ela foi a mulher
que me fez amante
como não dizê-la
sem tê-la
como não evocá-la
sem amá-la
sem tempo
ou julgamento?
Este blog busca problematizar a Realidade mediante a expressão de linhas múltiplas e signos dispersos.
E se realmente gostarem? Se o toque do outro de repente for bom? Bom, a palavra é essa. Se o outro for bom para você. Se te der vontade de viver. Se o cheiro do suor do outro também for bom. Se todos os cheiros do corpo do outro forem bons. O pé, no fim do dia. A boca, de manhã cedo. Bons, normais, comuns. Coisa de gente. Cheiros íntimos, secretos. Ninguém mais saberia deles se não enfiasse o nariz lá dentro, a língua lá dentro, bem dentro, no fundo das carnes, no meio dos cheiros. E se tudo isso que você acha nojento for exatamente o que chamam de amor? Quando você chega no mais íntimo, No tão íntimo, mas tão íntimo que de repente a palavra nojo não tem mais sentido. Você também tem cheiros. As pessoas têm cheiros, é natural. Os animais cheiram uns aos outros. No rabo. O que é que você queria? Rendas brancas imaculadas? Será que amor não começa quando nojo, higiene ou qualquer outra dessas palavrinhas, desculpe, você vai rir, qualquer uma dessas palavrinhas burguesas e cristãs não tiver mais nenhum sentido? Se tudo isso, se tocar no outro, se não só tolerar e aceitar a merda do outro, mas não dar importância a ela ou até gostar, porque de repente você até pode gostar, sem que isso seja necessariamente uma perversão, se tudo isso for o que chamam de amor. Amor no sentido de intimidade, de conhecimento muito, muito fundo. Da pobreza e também da nobreza do corpo do outro. Do teu próprio corpo que é igual, talvez tragicamente igual. O amor só acontece quando uma pessoa aceita que também é bicho. Se amor for a coragem de ser bicho. Se amor for a coragem da própria merda. E depois, um instante mais tarde, isso nem sequer será coragem nenhuma, porque deixou de ter importância. O que vale é ter conhecido o corpo de outra pessoa tão intimamente como você só conhece o seu próprio corpo. Porque então você se ama também.
Caio Fernando Abreu
O EXTERMÍNIO DA ALMA - 3
Muita gente na rua perfilada em ordem unida. O rosto do automóvel e das carretas arreganha estradas perdidas. Todo dia a ladainha: gestos ferozes e partos à força. A alma é pega de surpresa em suas andanças miúdas. Ora, se a sua matéria é o invisível mais visível, algo passa e deixa um perfume de amazonas impregnar o ar. A extensão da alma é, então, adornada pelos tesouros do amor. A Terra exulta. Para além-aqui oceanos, rios e luares encantam o corpo: camuflagem para poder existir.
A.M.
No meu julgamento, o sexo foi mais bem entendido, mais bem expressado no mundo pagão, no mundo dos primitivos e no mundo religioso. No primeiro, era exaltado no plano estético; no segundo, no plano mágico, e no terceiro, no plano espiritual. Em nosso mundo, onde apenas o nível bestial impera, o sexo funciona num vazio.
(...)
Henry Miller
PRESENÇA
É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.
Mario Quintana
NA CONTRA-CORRENTE
Na clínica da diferença em psiquiatria, o conceito de desejo "empurra" o processo terapêutico para um tempo de instabilidades existenciais. Isto significa considerar 1-a subjetividade como o mundo social que se expressa em sintomas clínicos; 2-o tempo como passagem, travessia, devir, irreversibilidade. Portanto, o que está "doente" é, antes, o mundo em que o paciente vive, o qual, na verdade, é ele mesmo. Este mundo é uma trama de instituições que dá forma e consistência afetiva à subjetividade. Produz sentido, mesmo o mais torpe. Daí ser preciso, com sabedoria, prudência, técnica e delicadeza, dissolvê-lo em prol de linhas desejantes voltadas à criatividade. Trata-se da Arte, não como monumento ou mercadoria, mas como estilo, singularidade, o "viver" para além dos códigos estabelecidos. Quem arrisca?
A.M.
IHU – Segundo o próprio Deleuze, a filosofia não possui compromisso com o consenso. Você concorda?
André Araujo – Sim, isso é bem importante. Refletia sobre essa ideia da comunicação como consenso, mas preciso também fazer essa observação de que o consenso para Deleuze é a coisa que mais produz ojeriza. Ele é um pensador que tem um paradoxo muito importante que é essa predileção por uma dimensão do conflito como alguma forma de apaziguar qualquer problema. O consenso sempre soa para Deleuze como forma de imposição de uma perspectiva dominante, por isso ele nunca vai buscar em seu pensamento uma forma de ser normativo ou como um mapeamento do modo como uma sociedade se articula e pensa.
Pelo contrário, sempre vai buscar experiências mais marginais, que estão à borda, do modo como vivemos coletivamente e que colocam em xeque os modos de vida mais estabelecidos, porque, para Deleuze, os modos de vida que temos são apenas um hábito. Não há, para ele, razão metafísica alguma para vivermos como vivemos. Há razões políticas para viver como vivemos, mas não há nada próprio no tecido do mundo que impeça que a gente constitua um modo de viver absolutamente distinto do modo como a gente vive agora.
Instituto Humanitas Usisinos, IHU, entrevista com André Araújo, julho de 2021
POÉTICA DOS ENCONTROS
Uma linguagem poética alumia os corpos que antes se arrastavam como organismos em ordem unida. Deste modo desarruma os enunciados da razão esperta em prol dos afetos que circulam sem fim. Não é o poeta o único que expressa a "sua" poesia, mas sim as multiplicidades: elas formigam e pulsam em horas desérticas e transitórias. Habitam a chamada "pessoa humana"e se nutrem de micro-signos no círcuito enlouquecido do viver por viver. Todas as palavras são embaralhadas e extraídas ao acaso dos encontros. E tudo recomeça sob a égide da criação do tempo em meio às velocidades mais estonteantes dos dias tecnológicos que correm. Uma poética da diferença afirma a superioridade dos corpos lisos e inocentes sobre organismos endurecidos pelas agências do poder invisível. Só assim o ato de pensar, encharcado de afeto e mistério, nasce a cada segundo. Como um raio.
A.M.
SOBRE O MÉTODO DA DIFERENÇA
O psiquiatra se despersonaliza. Torna-se algo que se torna outra coisa.Vive nos e dos paradoxos da linguagem que o empurram a encontrar o paciente, o mundo, o cosmos. Não compreende o que se passa. Perplexo, interroga e interroga-se. Dança e entoa em silêncio cânticos extraídos do fundo de vielas existenciais. Não busca uma ontologia da psicose e/ou dos transtornos mentais. Ele talvez consiga ser um feiticeiro da modernidade técnica, criando linhas de pura alegria (ainda e principalmente) nas quedas e surtos dos pacientes e de si mesmo. O método da diferença traz essa possibilidade para o interior da clínica. Os fármacos podem (claro que sim!) ser parceiros numa empreitada sem signos prévios. Use e controle essa droga lícita, sabendo que ela pode se tornar ilícita se atentar contra a criatividade do viver. Não só a química, mas todo e qualquer objeto pode induzir a uma dependência abjeta. O psiquiatra-feiticeiro não é esse objeto. O psiquiatra remedeiro, sim. Este se alimenta de subjetividades enrijecidas, esvaziadas, ocas, trastes apelidados de pacientes.É preciso um combate incessante contra a máquina farmacológica. O fármaco é apenas um elemento prático-terapêutico.Um devir-feiticeiro é outra coisa, um estilo: a sensibilidade, a intuição, a percepção do invisível, o senso de observação, a escuta do silêncio, a espreita, o olhar de lince, a pele em brasa, a expressão da flor, um devir-poesia, devir-arte, etc, todo um conjunto de dispositivos... práticos...
A.M.
UM ENCONTRO DIFÍCIL
O organismo físico-químico, visível, palpável e mensurável, é o objeto da medicina, onde ela de fato intervêm, e, caso obtenha êxito terapêutico (principalmente por isso), retira mais-valia de poder. No entanto, junto a esse organismo e fora da relação linear causa-efeito, funciona o corpo das intensidades livres. Não é visível, não é palpável, não é mensurável, nem segue os mapas fisiopatológicos vistos em exames por imagem. Distinto da consciência que sempre obedece ordens, ele não obedece, é rebelde e alterna com o organismo fluxos atuais e/ou antigos de afetos nômades. Tampouco é o corpo que a psicanálise entronizou como "a outra cena". São fluxos que impulsionam a vida, que são a vida : potência sem forma. Em face desse real estado de coisas, tal corpo traz grandes dificuldades à pesquisa. Como acessar algo que não se vê, não se toca nem se mede? Na clinica psicopatológica há um "corpo que não aguenta mais" e que se expressa em sintomas álgicos (por exemplo, cefaléias crônicas - simbolismo do órgão?), mas também como multiplicidade de sintomas que resumimos sob o nome de angústia. Aqui não se trata de usar a psicanálise como doutrina ou método de trabalho, mas de "roubar" deste saber a hipótese de um inconsciente para além da representação de papai-mamãe. Um inconsciente "órfão, ateu e anarquista", inconsciente-corpo. Não é fácil encontrá-lo.
A.M
A EXPERIÊNCIA POÉTICA
Quem sonda o verso escapa ao ser como certeza, reencontra os deuses ausentes, vive na intimidade dessa ausência, torna-se responsável por ela, assume-lhe o risco e sustenta-lhe o favor. Quem sonda o verso deve renunciar a todo e qualquer ídolo, tem que romper com tudo, não ter a verdade por horizonte nem o futuro por morada, porquanto não tem direito algum `a esperança, deve, pelo contrário, desesperar. Quem sonda o verso morre, reencontra a sua morte como abismo.
(...)
Maurice Blanchot - in O espaço literário.
CRU E CRUEL
Falamos de instituições como formas abstratas de relações sociais que se materializam em práticas. A subjetividade é uma instituição. O machismo é uma instituição. Nenhuma instituição funciona só. Sempre em tramas, sempre em rede, elas se aliam ou combatem umas às outras. Consistem de relações de forças, poderes. (Foucault). Há que se despir, portanto, de todo e qualquer humanismo ao analisá-las, e principalmente, vivenciá-las.
A.M.
O EXTERMÍNIO DA ALMA - 2
A alma é grandiosa. Ultrapassa a fronteira da pele em direção a países e terras distantes. No entanto, vive aqui na Terra entre os azuis cinzentos das metrópoles rurais. Chame-a pelo nome e ela responderá com aceno de pássaro. Está cercada de ilhas e algorítmos. Não fala, só inaugura o silêncio dos gritos e a pulsação das marés. De todas as partes as notícias dizem que ela escondeu de si mesma o segredo da criação. Uma usina de afetos é o seu sustento até que o céu desabe. Não há mais clima. Apesar disso, continua sensível e veloz.
A.M.
SABOTAGEM DO DESEJO
É importante que os termos "senso comum" e "bom senso" sejam concebidos como práticas sociais, e não como conceitos. É que os conceitos podem ser tomados como abstração, idealização, mas as práticas sociais não. Isso é fácil de verificar na psiquiatria fármaco-biológica. Ao prescrever um remédio químico, o psiquiatra intervêm na vida concreta do paciente, incluindo efeitos terapêuticos, colaterais, adversos, sugestivos, transferenciais, etc. São biopoderes que produzem subjetividades. Daí, práticas. O Senso Comum e o Bom Senso funcionam embutidos em discursos grávidos de verdades, sejam científicas, tecnológicas, religiosas, filosóficas, e tanto mais seja necessário o controle. Tal controle é o índice clínico e semiótico para se poder dizer; "Ah, ele está melhor!" No entanto, para além da psiquiatria em sua explicitude clínica e do seu primarismo teórico, as psicoterapias lastreadas pelo senso comum e pelo bom senso também geram efeitos de controle mental não tão explícitos mas também contrários à produção desejante de singularidades existenciais.
A.M.