quarta-feira, 31 de março de 2021

O DILEMA PSIQUIÁTRICO

O tema "delírio" atravessa a história da psiquiatria, e, por extensão, da psicopatologia clínica. É que os modos de subjetivação (pacientes) operam segundo dois elementos básicos: crença e afeto. Há sempre algo em que se acreditar e há sempre algo que se sente. Isso conduz ao fato de que compreender (ou aceitar) um delírio só é possível se se considera a produção delirante para além do enfoque biomédico, o qual, por uma questão de método, trata o delírio apenas como sintoma. E se é sintoma, deve ser suprimido. Ora, os modos de subjetivação são um efeito e não causa de discursos múltiplos e experiências inomináveis. Não são sintomas mas realidades "reais" e densas em si mesmas. Desse modo problematizam o conceito de anormalidade mental. Há, pois, narrativas insólitas muitas delas úteis ao paciente como território de sentido e motivo para existir. As crenças (religiosas, culturais, místicas, políticas, ocultistas, filosóficas, antropológicas, conspiracionistas, históricas etc) e os afetos correlatos compõem semióticas irredutíveis à concepção psiquiátrica. Esta, colonizada por um positivismo neurológico cada vez mais atolado na reificação do cérebro, deixa escapar a riqueza e a complexidade de um delírio (uma crença) ou pior, considera doente quem não é. Ou, ao contrário, considera não doente quem é. Pelo visto, a psiquiatria se debate num dilema aparentemente insolúvel. Sabe e não sabe quem é normal.


A.M.

STEPAN KOLESNIKOV


 

domingo, 28 de março de 2021

Xeque-mate


Quando menos se espera, já são horas.

A dama de espadas perde o gume

e o pássaro pousado vai embora.


Quando menos se espera, o que se anuncia

não é a sorte grande, a estrela Aldebarã

ou a sagração da primavera.

São tempos de abutre

e o coração, músculo bélico, fraqueja.


De repente, já é sábado,

há uns assuntos desagradáveis para resolver

e, sobre a pele confusa da alma,

uma densa crosta de óxido e desalento.


Quando menos se espera, o rei está em xeque,

e é dezembro.

Há uma complicação de trânsito

na avenida

uma artéria que não dá passagem.

Quando menos se espera, já é tarde.



Carlos Machado

Rosa Passos canta "Juras"

TRAIR É CRIAR


Usando Elias Canneti do livro “Massa e Poder" (1960), é possível identificar a doença do poder: a paranóia. Há sempre, de fato, na medida e no miolo das correlações de forças, uma circulação de desconfiança a priori, um incentivo ao medo, um convite à fobia, uma expectativa angustiante, uma melancolia disfarçada, um pânico frente à desordem, enfim, a grande suspeita contida numa peça sem autoria e, daí, sem sujeito. Quem é o poder? A paranóia não é individual, e sim coletiva, mesmo que surja em alguém isolado. Há regimes significantes eternizados como suplícios dos dominados. Veja o caso dos Estados e das Igrejas. Esta parece ser a regra que a história timbrou, ou finge que. Pode ser o rei, o presidente, o papa, o príncipe, o chefe de estado, o prefeito, o governador, figuras de autoridade, os poderosos... O que importa é que eles se inserem em modos de subjetivação como verdades dadas e contabilizadas, a depender dos rumos da política. Qualquer um pode ser qualquer um, todos são todos, desde que o poder funcione como maquinaria produtora de um gosto por viver e que se nutra de linhas institucionais endurecidas. Desconfia-se de tudo e de todos e vice-versa; instala-se o clima necessário a dizer e sentir “eu posso tudo”. “Aguirre, a Cólera dos Deuses”, o filme de W.Herzog (1972), ilustra bem o liame poder-paranóia como delírio do infinito: a sequência final é emblemática. Assim, é possível, no caso da psiquiatria, detectar todo um sistema de paranóia embutido na CID-10 como lógica persecutória. Isso funciona no território movediço dos afetos de uma clínica verticalizada. A psiquiatria tem poder porque é fraca. Como diz Nietzsche, "é preciso defender os fortes dos fracos".O poder produz, alimenta-se de mil produções subjetivas, delira sem delirar, delira naturalmente. A contrapartida à vivência persecutória seria, pois, a traição à ordem instituída da razão, à ordem instituída do transtorno mental, à ordem instituída do estado, à ordem instituída de todas as ordens. Trata-se de um modo e de um estilo de experimentar a passagem do tempo que não volta: a irreversibilidade em ato.


A.M.

Retrato do artista quando coisa


Há um cio vegetal na voz do artista.

Ele vai ter que envesgar seu idioma ao ponto de alcançar o murmúrio das águas nas folhas das árvores.

Não terá mais o condão de refletir sobre as coisas.

Mas terá o condão de sê-las.

Não terá mais ideias: terá chuvas, tardes, ventos, passarinhos…

Nos restos de comida onde as moscas governam ele achará solidão.

Será arrancado de dentro dele pelas palavras a torquês.

Sairá entorpecido de haver-se.

Sairá entorpecido e escuro.

Ver sambixuga entorpecida gorda pregada na barriga do cavalo —

Vai o menino e fura de canivete a sambixuga: Escorre sangue escuro do cavalo.

Palavra de um artista tem que escorrer substantivo escuro dele.

Tem que chegar enferma de suas dores, de seus limites, de suas derrotas.

Ele terá que envesgar seu idioma ao ponto de enxergar no olho de uma garça os perfumes do sol.


Manoel de Barros

sexta-feira, 26 de março de 2021

O narcisismo dos autores é odioso porque não  pode haver narcisismo de uma sombra.

(..,)


G. Deleuze

O CÉREBRO MENTE

A psiquiatria é uma especialidade médica híbrida. Funciona na zona de fronteira entre as ciências humanas e as biológicas. Contudo, mais importante para a prática clínica (ou seja, aos efeitos sobre o paciente) é  o fato de ser ela uma forma social que se nutre dos códigos sociais estabelecidos. Exemplo simples é o da moral. A psiquiatria guia-se pela moral como pressuposto implícito dos seus enunciados diagnósticos, os quais inscrevem-se no fenômeno mais amplo de medicalização da sociedade. Para que tal empreendimento "dê certo",  conta com a reverência das pessoas em geral a uma neurocientificidade reducionista e à figura do psiquiatra como ponto de subjetivação mantenedor da ordem. São linhas semióticas (produzem significados) que circulam entre os técnicos de saúde mental num circuito de naturalização a-histórica da medicina, e por extensão da própria psiquiatria. Daí, a assepsia tecnocientífica da psiquiatria biológica esconder a função da clínica-do-remédio-químico como produtora social de fármaco-subjetividades. Para o paciente e familiares, vulneráveis aos fluxos da loucura, a saída terapêutica passa a ser o psiquiatra que apenas medica, ainda que isso mortifique o desejo. Ou justo por isso. O chamado paciente crônico é produzido, estigmatizado como crônico pelas vias do diagnóstico "cidológico" e pela farmacoterapia contensora dos processos subjetivos singulares.


A.M.

quarta-feira, 24 de março de 2021

A GUERRA DO BRASIL


Todos foram contaminados. Para alguns, o vírus asfixiou. Para outros, ele gerou a fome, o desemprego e a depressão. Incapacidade de dormir para quem não sabe o dia de amanhã, medo de fechar os olhos para aqueles que temem não despertar. Explosão de problemas de visão para as crianças privilegiadas submetidas às telas que se multiplicam. Revelações da cegueira coletiva em adultos.


Oficialmente, chegamos perto de 300 mil mortos em apenas um ano, um número equivalente aos onze anos da guerra civil em Sierra Leoa. Superamos conflitos históricos como o do Líbano, dos Balcãs, os 56 anos de guerra na Colômbia e mesmo a atual guerra no Iêmen.


Num primeiro momento, diante dos números e da ameaça global, rapidamente tiramos conclusões equivocadas de que o vírus era democrático. Mas basta ver as taxas de mortes e de sofrimento nas periferias, na população negra e indígena e nos mais vulneráveis para entender a ilusão dessa declaração.


A palavra pandemia não está no feminino por acaso. São elas as mais afetadas, mais sobrecarregadas e mais prejudicadas.


Desde o início da pandemia, governos democráticos e autoritários usaram o simbolismo da guerra para mobilizar e justificar medidas extraordinárias. Comparações fora de lugar e com objetivos políticos para lidar com um desafio que era social, não militar.

Mas a nossa guerra não foi um recurso de retórica. O país foi transformado em uma enorme Guernica, com trincheiras e rostos deformados em cada ônibus lotado, em cada casa sem esgoto, em cada corredor de hospitais, no corpo estendido no chão em Teresina. Um corpo seminu, coberto de marcas de crimes.


Ironicamente, estamos sendo derrotados justamente no momento em que os militares se infiltraram no comando do Brasil. Prova - mais uma delas - que uma guerra é importante demais para ser deixada para os generais.


Em meio século, seremos questionados pelos livros de história: o que fizeram aquelas pessoas em 2020 e 2021? Não faltarão pesquisas nos arquivos diplomáticos para descobrir que parte do esforço não foi para enfrentar o inimigo. Mas para usar as tribunas internacionais para mentir.


Não faltarão alunos em choque ao descobrir que milícias - digitais ou suburbanas - agiram como braço armado de uma política deliberada de tentar desmontar e intimidar uma reação popular.


Tampouco faltarão estudos para mostrar que, num certo dia 23 de março de 2021, ao fazer um pronunciamento à nação, um charlatão fantasiado de presidente tentava esconder sua nudez obscena com manipulações e com Deus.


Se existe de fato uma comunidade de destino nesse primeiro povo global, o atual momento coloca uma encruzilhada inédita para nossa geração.


Nessa guerra, de nada adiantará desfilar com as cores nacionais. A bandeira do patriotismo não será grande o suficiente para cobrir todos esses corpos e todas nossas almas dilaceradas. A soberania foi zombada por um inimigo que gargalhou das ideologias.


Sem coordenação, sem controle, sem um destino claro e sem um plano, o Brasil vive seu momento definidor em uma batalha em suas entranhas.


Quanto ao inimigo acostumado ao cheiro da morte, o realismo mágico do país lhe deixou assombrado. Afinal, descobriu, de forma impensável, que tem na liderança do próprio estado um dos seus melhores aliados.


Jamil Chade, UOL, 24/03/2021, 04:00 hs

domingo, 21 de março de 2021

Se eu já estiver morto,

As flores florirão da mesma maneira

E as árvores não serão menos verdes que na primavera passada.

A realidade não precisa de mim.


Sinto uma alegria enorme

Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.


Se soubesse que amanhã morria

E a primavera era depois de amanhã,

Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.

Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?

Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;

E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.

Por isso, se morrer agora, morro contente,

Porque tudo é real e tudo está certo.


Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.

Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.

Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.

O que for, quando for, é que será o que é.


Alberto Caeiro

ANIVERSÁRIO DE BOLSONARO: COMEMORAÇÕES EM TODO O BRASIL

TEATRO POÉTICO: SÓ PARA LOUCOS

A linguagem poética constitui um território de significações que escapa às coordenadas da razão. Um sentido a se produzir. Desse modo, a busca de singularidades existenciais é facilitada pela aventura de se ler um poema e implicar-se a ele. O que isso quer dizer? Quer dizer formar e firmar conexões afetivas com um ou muitos pedaços do poema ou do poema como um todo, mesmo sabendo que não há todo. Não há todo porque as multiplicidades heterogêneas do texto nunca fecham um sistema ou tamponam um devir. O processo do desejo é irreversível. Ou seja, sem volta. A poesia é isso: multiplicidades do leitor se ligando a multiplicidades do poema na busca de... uma diferença. Ler um poema não é como ler um ensaio de sociologia, por exemplo, mas sim escutar os versos como se escuta uma música ou se sente no corpo as vibrações das cores de um quadro de Emil Nolde, ou no mesmo corpo e ao mesmo tempo o ritmo de um improviso de jazz, ou uma coreografia de Pina Baush, um gol de bicicleta... Poesia não foi e não é feita para interpretar porque ela já é uma interpretação ou mil, cem mil interpretações da realidade. Ou a própria realidade, a realidade em si-mesma. Quando se está apaixonado (isso deveria ser sempre) a poesia cobre e recobre as superfícies do mundo numa película fina de delicadeza, suavizando os pedregulhos das estradas mais longínquas e inóspitas. Tal como em "Asas do Desejo" (Wim Wenders, 1987), o anjo amante do tempo está transfigurado por avistar a trapezista no seu camarim, não por ele ser um anjo, mas por haver entrado num devir-humano, devir-mundo, devir-risco, devir-perigo, devir-paixão, devir-amar. 


A.M.

sábado, 20 de março de 2021

Anti-Édipo e outras reflexões – AULA de Gilles Deleuze [1980] (Legendad...

Infância


Coração preto gravado no muro amarelo.

A chuva fina pingando... pingando das árvores...

Um regador de bruços no canteiro.


Barquinhos de papel na água suja das sarjetas...

Baú de folha-de-flandres da avó no quarto de dormir.

Réstias de luz no capote preto do pai.

Maçã verde no prato.


Um peixe de azebre morrendo... morrendo, em

dezembro.

E a tarde exibindo os seus

Girassóis, aos bois.


Manoel de Barros

sexta-feira, 19 de março de 2021

Cúmplices de Bolsonaro, Pacheco e Lira se omitem na pandemia | Kennedy A...

ATEÍSMO CRISTÃO

O teísmo cristão (Deus único), é mantido, sem que se perceba, graças e um ateismo implícito dos seus fiéis. Tal fato, no mínimo desconcertante para o senso comum, transmuta-se em ressentimento exalado contra os céticos, os ímpios, os ateus, os agnósticos, os "sem-deus",e outros personagens com epítetos menos votados.Trata-se de um ateismo embutido em forças inconscientes, e por isso, poderoso.É, pois, absolutamente necessário aos militantes da fé, evitar tomar consciência da sua "pouca fé" e para isso ter êxito, acusar o incrédulo como encarnação do Mal e/ou diabolização da existência. O catolicismo ilustra bem tal estado de coisas. É que o cristianismo, como modo de subjetivação secular, matriz de inúmeras religiões, espalha sua miséria psíquica por milhões de almas afundadas na culpa. A vida, como diz Nietzsche, passa então a ser julgada. Não por acaso, o Capitalismo Mundial Integrado (cf. F. Guattari) se serve dessa verdade monstruosa para codificar o desejo como racionalidade do estado, do eu, do indivíduo, da família, da escola, instituições assassinas do desejo, entre outras, circulando pelos quatro cantos da Terra.


A.M.

quarta-feira, 17 de março de 2021

Mais do que em qualquer outra época, a humanidade está numa encruzilhada. Um caminho leva ao desespero absoluto. O outro, à total extinção. Vamos rezar para que tenhamos a sabedoria de saber escolher.


Woody Allen

segunda-feira, 15 de março de 2021

A BUSCA DA DIFERENÇA

Concebemos  a psiquiatria  antes de tudo como uma  instituição. É deste modo que ela empreende a pesquisa e o exercício da clínica, minorando sofrimentos e ajudando sujeitos a se reorganizarem psiquicamente. Mas é  também deste  modo que ela desenvolve e exerce práticas de segregação e violência. Por isso não é recomendável substancializá-la como sendo uma coisa nem  considerá-la possuidora de uma “ natureza”. Ela é, isto sim,  processo histórico-social inserido em formações  subjetivas concretas. Para  ser possível  enxergar  deste  modo, partimos de outro lugar do pensamento, ainda que estejamos no mesmo lugar, que é o da clinica  psicopatológica. Iremos ao que está   fora das coordenadas da  razão, o Aberto, para daí extrair acontecimentos, mesmo os menores, e, principalmente, quase imperceptíveis. Assim se  descobrem  mundos  subjetivos insuspeitos de existir, e que produzem  realidades radicalmente  distintas  das  vigentes. É  o universo da diferença.

(...)

A.M.

sábado, 13 de março de 2021

onde anda a política

que muda?

onde anda a muda

que floresce?


A.M.

Carta do #COVID19 #CORONAVIRuS para a Humanidade

Só os inimigos dizem a verdade. Amigos e amantes, apanhados na teia da obrigação, mentem sem parar.


Stephen King

SER DE ESQUERDA SER DE DIREITA

Esquerda e Direita não remetem as essências. Elas são (ou deveriam ser) apenas linhas subjetivas usadas para um balizamento político. O que mudar? Por que mudar? Como mudar? Para que mudar? Mudar para quem? São questões amplas para problemas concretos. Todos (não só os políticos) falam em mudanças. Ninguém deixa de falar em mudanças, mormente num país com graves problemas. Seguindo um pensamento das multiplicidades existenciais, é possível falar em muitas esquerdas e em muitas direitas. Tudo vai depender de uma análise das instituições (formas sociais) em jogo num dado momento histórico. Seja um indivíduo: ele pode ter linhas de esquerda e de direita misturadas, entrelaçadas, ao ponto de não ser possível distingui-las. Então, será preciso obter um conceito que abranja um desejo de mudança atravessando modos de subjetivação. Não indagando "quem sou?" (uma identidade) mas, à medida em que o tempo passa, em quem me torno? Ora, se o tempo passa é porque tudo muda, queiramos ou não. Assim, o conceito de "irreversibilidade do tempo" é o que  serve para pensar a esquerda e a direita para além de essências ou formas imutáveis. Não existem essências. O cidadão que acredita encarnar em si mesmo a esquerda ou a direita alimenta-se de um imaginário narcísico e paranóico. Somos simultaneamente esquerda e direita postos sob um solo de incessante mudança, ainda que imperceptível. E para lidar com a vertigem do tempo que passa e não volta e com o dualismo grotesco esquerda~direita que busca tamponá-lo, a arte é a linha afirmativa, não a monumental ou a mercantil, mas a arte como estilo ou invenção de vida, de alegria e de possibilidades (infinitas) de criar um novo mundo. A utopia revolucionária resiste (mesmo encurralada pelo fascismo e seu cortejo mortuário) em toda a sua potência e necessidade atual. Compõe o desejo e a sociedade como o que há de mais digno para escapar do buraco ético em que nos metemos.


A.M. 

quinta-feira, 11 de março de 2021

ÉTICA E CLÍNICA EM SAÚDE MENTAL

Em saúde mental, a ética é indissociável da clínica. Não como ética idealista, ou seja, não como reflexão teórica sobre a moral. Isso é antigo. Trata-se de outra coisa, outro conceito. Está encravado na prática. A ética como aumento ou redução da força de viver. Potência dos corpos. A clínica em psicopatologia é assim a própria ética, ela em si mesma, ética crua, miolo da saúde mental. Impossível não haver uma escolha. A psiquiatria manicomial, instituição hegemônica na saúde mental (por vezes disfarçada de neurobiológica) também é ética, produz uma, ainda que possa ser de destruição e/ou amordaçamento dos afetos. Racionalmente, claro, tudo é justificável, mesmo que  irracional. É que no ato clínico a ética passa por linhas singulares da existência. Entramos e estamos no campo das escolhas finas. Não é fácil. Não há uma chave universal para resolver os dilemas éticos. Não há modelo, não há um protocolo a seguir, exceto o dos hospícios, mais ainda os que pululam à céu aberto. Ou até dentro de nós. Então a ética terá que ser inventada a cada momento num contexto sócio-institucional. Trata-se de um aprendizado dos signos da psicopatologia. Como diria um antigo (e sábio) professor: "depois de tudo que vi, assisti, escutei, estudei, pesquisei e aprendi, chegou a hora". Diante de um paciente (uma vida), o que fazer?


A.M. 

terça-feira, 9 de março de 2021

 Miguel 


1

faz pacto com a folia

no dia-a-dia 

2

a piscina?

uma vitamina

3

é amigo de Sam

sua irmã

4

gosta de viajar

e do luar

5

chegou a surpresa

com certeza

6

suas intensidades

são verdades

7

desenha cores

e amores

8

em tempo de pandemia

fabrica alegria

9

batata frita

ele não evita

10

aos 10

é dez


domingo, 7 de março de 2021

Toda a educação assenta nestes dois princípios: primeiro repelir o assalto fogoso das crianças ignorantes à verdade e depois iniciar as crianças humilhadas na mentira, de modo insensível e progressivo.

(...)

Franz Kafka

OUTROS ENCONTROS

O organismo físico-químico, visível, palpável e mensurável, é o objeto da medicina, onde ela de fato intervêm, e, caso obtenha êxito terapêutico (principalmente por isso), retira mais-valia de poder. No entanto, junto a esse organismo e fora da relação linear causa-efeito, funciona o corpo das intensidades livres. Não é visível, não é palpável, não é mensurável, nem segue os mapas fisiopatológicos vistos em exames por imagem. Distinto da consciência, a qual sempre obedece ordens, ele não obedece, é rebelde e alterna com o organismo fluxos atuais e/ou antigos de afetos nômades. São eles que impulsionam a vida, que são a vida : potência sem forma. Em face desse estado  (real) das coisas, tal corpo traz grandes dificuldades à pesquisa. Como acessar algo que não se vê, não se toca nem se mede? Na clinica psicopatológica é possível observar: há um "corpo que não aguenta mais" e que se expressa em sintomas álgicos (por exemplo, cefaléias crônicas - simbolismo do órgão?), mas também como multiplicidade de sintomas que englobamos sob o nome de angústia. Aqui não se trata de usar a psicanálise como doutrina ou método de trabalho, mas de roubar deste saber complexo a hipótese de um inconsciente para além da representação de papai-mamãe. Um inconsciente "órfão, ateu e anarquista", inconsciente-corpo. Não é fácil encontrá-lo.


A.M.

Goze.

Quem sabe essa

é a última dose?


Millôr Fernandes

Jorge Vercillo - Que Nem Maré

sábado, 6 de março de 2021

O PLANO DE PROPAGAÇÃO DO VÍRUS

A linha de tempo mais macabra da história da saúde pública do Brasil emerge da pesquisa das normas produzidas pelo Governo de Jair Messias Bolsonaro relacionadas à pandemia de covid-19. Num esforço conjunto, desde março de 2020, o Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (CEPEDISA) da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP) e a Conectas Direitos Humanos, uma das mais respeitadas organizações de justiça da América Latina, se dedicam a coletar e esmiuçar as normas federais e estaduais relativas ao novo coronavírus, produzindo um boletim chamado Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil. Nesta quinta-feira (21/1), lançam uma edição especial na qual fazem uma afirmação contundente: “Nossa pesquisa revelou a existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo Governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República”.

Obtida com exclusividade pelo EL PAÍS, a análise da produção de portarias, medidas provisórias, resoluções, instruções normativas, leis, decisões e decretos do Governo federal, assim como o levantamento das falas públicas do presidente, desenham o mapa que fez do Brasil um dos países mais afetados pela covid-19 e, ao contrário de outras nações do mundo, ainda sem uma campanha de vacinação com cronograma confiável. Não é possível mensurar quantas das mais de 212.000 mortes de brasileiros poderiam ter sido evitadas se, sob a liderança de Bolsonaro, o Governo não tivesse executado um projeto de propagação do vírus. Mas é razoável afirmar que muitas pessoas teriam hoje suas mães, pais, irmãos e filhos vivos caso não houvesse um projeto institucional do Governo brasileiro para a disseminação da covid-19.

Há intenção, há plano e há ação sistemática nas normas do Governo e nas manifestações de Bolsonaro, segundo aponta o estudo. “Os resultados afastam a persistente interpretação de que haveria incompetência e negligência de parte do governo federal na gestão da pandemia. Bem ao contrário, a sistematização de dados, ainda que incompletos em razão da falta de espaço na publicação para tantos eventos, revela o empenho e a eficiência da atuação da União em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível e a qualquer custo”, afirma o editorial da publicação. “Esperamos que essa linha do tempo ofereça uma visão de conjunto de um processo que vivemos de forma fragmentada e muitas vezes confusa”.

A pesquisa é coordenada por Deisy Ventura, uma das juristas mais respeitadas do Brasil, pesquisadora da relação entre pandemias e direito internacional e coordenadora do doutorado em saúde global e sustentabilidade da USP; Fernando Aith, professor-titular do Departamento de Política, Gestão e Saúde da FSP e diretor do CEPEDISA/USP, centro pioneiro de pesquisa sobre o direito da saúde no Brasil; Camila Lissa Asano, coordenadora de Programas da Conectas Direitos Humanos; e Rossana Rocha Reis, professora do departamento de Ciência Política e do Instituto de Relações Internacionais da USP.

(...)

Eliane Brum, El País, 21/01/2021, 16:13 hs

O UNHUDO

Ao zombar do aumento do número de suicídios durante a pandemia, na sua live de quinta, o presidente Bolsonaro repetiu os trejeitos mal-assombrados de O homem que ri (1928). No filme de terror, Conrad Veidt faz o papel de um sujeito que teve a boca deformada para manter um sorriso macabro no rosto.

Quando faz chacota dos 260.000 mortos por covid-19, a munganga presidencial é ainda mais aterrorizante. O homem que ri da tragédia tem inclusive claque para reverberar as gargalhadas. Há sempre alguém rindo por bajulação ou perversidade enquanto mais um brasileiro é jogado em uma cova rasa —muitas vezes sem direito sequer aos sete palmos de terra do regulamento funerário.

Mas não será no horror gótico das antigas que encontraremos paralelo ao comportamento do amaldiçoado. Só uma lenda brasileira explica o “mito” que ocupa a presidência da República —a lenda do Corpo-Seco. Predominante no folclore sudestino, inclusive na sua Glicério (SP) natal, Corpo-Seco também é chamado de Bradador, Barulheiro, Berrador, Bicho Barulhento e Unhudo.

Por onde passa, o infeliz lendário atravanca os caminhos, favorece moléstias, assombra, deturpa, boicota, atrasa a vida dos viventes. Rejeitado por Deus e pelo Diabo, a criatura é incorporada por seguidores capazes de cometer as mesmas atrocidades em seu maldito nome.

Arrepiai-vos, o terror nacional, além muito além do seriado Cidade Invisível (Netflix), está apenas na metade. Temos 22 mal-assombrados meses pela frente. A não ser que apareça um Curupira e legiões de heroicos boitatás capazes de promover um sumiço desse Unhudo. No momento, parece improvável, mesmo com a destruição da floresta e seus derredores.

Corpo fechado pelo Congresso, à prova de CPI ou impeachment, o tinhoso ainda conta com a ajuda do coronavírus para deter as manifestações de rua e outras possíveis barricadas. Nem o Saci Pererê seria matreiro ao ponto de quebrar essa blindagem do cascabulho. E assim o país moribundo é obrigado a dormir, mais uma noite, sob o sonífero tarja preta da Cuca. Nana neném...

É preciso parar essa assombração. Ouvimos aqui e acolá, inclusive entre os senadores mais tarimbados em exorcismos políticos. Nada feito. O Bradador finge que vai para as catacumbas e retorna mais perverso ainda, como nas versões caipiras do Corpo-Seco de São Luiz do Paraitinga, Dois Córregos e da mineira Ituiutaba. É uma peste capaz de tirar sono, juízo e sanidade. Vade-retro.

Caso as lendas do mato não sejam suficientes para brecar o inominável, apelaremos para as urbanas. Quem sabe a Perna Cabeluda, Papa-Figo, Galeguinho do Coque, Biu do Olho Verde, Palhaço do Coqueiro do Janga, Quibungo, Morto da Governadoria, Lobisomem da RFFSA, Cão de Itaoca, Corta-Bundas, Bebê Diabo, Loira do Algodão, Chupa Cabra... Alguém lembra de outras?


Xico Sá, El País, 05/03/2021, 05:30 hs

quinta-feira, 4 de março de 2021

ALEXEY SLUSAR


 

MIL ENCONTROS

Desde tempos idos operamos o conceito de Encontro a partir de Espinosa, Moreno, Martin Buber e Deleuze-Guattari. Estes autores compuseram uma espécie de matriz teórica para pensar o encontro, considerando o próprio encontro com eles. No entanto, para além de um cais seguro, outros autores foram conectados, formando um extenso rizoma onde e por onde linhas de pesquisa se tecem. Mais ainda, além e aquém de tais conexões, o conceito de encontro passou a ser engendrado no devir da clínica em psicopatologia. Observamos: a cada processo terapêutico aparecem signos que enriquecem o conceito, tonando-o peça essencial na construção de uma prática-clínica da diferença. Alguns desse signos podem ser registrados como balizas existenciais numa aventura em plagas do novo, do indeterminado e do desconhecido. Mistério da subjetividade. Em primeiro lugar, o signo da loucura como o lugar do não-lugar das significações prévias. Deserto de valores, vazio de sentido. Em segundo, o signo da morte, da finitude, da perplexidade em face do fio tênue da vida atravessando os discursos. Em terceiro, a irreversibilidade do tempo que passa e não volta jamais, truísmo imbricado na economia psíquica, e por isso nem sempre valorizado. Em quarto, a inferência direta do fracasso monumental da estadia da humanidade na Terra e o seu pesadelo do qual não se desperta. Em quinto, a relação indissociável dos modos de subjetivação com as formas sociais expressas segundo a ordem do capitalismo aparentemente vencedor. Em sexto, mas não menos importante, o corpo como o lugar das intensidades e do brilho da existência. O corpo-a-corpo como a passagem, o nexo, a conexão, o link dos encontros. Tais são a ancoragem do pensamento do encontro com a diferença. Ele pode e deve transmutar-se em mil linhas de intervenção prática na clínica psicopatológica. Seria possível repetir e extrair a alegria de experimentar novos encontros? Sim, mas sem garantias de poder, felicidade, sucesso, dinheiro, prestígio, salvação, valores humanos, demasiado humanos, como diria o bigodudo alemão do século XIX.


A.M.

sossegue coração

ainda não é agora

a confusão prossegue

sonhos afora


calma calma

logo mais a gente goza

perto do osso

a carne é mais gostosa



Paulo Leminski