domingo, 8 de julho de 2018

TRAIDOR OU TRAPACEIRO?

A traição é como o roubo, ela é dupla. Fizeram de Édipo em Colônia, com sua longa errância, o caso exemplar do duplo desvio. Mas Édipo é a única tragédia semita dos gregos. Deus que se desvia dos homens, que se desvia de Deus, é antes de tudo o tema do Antigo Testamento. É a história de Caim, a linha de fuga de Caim. É a história de Jonas: o profeta se reconhece pelo fato de tomar a direção oposta àquela que Deus lhe ordena, e com isso realiza a ordem de Deus melhor do que se tivesse obedecido. Traidor, ele tomou o mal sobre si. O Antigo Testamento é continuamente percorrido por essas linhas de fuga, linha de separação da terra e das águas. "Que os elementos deixem de se abraçar e se dêem as costas. Que o homem do mar se desvia de sua mulher humana e de seus filhos... Atravesse os mares, atravesse os mares, aconselhe o coração. Abandone o amor e o lar." Nas "grandes descobertas", nas grandes expedições não há apenas incerteza do que se vai descobrir, e conquista de algo desconhecido, mas a invenção de uma linha de fuga, e a potência da traição: ser o único traidor, e traidor de todos – Aguirre ou a cólera dos Deuses. Cristóvão Colombo, tal como o descreve Jacques Besse em um conto extraordinário, inclusive o devir mulher de Colombo. O roubo criador do traidor, contra os plágios do trapaceiro. O Antigo Testamento não é uma epopéia nem uma tragédia, é o primeiro romance, é assim que os ingleses o compreendem, como fundação do romance. O traidor é o personagem essencial do romance, o herói. Traidor do mundo das significações dominantes e da ordem estabelecida. É bem diferente do trapaceiro: o trapaceiro pretende se apropriar de propriedades fixas, ou conquistar um território, ou, até mesmo, instaurar uma nova ordem. O trapaceiro tem muito futuro, mas de modo algum um devir. O padre, o adivinho, é um trapaceiro, mas o experimentador, um traidor. O homem de Estado ou homem de corte, é um trapaceiro, mas o homem de guerra (não marechal ou general), um traidor. 
(...)

G. Deleuze e C. Parnet in Diálogos

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