do Rio e de Niterói. Entre a tarde de terça-feira e a manhã de quarta, durante as celebrações, balas perdidas feriram quatro pessoas, duas crianças, uma mulher e um adolescente. Dois casos ocorreram em favelas com Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Nos últimos três dias, foram sete vítimas de balas perdidas no estado.

Um dos casos foi o da menina Maria Eduarda da Silva Sardinha, de 11 anos, que morreu segunda-feira, numa favela em Colégio, atingida na cabeça dentro de casa. Um tiro, terça-feira à tarde, acabou com o Natal da família de Breno Freitas, de 2 anos. Ele foi baleado na cabeça dentro de casa, no Morro da Chácara, no Centro de Niterói. Os pais do menino contaram que chegavam à comunidade quando ouviram um barulho. Em seguida, encontraram a criança ferida no chão. Breno foi levado para o Hospital de Clínicas da cidade, onde continua internado no CTI pediátrico em estado grave.
(...)
Fonte: O Globo

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

JOPLIN



Haja hoje para tanto ontem

Paulo Leminski

ANA CAÑAS - Luz Antiga


A forma de governo mais adequada ao artista é a ausência de governo. Autoridade sobre ele e a sua arte é algo de ridículo.

Oscar Wilde

DARKO TOPALSKI


Quando o primeiro espertalhão encontrou o primeiro imbecil, nasceu o primeiro deus.

Millôr Fernandes

MELANCHOLIA - 2011 - Lars Von Trier


A ROUPA DO REI

(drummondiana)

Estamos gastos sim estamos  
gastos 
O dia já foi pisado como devia  
e de longe nosso coração  
piscou na lanterna sangüínea dos automóveis  
Agora os corredores nos deságuam  
neste grande estuário  
em que os sapatos esperam 
para humildemente conduzir-nos a nossas casas 

Em silêncio conversemos

Que fazer deste ser  
sem prumo  
despencado do extremo de um dia e  
que o sono não recolheu?

Não não indaguemos 
Para que indagar matéria de silêncio  
Procurar a nenhuma razão que nos explique  
e suavemente nos envolva  
em suas turvas paredes protetoras 

Nada de perguntas 
A campânula rompeu-se 
O instante nos ofusca

A quem sobra olhos resta ver  
um ser nu a vida pouca  
Só dentes e sapatos  
de volta para casa

Nem um passo à frente  
ou atrás 
De pés firmes 
o corpo oscilante  
neste suave embalo da mágoa  
descansemos


Francisco Alvim
Quando um louco parece completamente lúcido é o momento de colocar-lhe a camisa de força.

Edgar Allan Poe

LUIZ MELODIA - A Voz do Morro


O ESTADO DAS COISAS

O Estado é o mais frio de todos os monstros frios; mente friamente e eis a mentira que escorrega da sua boca: ‘ Eu, o Estado, sou o Povo'.

Nietzsche

GRUPO CORPO - Santagustin - 2002


Venham até a borda, ele disse. Eles disseram: Nós temos medo. Venham até a borda, ele insistiu. Eles foram. Ele os empurrou... E eles voaram.

Guillaume Apollinaire

TUDO É MÁSCARA


ESTÉTICA DO SILÊNCIO

Eu sempre me fascinei com o matemático indiano Srinivasa Ramanujan. Ele dizia que para resolver seus intricados teoremas era movido apenas pela beleza das equações. 
Na poesia também é assim. É uma espécie de exercício do não-dizer, mas que nos dilata de beleza quando acabamos de ler um poema.

Hilda Hilst
segredos da Malásia

BLÁ BLÁ BLÁ

No primeiro Natal como Papa, Francisco pede que fiéis evitem o egoísmo

Comemorando seu primeiro Natal como líder de 1,2 bilhão de católicos do mundo, o Papa Francisco pediu nesta terça-feira que as pessoas evitem o orgulho e o egoísmo e que os fiéis abram o coração a Deus. Francisco, que em março passado tornou-se o primeiro Papa não-europeu em 1.300 anos, celebrou uma missa solene para cerca de 10 mil pessoas na Basílica de São Pedro.

Em uma breve homilia, o Papa pediu que as pessoas não tenham medo de chegar a Deus. Ele celebrou a missa com mais de 300 cardeais, bispos e padres. E lembrou que o orgulho, o engano e o egoísmo levam à escuridão.
(...)
Fonte: O Globo

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

EUZINHO PRIVADO

Não existe mundo subjetivo interno. A subjetividade (que preferimos chamar de modo de subjetivação) vem de fora e volta  para fora, mesmo em casos de grave  fechamento existencial, como nas psicoses autísticas. São dados clínicos facilmente observáveis no contexto familiar onde o paciente está inserido..Neste sentido, a redução (na clínica) dos modos de subjetivação aos conceitos de eu, indivíduo, sujeito, consciência, cérebro, comportamento, conexões neuro-sinápticas, alterações físico-químicas, ou qualquer patologia que atinja o chamado organismo e páre aí, institui o primado da  necessidade do controle sobre os corpos. Toda esta engrenagem se encontra encoberta por ideais humanistas de bem ao próximo com um olho na lucratividade  do mercado. Mais doentes, mais remédios, mais profissionais da alma. A salvação dos tempos esquizofrênicos fica na órbita das transcendências do euzinho privado e em paz com suas consciências. 

A.M.

CHARLES CHAPLIN


MADRIGAL PARA UM AMOR

Luz da Noite Lis da Noite
meu destino é te adorar.

Serei cavalo marinho
quando a lua semi fátua
emergir de meu canteiro
e tu tiveres saído
em meus trajes de luar.

Serei concha privativa,
turmalina, carruagem,
Mas só se tu, Luz da Noite,
teu delírio nesta margem
já quiseres desaguar.

(Não te faças tão ingrata
meu bem! Quedo ferido
e meus olhos são cantatas
que suplicam não me mates
em adunco anzol de prata!)

E quanto nós nos amamos
em nossa vítrea viagem
de geada e de serragem
pelo meio continente!

Luz da Noite Lis da Noite
meu destino é te seguir.

Meu inábil clavicórdio
soluça pela raiz,
e já pareces tão farta
que nem sequer onde filtra
meu lado bom te conduz:
Minha amiga vou fremindo
embebido em tua luz.

Cacaso