quinta-feira, 30 de julho de 2015

ESPERANÇAS CHEGANDO


Um homem estava anoitecido.
Se sentia por dentro um trapo social.
Igual se, por fora, usasse um casaco rasgado
e sujo.
Tentou sair da angústia
Isto ser:
Ele queria jogar o casaco rasgado e sujo no
lixo.
Ele queria amanhecer.

Manoel de Barros

quarta-feira, 29 de julho de 2015

DEFEITOS

O ser humano é cego para os próprios defeitos. Jamais um vilão do cinema mudo proclamou-se vilão. Nem o idiota se diz idiota. Os defeitos existem dentro de nós, ativos e militantes, mas inconfessos. Nunca vi um sujeito vir à boca de cena e anunciar, de testa erguida: - Senhoras e senhores, eu sou um canalha.
(...)
Nelson Rodrigues

terça-feira, 28 de julho de 2015

SERÁ POSSÍVEL?


REMÉDIO SEM REMÉDIO

Ele deixou cair no cinzeiro o cigarro que se apagara.
- Uma vez, quando era menor ainda do que você, brincava com um espelhinho à beira de um poço da minha casa, eu morava numa fazenda meio selvagem. O poço estava seco e era bonito o reflexo do espelhinho correndo como se fosse uma lanterna pela parede escura, sabe como é, não?
Mas de repente o espelho caiu e se espatifou lá no fundo.
Fiquei desesperado, tinha vontade de me atirar lá dentro para buscar os cacos do meu espelho. Então alguém - acho que foi meu pai - levou-me pela mão e me consolou dizendo que não adiantava mais nada porque mesmo que eu juntasse, um por um, os cacos todos, nunca mais o espelho seria como antes. Sabe, Virgínia, vejo Laura como aquele espelho despedaçado: a gente pode ir lá no fundo e colar os cacos, mas tudo então o que ele vier a refletir, o céu, as árvores, as pessoas, tudo, tudo estará como ele próprio, partido em mil pedaços.
Veja bem, triste não é o que possa vir a acontecer...a morte, por exemplo. Triste é o que está acontecendo neste instante. Ela tem a cabeça doente, o coração doente...E não há remédio. Só o sopro lá dentro é que continua perfeito como o espelho, antes de cair no chão.
(...)
Lygia Fagundes Telles

segunda-feira, 27 de julho de 2015

VIAGENS REAIS

Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos Impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim,— flagelos e delícias, — desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo.
(...)
Machado de Assis

WILLIAM TURNER


domingo, 26 de julho de 2015

DE ODEBRECHT PARA ODEBRECHT

Entre os emails de Marcelo Odebrecht interceptados pela PF, há um em que ele avisa a mulher, Isabela, que um líder sindical irá jantar na casa deles.

Resposta de Isabela: "Se sujar minha toalha de linho ou pedir marmitex...vou pirar! Saudações sindicais? Não mereço."
(...)

Do Blog O Antagonista,26/07/2015,18:51 hs
A TRAPAÇA DA FÉ

Os teólogos dizem: isso são mistérios insondáveis. Ao que respondemos: são absurdos imaginados por vós próprios. Começais por inventar o absurdo, depois fazei-nos dele a imposição como mistério divino, insondável e tanto mais profundo quando mais absurdo. É sempre o mesmo procedimento: "creio"  porque é absurdo.
(...)
M. Bakunin

ORQUÍDEAS ETERNAS


O QUE SE PASSA NA CAMA

(O que se passa na cama
é segredo de quem ama.)

É segredo de quem ama
não conhecer pela rama
gozo que seja profundo,
elaborado na terra
e tão fora deste mundo
que o corpo, encontrando o corpo
e por ele navegando,
atinge a paz de outro horto,
noutro mundo: paz de morto,
nirvana, sono de pênis.

Ai, cama, canção de cuna,
dorme, menina, nanana,
dorme a onça suçuarana,
dorme a cândida vagina,
dorme a última sirena
ou a penúltima... O pênis
dorme, puma, americana
fera exausta. Dorme, fulva
grinalda de tua vulva.
E silenciam os que amam,
entre lençol e cortina
ainda úmidos de sêmen,
estes segredos de cama.


Carlos Drummond de Andrade
SAÚDE MENTAL

Os sintomas, como tais, não são nossos inimigos, mas nossos amigos; onde há sintomas, há conflito, e conflito indica sempre que as forças da vida, que pugnam pela harmonização e pela felicidade, ainda lutam. As vítimas de doença mental realmente arruinadas encontram-se entre os que parecem mais normais. 'Muitos dos que são normais, são-no porque se encontram tão bem adaptados ao nosso modo de viver, porque as suas vozes humanas ficaram reduzidas ao silêncio tão cedo em suas vidas, que nem porfiam, ou sofrem, ou exibem sintomas como o neurótico.' São normais, não no que se pode denominar no sentido restrito da palavra; são normais apenas em relação a uma sociedade imensamente anormal. O seu perfeito ajustamento a essa sociedade anormal dá a proporção de sua doença mental.
(...)
Aldous Huxley in O Admirável Mundo Novo

CELSO FONSECA e ROBERTA SÁ - A Voz do Coração


LOUCURA NORMAL

Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum — uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.
(...)
Edgar Allan Poe
Eram dez horas da noite. A lua estava cheia e minha vida não tinha sentido.

Charles Bukowski
VIAGEM  SEM VOLTA

Ele deixou cair no cinzeiro o cigarro que se apagara.
- Uma vez, quando era menor ainda do que você, brincava com um espelhinho à beira de um poço da minha casa, eu morava numa fazenda meio selvagem. O poço estava seco e era bonito o reflexo do espelhinho correndo como se fosse uma lanterna pela parede escura, sabe como é, não?
Mas de repente o espelho caiu e se espatifou lá no fundo.
Fiquei desesperado, tinha vontade de me atirar lá dentro para buscar os cacos do meu espelho. Então alguém - acho que foi meu pai - levou-me pela mão e me consolou dizendo que não adiantava mais nada porque mesmo que eu juntasse, um por um, os cacos todos, nunca mais o espelho seria como antes. Sabe, Virgínia, vejo Laura como aquele espelho despedaçado: a gente pode ir lá no fundo e colar os cacos, mas tudo então o que ele vier a refletir, o céu, as árvores, as pessoas, tudo, tudo estará como ele próprio, partido em mil pedaços.
Veja bem, triste não é o que possa vir a acontecer...a morte, por exemplo. Triste é o que está acontecendo neste instante. Ela tem a cabeça doente, o coração doente...E não há remédio. Só o sopro lá dentro é que continua perfeito como o espelho, antes de cair no chão.

Lygia Fagundes Telles

GILLES DELEUZE: linhas de vida


CANALHA MILITANTE

A imprensa brasileira sempre foi canalha. Eu acredito que se a imprensa brasileira fosse um pouco melhor poderia ter uma influência realmente maravilhosa sobre o País. Acho que uma das grandes culpadas das condições do País, mais do que as forças que o dominam politicamente, é nossa imprensa. Repito, apesar de toda a evolução, nossa imprensa é lamentavelmente ruim. E não quero falar da televisão, que já nasceu pusilânime

Millôr Fernandes
VAZIO CHEIO

O sexo sem amor é uma experiência vazia. Mas como experiência vazia é uma das melhores.


Woody Allen

CHICO BUARQUE - Bom Conselho


IGUAIS?

Que todos os homens são iguais é uma proposição à qual, em tempos normais, nenhum ser humano sensato deu, alguma vez, o seu assentimento. Um homem que tem de se submeter a uma operação perigosa não age sob a presunção de que tão bom é um médico como outro qualquer. Os editores não imprimem todas as obras que lhes chegam às mãos. E quando são precisos funcionários públicos, até os governos mais democráticos fazem uma selecção cuidadosa entre os seus súbditos teoricamente iguais. 
Em tempos normais, portanto, estamos perfeitamente certos de que os Homens não são iguais. Mas quando, num país democrático, pensamos ou agimos politicamente, não estamos menos certos de que os Homens são iguais. Ou, pelo menos - o que na prática vem ser a mesma coisa - procedemos como se estivéssemos certos da igualdade dos Homens. 
Identicamente, o piedoso fidalgo medieval que, na igreja acreditava em perdoar aos inimigos e oferecer a outra face, estava pronto, logo que emergia novamente à luz do dia, a desembainhar a sua espada à mínima provocação. A mente humana tem uma capacidade quase infinita para ser inconsistente.

Aldous Huxley
BICHO, UM BICHO

(...) E se realmente gostarem? Se o toque do outro de repente for bom? Bom, a palavra é essa. Se o outro for bom para você. Se te der vontade de viver. Se o cheiro do suor do outro também for bom. Se todos os cheiros do corpo do outro forem bons. O pé, no fim do dia. A boca, de manhã cedo. Bons, normais, comuns. Coisa de gente. Cheiros íntimos, secretos. Ninguém mais saberia deles se não enfiasse o nariz lá dentro, a língua lá dentro, bem dentro, no fundo das carnes, no meio dos cheiros. E se tudo isso que você acha nojento for exatamente o que chamam de amor? Quando você chega no mais íntimo, No tão íntimo, mas tão íntimo que de repente a palavra nojo não tem mais sentido. Você também tem cheiros. As pessoas têm cheiros, é natural. Os animais cheiram uns aos outros. No rabo. O que é que você queria? Rendas brancas imaculadas? Será que amor não começa quando nojo, higiene ou qualquer outra dessas palavrinhas, desculpe, você vai rir, qualquer uma dessas palavrinhas burguesas e cristãs não tiver mais nenhum sentido? Se tudo isso, se tocar no outro, se não só tolerar e aceitar a merda do outro, mas não dar importância a ela ou até gostar, porque de repente você até pode gostar, sem que isso seja necessariamente uma perversão, se tudo isso for o que chamam de amor. Amor no sentido de intimidade, de conhecimento muito, muito fundo. Da pobreza e também da nobreza do corpo do outro. Do teu próprio corpo que é igual, talvez tragicamente igual. O amor só acontece quando uma pessoa aceita que também é bicho. Se amor for a coragem de ser bicho. Se amor for a coragem da própria merda. E depois, um instante mais tarde, isso nem sequer será coragem nenhuma, porque deixou de ter importância. O que vale é ter conhecido o corpo de outra pessoa tão intimamente como você só conhece o seu próprio corpo. Porque então você se ama também. 
Os homens precisam da ilusão do amor da mesma forma que precisam da ilusão de Deus. Da ilusão do amor para não afundarem no poço horrível da solidão absoluta; da ilusão de Deus, para não se perderem no caos da desordem sem nexo.
(...)
Caio Fernando Abreu

ALEXEY SLUSAR


ALUMBRAMENTO

O verdadeiro estado amoroso supõe um estado de semiloucura correspondente, de obsessão, determinando uma desordem emocional que vai da mais intensa alegria até à mais cruciante dor, que dá entusiasmo e abatimento, que encoraja e entibia; que faz esperar e desesperar, isto tudo, quase a um tempo, sem que a causa mude de qualquer forma.
(...)
Lima Barreto
A VIDA PROFISSIONAL

Os banqueiros da grande bancária do mundo, que praticam o terrorismo do dinheiro, podem mais que os reis e os marechais e mais que o próprio Papa de Roma. Eles jamais sujam as mãos. Não matam ninguém: se limitam a aplaudir o espetáculo.
Seus funcionários, os tecnocratas internacionais, mandam em nossos países: eles não são presidentes, nem ministros, nem foram eleitos em nenhuma eleição, mas decidem o nível dos salários e do gasto público, os investimentos e desinvestimentos, os preços, os impostos, os lucros, os subsídios, a hora do nascer do sol e a freqüência das chuvas.
Não cuidam, em troca, dos cárceres, nem das câmaras de tormento, nem dos campos de concentração, nem dos centros de extermínio, embora nesses lugares ocorram as inevitáveis conseqüências de seus atos.
Os tecnocratas reivindicam o privilegio da irresponsabilidade:
— Somos neutros — dizem.

Eduardo Galeano
um   pouco  de  ar
senão eu  sufoco
deleuze  respira

respira  deleuze
esta  canção  doce

e  infernal


A.M.

HERBIE HANCOCK´S Imagine - Pink, Seal, India Arie


SEM SONHOS

Tudo em meu torno é o universo nu, abstrato, feito de negações noturnas. Divido-me em cansado e inquieto, e chego a tocar com a sensação do corpo um conhecimento metafísico do mistério das coisas. Por vezes amolece-se-me a alma,e então os pormenores sem forma da vida quotidiana bóiam-se-me à superfície da consciência, e estou fazendo lançamentos à tona de não poder dormir. Outras vezes, acordo de dentro do meio-sono em que estagnei, e imagens vagas, de um colorido poético e involuntário, deixam escorrer pela minha desatenção o seu espetáculo sem ruídos. Não tenho os olhos inteiramente cerrados. Orla-me a vista frouxa uma luz que vem de longe; são os candeeiros públicos acesos lá em baixo, nos confins abandonados da rua.
(....)
Fernando Pessoa in Livro do Desassossego

sábado, 25 de julho de 2015

MOVIMENTOS INVISÍVEIS

A experiência poética faz a realidade tornar-se "real". Ela é o real-virtual composto por multiplicidades substantivas, melancolias não psiquiatrizáveis e alegres.  Um grande equívoco existe ao associar a poesia ao devaneio, ao sonho, ao impossível, à fantasia. Isso não passa de caricatura, por vezes, vaidosa, de um imobilismo essencial à manutenção dos dias seriais e normais.  Ao contrário, a poesia é o real concreto, mesmo cruel, o devir-intenso. E nem é preciso ser poeta para percebê-lo e/ou vivê-lo.

A.M.

ANTONIO BERNI


FRAUDES BRANCAS *

A grande limitação epistemológica, ou seja, a "doença" profunda da Medicina, chama-se mecanicismo. Trata-se de um pensamento raso em termos conceituais. Ele se baseia numa suposta linearidade causa-efeito na ocorrência das doenças. No entanto, esse fato não provocaria tantos estragos no paciente se o lugar social da Medicina não fosse o de um poder consolidado e inserido "naturalmente" na realidade do capital. Não falamos do capital somente como determinante econômico, mas sobretudo como operador semiótico (captura dos órgãos =significados fixos), de onde e por onde a Clínica Médica passa a ser utilizada como instrumento de controle dos corpos e, daí, uma produção incessante de lucro. Na esteira dessas questões, a psiquiatria contemporânea desponta como a especialidade médica que melhor traduz o reducionismo violento sobre o paciente, haja vista a ausência de objetos sólidos e visíveis na sua prática. Ninguém nunca "pegou" na mente, ou ninguém nunca "viu" a angústia ou a fobia ou o pânico ou o delírio de um paciente. É uma constatação - óbvia - mas que não aparece nas pesquisas etiológicas (causas das doenças) e talvez por isso elas constituam um campo tão pobre em investimentos e resultados. Há, pois, uma vontade política de querer fazer com que as coisas continuem para sempre como são. Ou como estão. O Medo, produto social, sustenta esse estado de coisas. Ou mais amplamente, todos os afetos baixos (que diminuem a potência de existir) são agenciados no mundo da mercadoria como antídotos subjetivos contra qualquer ideia de que um mundo não-capitalístico possa existir, ou sequer ser imaginado. Toneladas de tele-imagens virtuais, midiáticas, performáticas, linguageiras, são lançadas a cada minuto em todos, em tudo, em todas as partes, todos os lugares, tempos do cotidiano tecnológico cronometrado e apaixonantemente passivo.

A.M.

*para Simone, com parabéns pelo dia!
DOBRAS

Realmente o tom geral devia estar pessimista. O pessimismo passou, mas o bom propósito não: farei o possível para não amar demais as pessoas, sobretudo por causa das pessoas. Às vezes o amor que se dá pesa, quase como uma responsabilidade na pessoa que o recebe. Eu tenho essa tendência geral para exagerar, e resolvi tentar não exigir dos outros senão o mínimo. É uma forma de paz... Também é bom porque em geral se pode ajudar muito mais as pessoas quando não se está cega pelo amor.
(...)
Clarice Lispector
Resista a tudo, menos a tentação.

Oscar Wilde

GRANDES ESCRITOS


EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO

Executivo da OAS negocia delação sobre Lula 

Ex-presidente da construtora OAS, Léo Pinheiro negocia com o Ministério Público Federal um acordo de delação. Alcançado pela Operação Lava Jato, Léo passou seis meses recolhido a um xilindró em Curitiba. Hoje, arrasta uma tornozeleira eletrônica em prisão domiciliar. Sob o risco de amargar uma condenação que pode devolvê-lo à cadeia, Léo se dispõe a fornecer provas de que Lula patrocinou o esquema que desviou bilhões dos cofres da Petrobras.

Em sua última edição, que vai às bancas neste final de semana, a revista Veja conta que, em troca de benefícios judiciais, os advogados de Léo Pinheiro, devidamente autorizados pelo cliente, ajustam com a Procuradoria detalhes do acordo de delação que pode estilhaçar o bordão “eu não sabia”. Operador da OAS, Léo tornou-se amigo e confidente de Lula. Em privado, diz que o ex-presidente petista beneficiou-se diretamente dos desvios praticados na Petrobras. A ver.
(...)
Blog do Josias,24/07/2015, 22:39 hs
HUMANO

Agora pergunto-lhe: o que podemos esperar do homem enquanto criatura dotada de tão estranhas qualidades? Faça chover sobre ele todos os tipos de bênçãos terrenas; submerja-o em felicidade até acima da cabeça, de modo que só pequenas bolhas apareçam na superfície dessa felicidade, como se em água; dê a ele uma prosperidade econômica tamanha que nada mais lhe reste para ser feito, exceto dormir, comer pão-de-ló e preocupar-se com a continuação da história mundial — mesmo assim, por pura ingratidão, por exclusiva perversidade, ele vai cometer algum ato repulsivo. Ele até mesmo arriscará perder o seu pão-de-ló e desejará intencionalmente o mais depravado lodo, o mais antieconômico absurdo, simplesmente a fim de injetar o seu fantástico e pernicioso elemento no âmago de toda essa racionalidade positiva.
(...)
Fiódor Dostoiévski
A RECUSA

- Eu? - exclamou Tompkins. - Você me chama de vadio porque levo uma vida um tanto equilibrada e encontro tempo para fazer coisas interessantes? Porque me divirto tanto quanto trabalho e me recuso a transformar-me num escravo monótono, enfadonho?

F. Scott Fitzgerald

sexta-feira, 24 de julho de 2015

NEY MATOGROSSO - Sangue Latino


LEVEM-ME

Levem-me numa caravela,
Numa velha e doce caravela,
Na proa, ou se quiserem, na espuma,
E me percam, longe, longe.

No elo de uma outra era,
No veludo ilusório da neve,
No fôlego de alguns cães reunidos,
Na multidão de cansadas folhas mortas.

Levem-me sem me quebrar, nos beijos,
Nos peitos que se erguem e respiram,
Sobre os tapetes das palmas e seu sorriso,
Em corredores de longos ossos, e articulações.

Levem-me, ou melhor, enterrem-me.


Henri Michaux
MUDAR

Nunca é tarde demais para abandonar nossos preconceitos. Não se pode confiar às cegas em nenhuma maneira de pensar ou de agir, por mais antiga que seja. O que hoje todo mundo repete ou aceita em silêncio como verdade amanhã pode se revelar falso, mera bruma de opinião que alguns tomam como uma nuvem de chuva que fertilizaria seus campos
(...)
Henry David Thoreau

JOAN MIRÓ


BIS

O juiz Sérgio Moro, da 13ª Vara da Justiça Federal do Paraná, decretou nesta sexta-feira (24) um novo pedido de prisão de preventiva contra o presidente da Odebrecht, Marcelo Odebrecht, preso no mês passado durante a deflagração da 14ª da operação Lava Jato. Segundo o despacho de Moro, documentos do governo suíço indicam que Odebrecht controlava e alimentava contas secretas no exterior mantidas por dirigentes da Petrobras.
(...)
Do UOL, em Brasília,24/07/2015,12:35 hs
PARA SEMPRE

Como uma pessoa pode gostar de ser acordada diariamente pelo despertador às 6h30, pular da cama, se vestir rápido, comer depressa, cagar, mijar, escovar os dentes, pentear o cabelo, lutar contra um imenso engarrafamento para chegar a um lugar onde essencialmente se faz muito dinheiro para outra pessoa e ainda ter que agradecer por essa oportunidade?
(...)
Charles Bukowski
A PALAVRA MÁGICA

Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra


Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 23 de julho de 2015

A MÚSICA segundo Tom Jobim


VIAGENS DE MIGUEL

A "proposta" deleuziana traz um fascínio que produz efeitos de sentido: o "personagem conceitual". Talvez porque ele inspire uma proximidade com a vida, o que nos expõe a radicalidade, extremos... Viver por viver, viver para viver, isso está na "linha-criança" com tal nitidez, com tal perspicácia, com tal verdade, que assombra espíritos tidos e lidos como mais lúcidos, entenda-se, mais amadurecidos, racionais e objetivos. Uma bobagem. Em suma, são portadores do senso comum. Mas, aqui, não se trata da razão esperta. Trata-se de outra coisa, outro universo de sentido, a criança, ou mais precisamente, trata-se de um devir-criança o  que assola  propriedades privadas (mesmo as do eu) e nos constitui livres, como no caso "Miguel". Miguel tem 4 anos e 4 meses e em tão pouco tempo, provocou um despedaçamento subjetivo que me fez e me faz ser outro sendo eu. Paradoxos à solta. Miguel não é um amor, é o amar, o amar como experimentação inocente. Tal paradoxo só é possível, só se torna possível, se Miguel for impessoalizado e substituído por um processo de vida que transporte o desejo para muito além das paragens humanas intoxicadas por um humanismo raso.  Miguel me faz pensar o pensamento sem imagem, e isso ninguém quase ninguém saca, talvez o meu amigo Isac.

A.M. 

GILLES DELEUZE - O Abecedário - "B" de Bebida


SEM DESPERTAR

Convém não facilitar com os bons, convém não provocar os puros. Há no ser humano, e ainda nos melhores, uma série de ferocidades adormecidas. O importante é não acordá-las.
(...)
Nelson Rodrigues

quarta-feira, 22 de julho de 2015

COMO  FAZER A DIFERENÇA?

(...) Tirar a diferença de seu estado de maldição parece ser, assim, a tarefa da filosofia da diferença. Não poderia a diferença tornar-se um organismo harmonioso e relacionar a determinação com outras determinações numa forma, isto é, no elemento coerente de uma representação orgânica? Como "razão", o elemento da representação tem quatro aspectos principais: a identidade na forma do conceito indeterminado, a analogia na relação entre conceitos determináveis últimos, a oposição na relação das determinações no interior do conceito, a semelhança no objeto determinado do próprio conceito. Estas formas são como que as quatro cabeças ou os quatro liames da mediação. Diz-se que a diferença é "mediatizada" na medida em que se chega a submetê-la à quadrupla raiz da identidade e da oposição, da analogia e da semelhança. A partir de uma primeira impressão (a diferença é o mal), propõe-se "salvar" a diferença, representando-a e, para representá-la, relaciona-la às exigências do conceito em geral.
(...)
Gilles Deleuze in Diferença e Repetição
         eu sei que errei
mas prometo
nunca mais
usar a palavra certa


Nicolas Behr

MANABU MABE


TUDO DE NOVO NO FRONT

Existe a Odebrecht e existe a “Odebrecht”. Existe a maior empreiteira do país e existe tudo o que está implícito quanto se diz “Odebrecht”. É uma entidade além dos canteiros de obras. É o poder sem trono, que usa o Brasil como laboratório dos seus excessos.

A “Odebrecht” está furiosa com a divulgação das mensagens que a Polícia Federal fisgou no celular do seu presidente, Marcelo Odebrecht. Acha que foi um desserviço. Algo que apenas confunde a opinião pública com interpretações distorcidas e descontextualizadas.

Os textos revelam a inquietação do mandachuva da Odebrecht com a Lava Jato. Neles, encontram-se preciosidades como a referência a um Plano B associado às iniciais da operação policial: LJ. Está escrito “trabalhar para parar/anular (dissidentes PF…)”.

Sérgio Moro, juiz da Lava Jato, deu prazo para que a empreiteira se explique. Achou “perturbadora” a insinuação de que silvérios da PF seriam usados numa trama para melar a apuração do escândalo que expõe as vísceras da promiscuidade que marca as relações do capital privado com o poder estatal.

O doutor Moro exagera. Apinhadas de referências a políticos e de orientações heterodoxas —“vazar doações de campanha”, “asseguraremos a família” e “vamos segurar até o fim”— as mensagens de Marcelo Odebrecht não são perturbadoras nem tranquilizadoras. São apenas dados de um fenômeno.

A Odebrecht conseguiu, por meio do seu presidente preso, a proeza de se dissociar das ações da “Odebrecht”, de se manter incólume a si mesma. O que as mensagens do celular do mandarim da Odebrecht informam, com outras palavras, é que a “Odebrecht”, espécie de benemérita das campanhas, considera-se indultada pelos serviços prestados à democracia. Seus negócios têm todo o direito de recorrer ao vale-tudo. E seus líderes não devem nada a ninguém. Muito menos explicações.

Blog do Josias,22/07/2015, 05:49 hs

Comentário 1 do Blog O cérebro MENTE - Dizer que as mensagens não são perturbadoras nem tranquilizadoras equivale a uma análise regida pelo enfoque fenomenológico, portanto, "apolítico",  "neutro", centrado no conceito idealista de consciência. Ao contrário, as mensagens são perturbadoras, sim!

Comentário 2 do Blog O cérebro MENTE - É espantoso o silêncio da grande imprensa brasileira à respeito da gravidade da situação!

terça-feira, 21 de julho de 2015

ELIS REGINA - Cartomante


AS DESTRUIÇÕES  NÃO  CHEGAM  SUFICIENTEMENTE RÁPIDO

A paixão não quer esperar, o trágico na vida de grandes homens está, frequentemente, não no seu conflito com a época e a baixeza de seus semelhantes, mas na sua incapacidade de adiar por um ou dois anos a sua obra; eles não sabem esperar.
(...)
Nietzsche

COXINHAS COCKTAIL...


segunda-feira, 20 de julho de 2015

A MISTIFICAÇÃO EDIPIANA

(...) E se escolhemos o exemplo da menos edipianizante dos psicanalistas, é para mostrar que esforço ela teve de fazer para adequar a produção desejante a Édipo, o que acontece principalmente com os psicanalistas vulgares, que nem sequer têm consciência do “movimento”. Não se trata de sugestão, trata-se de terrorismo. Melanie Klein escreve: “Quando Dick veio à minha casa pela primeira vez, não manifestou emoção alguma quando a ama o confiou a mim. Quando lhe mostrei os brinquedos que tinha preparado, ele os olhou sem o menor interesse. Peguei um grande trem que pus ao lado de um trem menor e os designei com o nome de ‘trem papai’ e de ‘trem Dick’. Então, ele pegou o trem que eu tinha chamado ‘Dick’, empurrou-o até à janela e disse ‘Estação’. Eu lhe expliquei que a ‘estação é a mamãe; Dick entra na mamãe’. Ele largou o trem, correu pondo-se entre a porta interior e a porta exterior da sala, fechou-se dizendo ‘escuro’, e logo saiu a correr. Repetiu várias vezes esta manobra. Eu lhe expliquei que ‘está escuro na mamãe; Dick está no escuro da mamãe’... Quando sua análise progrediu... Dick descobriu também que o lavatório simbolizava o corpo materno e manifestou um extraordinário medo de se molhar com a água” Diga que é Édipo, senão você leva um tapa. Eis que o psicanalista já nem mais pergunta: “Para você, o que são suas máquinas desejantes?”, mas grita: “Responda papai- -mamãe quando lhe falo!”. Até Melanie Klein... Toda a produção desejante é então esmagada, assentada sobre as imagens dos pais, alinhada em estados pré-edipianos, totalizada no Édipo: a lógica dos objetos parciais é reduzida a nada. Édipo se torna, assim, a pedra de toque da lógica, pois, como pressentíamos de início, só aparentemente os objetos parciais são extraídos de pessoas globais; na realidade, eles são produzidos por extração num fluxo ou numa hylé não pessoal, com a qual comunicam ao se conectarem com outros objetos parciais. O inconsciente ignora as pessoas (grifos nossos). Os objetos parciais não são representantes de personagens parentais, nem suportes de relações familiares; são peças nas máquinas desejantes, remetem a um processo e a relações de produção irredutíveis, e são primeiros em relação ao que se deixa registrar na figura de Édipo.
(...)
G. Deleuze e F. Guattari in O anti-édipo
A FILA ANDA

A condenação imposta pelo juiz Sérgio Moro (foto) a três ex-executivos da Camargo Corrêa desce à crônica da Lava Jato como um marco histórico. No Brasil, não havia revelação capaz de abalar a reputação de uma eminência empresarial.

A simples prisão de um presidente, um vice-presidente e um presidente do Conselho de Administração da Camargo já deixara a plateia estupefacta. A anotação de três crimes no prontuário da troica (corrupção, lavagem de dinheiro e participação em organização criminosa) confirma que algo de diferente sucede no velho Brasil do indulto preventivo.

A sentença anota que a Camargo pagou R$ 50 milhões de propinas por dois contratos na Petrobras. As penas aos responsáveis foram salgadas: 15 anos e 10 meses de cadeia para dois executivos; 9 anos e 6 meses para o terceiro.

Beneficiados pela redução de pena obtida mediante delação, dois dos condenados permanecerão detidos em casa. Perto da impunidade que vicejava até aqui, a prisão domiciliar já é um avanço extraordinário.

Antes, não importava o tamanho da evidência. Ainda que desmascarada, a turma das empreiteiras frequentava as colunas sociais, não as sentenças judiciais. A elite empresarial brasileira está deixando de ser inimputável, eis a grande novidade.

Blog do Josias, 20/07/2015,17:08 hs
LIMITES

Tinha falsa lucidez dos loucos mas não chegaria a enlouquecer, falava em suicídio mas não chegaria a se matar.
(...)
Lygia Fagundes Telles

domingo, 19 de julho de 2015

Falsos médicos atestaram 60 óbitos na região de Sorocaba

Os falsos médicos que atuavam na região de Sorocaba, interior de São Paulo, assinaram pelo menos 60 declarações de óbito durante o período em que trabalharam na rede pública de saúde. Os atestados, apreendidos pela Polícia Civil durante a Operação Falsos Médicos, desencadeada na sexta-feira (17), contêm as assinaturas de quatro médicos que trabalharam usando registros falsos no CRM (Conselho Regional de Medicina). A maioria das certidões foi emitida nos últimos meses em hospitais e unidades de pronto atendimento de São Roque, Mairinque e Alumínio.

De acordo com o delegado seccional de Sorocaba, Marcelo Carriel, como as declarações foram dadas por pessoas que, em tese, não tinham habilitação para atestar a causa das mortes, os procedimentos terão de ser revistos. "A investigação vai dizer se esses óbitos são decorrentes de mau atendimento ou de causas diferentes daquelas que foram relatadas", disse.

Quatro profissionais não aptos a exercer a medicina já foram identificados - dois, Pablo do Nascimento Mussolin e Natani Thaisse Oliveira, estão presos. Também já foi identificada a médica que utilizava o nome de Cibele L., e outro profissional que não teve o nome divulgado. Um quinto caso está em investigação no âmbito da operação, que deve se estender a cidades da Grande São Paulo, onde os falsos médicos também teriam atuado.

A polícia investiga se os titulares dos registros no CRM sabiam do uso indevido. Os falsos médicos recebiam de R$ 40 a R$ 60 mil por mês por sua atuação em unidades conveniadas com o SUS (Sistema Único de Saúde). A Innova, empresa responsável pela contratação, informou em nota que as admissões foram feitas com base nos documentos pessoais e nos registros no CRM apresentados pelos supostos médicos. Segundo a empresa, não foi possível detectar as falsificações porque os documentos eram compatíveis com o prontuário inserido no site do CRM.

UOL Notícias, Sorocaba,19/07/2015.16:19 hs

BLADE RUNNER - I´ve seen things


TOMAR AS COISAS PELO MEIO

Todos os meus escritos ficaram inacabados; sempre novos pensamentos se interpunham, associações de idéias extraordinárias e inexcluíveis, de término infinito ... O Caráter da minha mente é tal que odeio os começos e os fins das coisas, porque são pontos definidos. 
(....)
Fernando Pessoa
QUEM  QUER?

Anarquista é, por definição, aquele que não quer ser oprimido, nem deseja ser opressor; é aquele que deseja o máximo bem-estar, a máxima liberdade, o máximo desenvolvimento possível para todos os seres humanos.
(...)
Errico Malatesta

JEREMY MANN



POESIA AGORA? 

a poesia é o corpo amordaçado, amaldiçoado

pela           religião
                  estado
                  escola
                  exército
                  direito
                  psiquiatria
                  ciência
                  polícia
                  política
                  medicina
                  universidade
                  saudade
                  senso comum
                  linguagem, 
                  linguística, etc

e por pequenos eus
boas pessoas
humanistas
gente do bem
do além
espiritualistas
lobistas da alma
consumistas
socialistas
comunistas
bons sensos
títulos de doutor
cadáveres gordos
proprietários do tempo
donos de florestas
chefes de departamentos
casais 
famílias
bancos
brancos
contas correntes
gerentes melífluos
tecnologias
progressos
prefeitos
governadores
presidentes
síndicos do meu tédio
mídias
ordens implícitas
missas
mísseis
elites
omissas e poderosas

a poesia é uma rosa
o seu corpo flagelado e humilhado
resiste


A.M.



À FLOR  DA PELE

Sentia vontade de chorar, mas não saía lágrima alguma. Era só uma espécie de tristeza, de náusea, uma mistura de uma com a outra, não existe nada pior. Acho que você sabe o que quero dizer, todo mundo, volta e meia, passa por isso, só que comigo é muito freqüente, acontece demais.
(...)
Charles Bukowski
VIDAMORTE

A pequena morte. Não nos provoca riso o amor quando chega ao mais profundo de sua viagem, ao mais alto de seu vôo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca gemidos e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e pensando bem não há nada de estranho nisso, porque nascer é uma alegria que dói. Pequena morte, chamam na França a culminação do abraço, que ao quebrar-nos faz por juntar-nos, e perdendo-nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia. Pequena morte, dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce.

Eduardo Galeano in O livro dos Abraços

MARC CARY SAN JOSE JAZZ WINTER FEST 2015


DIFÍCIL É PRODUZIR UM CORPO SEM ÓRGÃOS

"Atem-me se vocês quiserem". Nós não paramos de ser estratificados. Mas o que é este nós, que não sou eu, posto que o sujeito não menos do que o organismo pertence a um estrato e dele depende? Respondemos agora: é o CsO, é ele a realidade glacial sobre o qual vão se formar estes aluviões, sedimentações, coagulação, dobramentos e assentamentos que compõem um organismo — e uma significação e um sujeito. É sobre ele que pesa e se exerce o juízo de Deus, é ele quem o sofre. É nele que os órgãos entram nessas relações de composição que se chamam organismo. O CsO grita: fizeram-me um organismo! dobraram-me indevidamente! roubaram meu corpo! O juízo de Deus arranca-o de sua imanência, e lhe constrói um organismo, uma significação, um sujeito. É ele o estratificado. Assim, ele oscila entre dois pólos: de um lado, as superfícies de estratificação sobre as quais ele é rebaixado e submetido ao juízo, e, por outro lado, o plano de consistência no qual ele se desenrola e se abre à experimentação. E se o CsO é um limite, se não se termina nunca de chegar a ele, é porque há sempre um estrato atrás de um outro estrato, um estrato engastado em outro estrato. Porque são necessários muitos estratos e não somente o organismo para fazer o juízo de Deus. Combate perpétuo e violento entre o plano de consistência, que libera o CsO, atravessa e desfaz todos os estratos, e as superfícies de estratificação que o bloqueiam ou rebaixam.
(...)
G. Deleuze e F. Guattari in Mil Platôs, vol 3

ALEKSEY TCHERNIGIN


RIR ALTO

Quem de vós pode, ao mesmo tempo, rir e sentir-se elevado?
Aquele que sobe ao monte mais alto, esse ri-se de todas as tragédias, falsas ou verdadeiras.
Corajosos, despreocupados, escarninhos, violentos ― assim nos quer a sabedoria: ela é mulher e ama somente quem é guerreiro.
(...)
Friedrich Nietzsche
POETA MARGINAL? EU, HEIN?

não nasci em montes claros, não tenho nome completo, não sou professor, não consegui conciliar nada com a literatura, nunca publiquei nada. atualmente não resido em porto alegre, não me chamo eduardo veiga, não escrevo poesia há mais de 15 anos. não estou organizando meu primeiro livro, não sou graduado em letras, não acredito que a poesia seja necessária, não estou concluindo nenhum curso de pedagogia, não colaboro em nenhum suplemento literário, não estou presente em todos os movimentos culturais da minha terra, não sou membro da academia goiana de letras, não trabalho como assessor cultural da sec. meus pais não foram ligados ao cinema, não tenho tema preferido, não comecei a fazer teatro aos 12 anos. não me especializei em literatura hispano-americana, não tenho crônicas publicadas no república de lisboa. não passei minha infância em pindamonhangaba. não canto a esperança, não recebi nenhuma premiação em concurso de prosa e poesia, não tenho sete livros inéditos, não sou considerado um dos maiores poetas brasileiros, nunca fui convidado para dar palestras em universidades, não vejo poesia em tudo. não faço parte do grupo noigandres. não me interesso por literatura infantil, não sou casado com o poeta affonso ávila. na minha estréia não recebi o prêmio estadual de poesia, o crítico josé batista nunca disse nada a meu respeito, não sofri influência de bilac. não sou ativo, nem dinâmico, não me dedico com afinco à pecuária, não sou portador de vasto curriculum. não recebi menção honrosa no concurso de poesia ferreira gullar. não exerço nenhuma atividade docente, nem decente, não iniciei minha carreira literária no exército, não fui a primeira mulher eleita para a academia acreana de letras, não tenho poesias traduzidas para o francês, não estou incluído numa antologia a ser publicada no méxico. minha poesia não é corajosa, não gosto de arqueologia, walmir ayala nunca me considerou um revolucionário, nunca tentei compreender o homem na sua totalidade, não vim para o brasil com 5 anos de idade, não aprendi russo para ler maiakóvski. meu pai não é chileno, não sou virgem, sou capricórnio, não sou mãe de seis filhos, nunca escrevi contos, não me responsabilizo pelos poemas que assino, não sou irônico, não considero drummond o maior poeta da língua portuguesa, não gosto de andar de bicicleta, não sou chato. não sei em que ano aconteceu a semana de 22. não imito ninguém, não gosto de rock. não sou primo dos irmãos campos, não sou nem quero ser crítico literário, nunca me elogiaram, nunca me acusaram de plágio, não te amo mais. minha poesia nunca veiculou nada. não sei o que vocês querem de mim. não espero publicar nenhum romance, não sou lírico, não tenho fogo. não escrevi isto que vocês estão lendo.

Nicolas Behr in De Restos Vitais
               

O FUTURO ABERTO

Mas vocês, estudantes de todo o mundo, jamais se esqueçam de que por trás de cada técnica há alguém que a empunha e que esse alguém é uma sociedade e que se está a favor ou contra essa sociedade. E que mesmo quando não se fala de política em nenhum lugar, o homem político não pode renunciar a essa situação imanente à sua condição de ser humano. E que a técnica é uma arma e que quem sinta que o mundo não é tão perfeito quanto deveria ser deve lutar para que a arma da técnica seja posta a serviço da sociedade, e antes, por isso, resgatar a sociedade, para que toda técnica sirva à maior quantidade possível de seres humanos, e para que possamos construir a sociedade do futuro - qualquer que seja seu nome.
(...)
Che Guevara

sábado, 18 de julho de 2015

GRANDES ESCRITOS


OS TRÊS MAL-AMADOS

Olho Teresa, vejo-a sentada aqui a meu lado. A poucos centímetros da mim. A poucos centímetros, muitos quilômetros. Por que essa impressão de que precisaria de quilômetros para medir a distância, o afastamento em que a vejo nesse momento?

Olho Teresa como se olhasse o retrato de uma antepassada que tivesse vivido em outro século. Ou como se olhasse um vulto em outro continente, através de um telescópio. Vejo-a como se cobrisse a poeira tenuíssima ou o ar quase azul que envolvem as pessoas afastadas de nós muitos anos e léguas.

Posso dizer dessa moça a meu lado que é a mesma Teresa que durante todo o dia de hoje, por efeito do gás do sonho, senti pegada a mim?

Esta é a mesma Teresa que na noite passada conheci em toda intimidade? Posso dizer que a vi, falhei-le, posso dizer que a tive em toda intimidade? Que intimidade existe maior que a do sonho? A desse sonho que ainda trago em mim como um objeto que me pesasse no bolso?

Ainda me parece sentir o mar do sonho que inundou meu quarto. Ainda sinto a onda chegando à minha cama. Ainda me volta o espanto de despertar entre móveis e paredes que eu não compreendia pudessem estar enxutos. E sem nenhum sinal dessa água que o sol secou mas de cujo contacto ainda me sinto friorento e meio úmido (penso agora que seria mais justo, do mar do sonho, dizer que o sol o afugentou, porque os sonhos são como as aves, não apenas porque crescem e vivem no ar)

Teresa aqui está, ao alcance de minha mão, de minha conversa. Por que, entretanto, me sinto sem direitos fora daquele mar? Ignorante dos gestos, das palavras?

O sonho volta, me envolve novamente. A onda torna a bater em minha cadeira, ameaça chegar até a mesa. Penso que, no meio de toda essa gente de terra, gente que parece ter criado raízes, como um lavrador ou uma colina, sou o único a escutar esse mar. Talvez Teresa...

Talvez Teresa... sim, quem me dirá que esse oceano não nos é comum?

Posso esperar que esse oceano nos seja comum? Um sonho é uma criação minha, nascida de meu tempo adormecido, ou existe nele uma participação de fora, de todo o universo, de uma geografia, sua história, sua poesia?

O arbusto ou a pedra aparecida em qualquer sonho pode ficar indiferente à vida de que está participando? Pode ignorar o mundo que está ajudando a povoar? É possível que sintam essa participação, esses fantasmas, essa Teresa, por exemplo, agora distraída e distante? Há algum sinal que faça compreender termos sido, juntos, peixes de um mesmo mar?

Donde me veio a idéia de que Teresa talvez participe de um universo privado, fechado em minha lembrança, desse mundo que através de minha fraqueza eu me compreendi ser o único onde será possível cumprir os atos mais simples, como por exemplo caminhar, beber um copo de água, escrever meu nome, nada, nem mesmo Teresa.

João Cabral de Melo Neto
CREPÚSCULO 

O Sol ia afundando,
pouco a pouco,
no oceano ...
Não se deixou, porém,
impressionar ...
porque sabia
que a Terra
era redonda ...
e ele não estava assim
propriamente afundando,
mas rolando
pro lado de lá ...

( Pelo menos,
foi o que lhe contaram ... )


Zuca Sardan
PODER,PODER

Não se pode definir como virtude a matança dos próprios concidadãos, a traição aos amigos e a demonstração de falta de lealdade, de piedade, de consciência e de ideal moral: essas práticas podem conquistar poder ao príncipe, nunca a glória.
(...)
Maquiavel

sexta-feira, 17 de julho de 2015

TITÃS - Sonífera Ilha


O ROSTO

(...) Os manuais de rosto e de paisagem formam uma pedagogia, severa disciplina, e que inspira as artes assim como estas a inspiram. A arquitetura situa seus conjuntos, casas, vilarejos ou cidades, monumentos ou fábricas, que funcionam como rostos, em uma paisagem que ela transforma. A pintura retoma o mesmo movimento, mas o inverte também, colocando uma paisagem em função do rosto, tratando de um como do outro: "tratado do rosto e da paisagem". O close de cinema trata, antes de tudo, o rosto como uma paisagem, ele se define assim: buraco negro e muro branco, tela e câmera. Mas já as outras artes, a arquitetura, a pintura, até o romance: close que os anima inventando todas as correlações. E sua mãe é uma paisagem ou um rosto? Um rosto ou uma fábrica? (Godard). Não há rosto que não envolva uma paisagem desconhecida, inexplorada, não há paisagem que não se povoe de um rosto amado ou sonhado, que não desenvolva um rosto por vir ou já passado. Que rosto não evocou as paisagens que amalgamava, o mar e a montanha, que paisagem não evocou o rosto que a teria completado, que lhe teria fornecido o complemento inesperado de suas linhas e de seus traços?
(...)
G. Deleuze e F. Guattari in Mil Platôs, vol 5
Tenho muito o que fazer. Preparo o meu próximo erro.

Bertolt Brecht
...não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram.

Fernando Pessoa

AMY WINEHOUSE - You Know I ´m No Good


INTENSIDADES CRUAS


(...) Menos pela cicatriz deixada, uma ferida antiga mede-se mais exatamente pela dor que provocou, e para sempre perdeu-se no momento em que cessou de doer, embora lateje louca nos dias de chuva.

Eu não estou esperando por esse homem que não é só esse mas todos e nenhum como uma sede do que nunca bebi sem forma de águas apenas na estreiteza do aqui-agora eu espero por ele desde que nasci e desde sempre soube que na hora da minha morte misturando memórias e delírios e antevisões um pouco antes a última coisa que perguntarei seria um mas onde está mas onde esteve esse tempo todo (...) Então você sempre esteve aí uma vida de procuras sem te achar e silêncio para então morrer de morte morrida sem volta de vida gasta marcada de muitas cicatrizes de vida retalhada por muitos cortes mas nunca mortais a ponto de impedir este ridículo ate na hora de minha morte amém.

Seria tão bom se pudéssemos nos relacionar sem que nenhum dos dois esperasse absolutamente nada, mas infelizmente nós, a gente, as pessoas, têm, temos - emoções.

Ah, fumarás demais, beberás em excesso, aborrecerás todos os amigos com tuas histórias desesperadas, noites e noites a fio permanecerás insone, a fantasia desenfreada e o sexo em brasa, dormirás dias adentro, noites afora, faltarás ao trabalho, escreverás cartas que não serão nunca enviadas, consultarás búzios, números, cartas e astros, pensarás em fugas e suicídios em cada minuto de cada novo dia, chorarás desamparado atravessando madrugadas em tua cama vazia, não conseguirás sorrir nem caminhar alheio pelas ruas sem descobrires em algum jeito alheio o jeito exato dele, em algum cheiro estranho o cheiro preciso dele.

Fico vivendo uma vida toda pra dentro, lendo, escrevendo, ouvindo música o tempo todo.

Tenho tentado aprender a ser humilde. A engolir o nãos que a vida te enfia goela abaixo. A lamber o chão dos palácios. A me sentir desprezado-como-um-cão, e tudo bem, acordar, escovar os dentes, tomar café e continuar.

Penso: quando você não tem amor, você ainda tem as estradas.
(...)

Caio Fernando Abreu