sábado, 28 de novembro de 2020

EM NOME DA CIÊNCIA

O corpo vivo, sensível aos magnetizadores, charlatães e outros efeitos placebo, cria obstáculo à conduta experimental, que exige a criação de corpos com o poder de dar testemunho da diferença entre as "verdadeiras causas" e as aparências destituídas de interesse. A medicina, que   extrai sua legitimidade do modelo teórico-experimental, tende a remeter esse obstáculo àquilo que resiste "ainda", mas que um dia se submeterá. O funcionamento efetivo da medicina, definido por uma rede de restrições administrativas, gestionárias, industriais, profissionais, privilegia sistematicamente o investimento pesado, técnico e farmacêutico, pretenso valor do futuro quando o obstáculo estará dominado. O médico, quer não quer se assemelhar a um charlatão, vive com mal-estar a dimensão taumatúrgica de sua atividade. O paciente, acusado de irracionalidade, intimado a se curar pelas "boas" razões, hesita. Onde, nesse emaranhado de problemas, de interesses, de constrangimentos, de temores, de imagens, está a "objetividade"? O argumento "em nome da ciência" se encontra por toda a parte, mas não pára de mudar de sentido.


Isabelle Stangers - in A invenção das ciências modernas

sexta-feira, 27 de novembro de 2020


 

DEVIR-ALUNO


1-A máquina binária -  Antes da pessoa do professor e do aluno existe a máquina binária do ensino obrigatório que estabelece as condições organizacionais para  aprender e ensinar. Diz-se o que é aprender e o que é ensinar, e esse enunciado implícito é aceito como um fato natural. A boa vontade de um professor em ser um bom mestre (=passar os conteúdos), bem como a disposição do aluno em aprender(=acumular os conteúdos), não significa que o pensamento esteja presente. Não significa também que haja criação ou produção de conhecimento, mesmo que o ensino esteja acoplado a alguma pesquisa. Há outras variáveis em jogo.  Tais variáveis  vêm da instituição educacional e superpõem-se  sobre o ensino, sobre o ato de ensinar, como se ensinar e educar fossem a mesma coisa. Educar remete à Educação, à forma-Educação, poderosa instituição milenar que se reproduz  em práticas escolares; este é  o seu ponto de aplicação talvez mais efetivo,  a  superfície de inscrição do desejo de saber, aí onde a materialidade da aula  encontra  uma  expressão acabada e direta. Ou seja: o professor é quem ensina porque sabe; o aluno é quem aprende porque não sabe.

É a máquina binária professor-aluno   funcionando em toda a parte onde existe escola. Não  se trata, pois, de considerar as pessoas, boas intenções  etc,  ao jeito humanista de ver as coisas.  A máquina produz as pessoas, ou melhor, as pessoas   são peças que se ligam umas às outras para a produção de subjetividades em série, prontas para o Mercado. Isto não significa que, em termos da experiência do professor e da experiência do aluno, haja uma passividade em relação ao que acontece em torno. Pelo contrário, a pessoa, tendo  um  universo de  representações e  imagens ao seu dispor, mormente quando estimulada  pela atividade intelectual, acredita estar agindo, quando é agida. Acredita estar controlando, quando é controlada. Acredita estar mandando quando é mandada. Tudo ocorre num campo invisível, onde só as forças tem acesso e funcionam em regimes subjetivos ou de subjetivações. A pessoa é o indivíduo e este é o sujeito, num encadeamento natural  para que  o ato de ensinar/aprender  se faça sem problemas. Esta  máquina está ligada a outras máquinas, isto é,  a instituições:  são formas sociais, cristalizações de processos, outrora, talvez, de criação. A escola, a educação, o eu, a avaliação, a aula,  a divisão público/privado, entre outras, são formas sociais que, como trilhos dispostos sobre o caos, orientam o rumo do ensino e do aprendizado  para  um objetivo maior, transcendente, e por isso, intocável: o acúmulo de conhecimento.

Um desejo de ensinar e um desejo de aprender se conjugam para estabelecer a superfície do Encontro professor-aluno. Como dissemos , a superfície é uma máquina, na medida em que antes das pessoas, estão as instituições.  Elas se imiscuem numa produção incessante de consumo. Consumir o ser. Ser alguma coisa para o mercado. Esta é a regra que vem de fora mas que está dentro da máquina. É o seu próprio combustível. Pelo menos, em tempos de hoje, o Mercado é a lei das visibilidades expostas na vitrine das técnicas: quem serei amanhã? como sobreviverei? A visão do mestre como sacerdote, e da educação como o lugar da salvação, foi  devorada  pelo  Mercado onipresente. Daí,  falar da máquina binária requer falar  da máquina ternária, onde se insinuam relações de troca e mais profundamente relações de poder. Um lugar espera o professor com o script marcado, tanto mais, ou quanto mais ele inove ou queira inovar métodos e técnicas em sala de aula. A sala de aula é  o rosto do mercado travestido em rigor pedagógico; este disfarça o rigor mortis do desejo.  Nestas condições, ser professor é seguir a pedagogia da falta, para a qual falta  conhecimento ao aluno, falta responsabilidade ao aluno, falta compromisso ao aluno, sendo  necessário   preeenchê-lo,   enchê-lo. De idéias, conceitos, opiniões. E o pensamento?

2-A natureza do pensamento – O positivismo organicista encarregou-se de situar o pensamento como uma espécie de secreção cerebral, para  a qual acorrem  os médicos e  fac-símiles, na ânsia  de totalizar o organismo humano.  Mas  o pensamento não é totalizável, ele, o  que circula em outros corpos além do humano, increvendo-se  em linhas irredutíveis a formas estáveis  ou árvores bem desenhadas. Aprendemos com Deleuze-Guattari que o pensamento  “não é arborescente e o cérebro não é uma matéria enraizada nem ramificada (...) (...) muitas pessoas tem uma árvore plantada na cabeça, mas o próprio cérebro é muito mais uma erva do que uma árvore”    . Sendo assim,  o pensamento segue caminhos ou linhas  indeterminados por um centro organizador que seria o eu, por exemplo. Ele vai além do que se compreende  como pessoa individual. Um dueto interpessoal conta com multi-determinações do pensar que vêm de todos os lados para  inscrições na superfície  onde a fala se dá.  O pensamento como “pensar”  é  o  acontecimento. Antecedendo a linguagem, e mais, dando-lhe condições operacionais para existir e funcionar, o acontecimento inscreve-se nos corpos e ao mesmo tempo deles se destaca como a expressão. A fala do mestre e a fala do aluno são assim superfícies onde se fabrica o sentido.

Pensar,  só aí, nesta linha sem retorno  rumo a terras desconhecidas. Antes que isso pareça uma metáfora, dizemos que o Encontro professor-aluno, máquina binária a serviço do Mesmo, traveste-se  de um sentido multiplicado e multiplicante dos signos enviados de parte à parte. Trata-se de enviar signos que substituam a pessoa de um ou  de outro.  Pensar é operar as linhas que saem das conexões entre os signos. A natureza do pensamento é a anti-natureza,  a ausência de natureza e no seu lugar o artifício. Que o pensamento seja (ou fosse) uma secreção do cérebro, não excluiria a  linha infinitiva cortando e sendo cortada por outras linhas, multiplicidades que nos chegam de  súbito, aos milhares e de vez.  São  velocidades que produzem tonturas à lucidez mais centrada. A questão passa a ser a do caos e de como  lidar com ele; não negá-lo, pois ele insiste, nem se deixar engolfar numa espécie de buraco negro ou campo  inconsistente, onde as palavras  se partem em segmentos incompreensíveis ao  senso comum. “O que define o pensamento, as três grandes formas do pensamento, a arte, a ciência e a filosofia, é sempre enfrentar o caos, traçar um plano, esboçar um plano sobre o caos”    . Mas  é preciso não confundir pensamento com conhecimento. Este  corresponde ao acúmulo de informações que a memória propicia, e vai  servir de reservatório de conceitos estáticos à espera de que sejam acionados quando do trabalho intelectual. A atividade cognitiva ganha a sua pertinência e o seu valor na medida em que está conectada às linhas institucionais que sustentam o funcionamento da organização escolar e dos seus dispositivos.  Deste modo, o “ser” inteligente não existe enquanto essência, ou substância, mas nem por isso deixa de ser palpável e intrínseco ao sucesso profissional, por exemplo. Tudo isso substitui o pensamento e ao mesmo tempo faz-se  passar por ele, numa operação urdida na produção de subjetividades individualizadas no papel de aluno, no papel de professor.  Pensar, pois, não é para qualquer um. Não que este um esteja acima dos  mortais, mas porque esse um está à margem, sempre à margem das formas subjetivas, fazendo-se e refazendo-se como produção. Isso dá trabalho. Sim, porque o ato de pensar implica num movimento de subjetivação sobre si,  espécie de dobra e redobra do eu a partir e com os signos que  chegam.   Falamos, pois,  sobre o pensamento como ato e como física.  Uma abstração concretizada, velocidades  infinitas freadas na organização de saberes inseridos em práticas. É o  contrário do pensamento regido pela forma-Academia, ou pela forma-Estado, quando e onde estes acabam por se aliar na ação de bombardear cidades e aldeias. A chamada relação pedagógica, ou o próprio ensino, é um lugar por excelência onde se propagam estas formas como verdades dadas. Não há, pois, uma natureza do pensamento que não esteja  funcionando em algum dispositivo, em alguma prática, e portanto, não há pensamento que não se agencie como desejo de fazer, de viver, de sobreviver, mesmo que se destrua, se mate  e se explore. O desejo  é a superfície onde algo acontece, mesmo não acontecendo. Este é o processo.

3- A dobra subjetiva – A experiência de  ensinar é antes a experiência de aprender com os signos. Antecedendo à  partição significante-significado, o signo procede a uma  violência constitutiva dessa experiência. Forçar a pensar, como diz Deleuze, é criar um campo tanto mais rico na emissão de signos. A função de professor dobra-se e desdobra-se na sua presença-ausência, descolando-se dos conteúdos e fazendo destes o móvel das práticas do pensar. A subjetivação deixa de ser centrada numa pessoa, seja a do professor, seja a do aluno, e constitui-se como ato de pensar por fragmentos do real.  Um pensar estilhaçado, atravessando campos do saber,  tal como um pássaro  bicando aqui e acolá os materiais necessários à produção de conceitos. Ou  de afetos e funções, se pensarmos como um artista ou como um cientista, respectivamente   . Isso conflui numa subjetividade  contra-subjetiva, ou seja, exposta para fora de si, não totalizada, não totalizável e inscrita na superfície dos corpos humanos e inumanos. Trata-se de singularizações móveis do processo do desejo. O muro é a linguagem douta, técnica, rochedo invisível mas  doloroso às invenções não cadastradas do pensar. O caráter redutor, reducionista e por vezes fascista da linguagem leva-nos à dimensão do conhecimento imaculado. Como diz Nietzsche, “em algum canto longínquo do universo difundido no brilho de  inumeráveis  sistemas solares, houve certa vez uma estrela na qual animais inteligentes inventaram o Conhecimento. Foi o minuto mais arrogante e mais ilusório da “história universal”, mas não foi mais que um minuto. Com apenas alguns suspiros da natureza a estrela se congela, os animais inteligentes logo morrem”   . Esta fábula  traz para a experiência do aprendizado as velocidades infinitas do caos-cosmos. Daí, como trabalhar o discurso com um contra-discurso ou sem o discurso ou para além do discurso?  Como ultrapassar o discurso normalizante e moralizador da pedagogia vigente e embutida  nas práticas de ensino? Como  seguir o rumo  de  territórios invisíveis, mesmo à mão, e de paisagens vertiginosas,  mesmo à luz da razão?   Como fabricar universos de sentido sem cair numa  indiferenciação  subjetiva estéril, também chamada   “porra-louquice”?  Ora, o aprendizado é, antes, a produção (não o produto) do Encontro. Afetar e ser afetado, nos termos de Spinoza, é a densidade própria à dobra subjetiva referida acima, e que situamos como sendo a multiplicidade. O aluno é esta multiplicidade que vaza  e se expande para fora do papel-aluno disposto na série escolar . Obter uma boa nota nos exames, passar de ano ou de semestre, ser aprovado etc, são componentes do papel. Contudo, a depender  do uso feito na produção do Encontro, tornam-se uma caução para o conhecimento bem comportado e estável.  O que chamamos  de “devir-aluno” é  pois  o processo do Encontro mestre-aluno  na dimensão impessoal das multiplicidades. O mestre torna-se outra coisa que não ele. O aluno torna-se outra coisa que não ele.  As linhas do aprendizado passam pelo vôo da bruxa  até onde (?) ela irá. São abertas conexões ilimitadas  às sensibilidades em curso. É criado um campo de intensificaçào da  experiência do Encontro entre multiplicidades. Na prática, isso quer dizer: não faça como eu;  faça comigo  até experimentar em você  o gosto pela novidade e pelo risco de pensar com os próprios neurônios, mesmo que estas células recolham de longe o que as faz mover, respirar, funcionar.

4-O que é o Novo? – As multiplicidades constituem a própria realidade do Encontro. É delas, com seus materiais (signos) que saem os processos de singularização, linhas de aprendizado. São vivências que extrapolam o ser-subjetivo. Não há, pois, um recipiente pronto a recolher os conteúdos, ao modo da educação bancária, tão criticada por Paulo Freire. Mas também não existe uma consciência intencional que se dirige ao objeto e a ele se liga numa manobra do ser-no-mundo. Ao contrário, são as multiplicidades que precedem o sujeito-aluno. Mais: são elas que o produzem  através de  linhas invisíveis, abstratas, mas não menos atuais. Falamos de um campo virtual de problematização do ensino. Vamos para além do dualismo milenar professor-aluno  na busca das práticas de vida.  Trata-se da imanência das questões, ou, o que quer dizer o mesmo, das verdadeiras questões do ensino e por conseguinte, do aprendizado. O que   é aprender? Para que aprender? Como aprender? Com que  práticas sociais  esse aprendizado irá se conectar? Conexões a serviço de que ou de quem? Saímos do âmbito da escola e seu contexto funéreo, vamos ao mundo em  suas indeterminações radicais. É claro que a escola está no mundo, mas aqui no referimos ao mundo caotizado  das  velocidades infinitas das determinações institucionais, formas sociais gestadas a partir de matérias sem  forma, puras moléculas em trânsito. Extraimos do dispositivo-aula devires que o ultrapassam. A sala de aula não está mais contida no enquadre escolar e não mais recria a cena gasta do professor falando a seus discípulos. Ela se abre ao encontro do Novo, mesmo que este já esteja aí, no interior do seu funcionamento mais minucioso e nem por isso, menos captável.

Se considerarmos o ensino mais  técnico e objetivo (fazer algo,digamos, auscultar um tórax) o devir-aluno estará presente como aquilo que se desfaz sempre para se fazer logo em seguida. Professor, comece a mesma aula do semestre passado como se fosse a primeira vez. O frescor do saber que sai pela fala do mestre traz o sabor do Novo. Tornar  interessante o que se ensina começa a partir de  tudo o que é velho. Repetir ,balbuciar e gaguejar a língua, não a fala, para enunciar algo diferente, será possível?  “Sim, uma linguagem afetiva, intensiva, e não mais uma afecção daquele que fala”   . Para tocar as  multiplicidades   dispostas num campo de ensino, é preciso que a fala do mestre entre em contato com o limite da língua, daí, com o seu “fora” e o seu silêncio. O Novo não é dado, ele é produção de linhas curvas e incertas. Que se considere  o devir-aluno como uma  irrupção demoníaca  na própria configuração do Encontro. Estamos, pois, muito distantes da máquina binária referida  e muito perto das forças do inconsciente institucional circulando entre as cabeças, entre os papéis e nas relações de poder.    Como vimos, o pensamento  é uma linha estendida entre a arte, a ciência e a filosofia, sendo nesta última  o acontecimento “pensar” aquilo  que   alarga e faz alargar as dimensões múltiplas do processo de aprendizado.  A sala de aula é o mundo  com seus aparelhos, com seus dispositivos de domesticação de almas.  Mas o devir-aluno é  mais que o aluno como pessoa; ele  segue os fluxos do aprender antes do ensinar. Não aprender as certezas e as opiniões  prontas do homem médio, mas sim algo que muda imperceptível e veloz como o próprio tempo. Captar este “imperceptível” do tempo é tornar-se o tempo irreversível  dos atos de ensino que são ao mesmo tempo atos de aprendizado.  Rigorosamente, não o Novo como um objeto ou objetivo a ser alcançado, e sim como a própria materialidade do espírito, a consistência da passagem, da “duração”, do tempo que não se vê, mas que se sente.  Tornar-se aluno e mestre de si mesmo requer a multiplicação dos eus, o esquecimento da história pessoal, e como  diz ainda Castañeda,  a parada do diálogo interno. Toda uma bruxaria santa, todo um  ritmo da natureza encravado nas falas mais artificiais e incômodas. É um estilo isso de ser não sendo,  esse nomadismo no mesmo espaço e ao mesmo tempo já em Júpiter ou Urano,  velocidades  aceleradas  para os seres lentos que somos.  O pensamento voa. Um exemplo de aula: enquanto aqui eu falo da esquizofrenia-doença, aí em vocês  e sobre vocês o pensamento percorre continentes, cidades, países, amores, e a aura do invisível cobre esse itinerário tão secreto quanto estranho. Esquizofrenizar o pensamento, ele  já  esquizofrênico por si mesmo, desde que não há nascedouro, só um meio onde tudo começa e  flui, é  aprender a pensar .  Tudo já estava lá, ou aí, ou aqui, e é mudando a natureza das multiplicidades ( o Novo, enfim) que oaprendizado dos signos se faz. 


A.M.


domingo, 22 de novembro de 2020

PRODUZIR UM CONCEITO - IV

Será capaz o técnico em saúde mental de desenvolver um trabalho afirmativo? Vejamos: em primeiro lugar ele se implica ao Caps via cuidado ao outro, o paciente. O cuidado é que o move. Em segundo, funciona no interior da equipe num regime de trocas e conexões produtivas não hierarquizadas. Trabalhar em equipe é o sentido da sua prática. Em terceiro, busca inventar novas éticas ao sabor dos encontros clínicos, mesmo e principalmente os mais insólitos. Em quarto, extrai de cada um dos papéis profissionais (colegas) aprendizados do dia-a-dia. Ser com o outro, tornar-se outra coisa, um terceiro que não é ele nem o outro:  eterna mutação. Em quinto, fabrica uma ética da produtividade e da autonomia existencial como os objetivos terapêuticos maiores.  Em sexto, usa da arte a capacidade de fabricar uma estética do mundo no interior da própria clínica, ainda que esta possa ser feia. Não teme o horror dos tempos. Em sétimo, sai à rua, não só em visitas domiciliares, mas deixa entrar em si mesmo a rua, o mundo social quando das perguntas: onde? quando? por que? para que? etc. Em oitavo, trabalha na espreita do que acontece de modo inesperado, invisível e traça uma percepção fina do Caps como serviço público e lugar do coletivo-em-nós. Em nono, usa o diagnóstico psiquiátrico apenas como função de ajuda ao paciente e não como função-de-controle. Em décimo, pesquisa os mil afetos (bons e maus) que constituem a sua relação com o paciente e a dele consigo mesmo.


A.M.

A vida é uma ferida?

O coração lateja?

O sangue é uma parede cega?

E se tudo, de repente?


Eduardo Pitta

01 - Rizoma | Curso de introdução ao pensamento de Deleuze e Guattari

A DIFERENÇA NA SAÚDE MENTAL - IV

O conceito de loucura norteia o trajeto da diferença num campo (a clínica) que por natureza é desconcertante. Não tem "norte". A sua densidade existencial é regida e composta pelo caos. Isso não significa a crença em "algo ruim"que estaria como um fantasma assombrando as ações humanas. Ao contrário, o caos constitui a diferença exatamente em função das linhas de multiplicidade a brotarem pelos quatro cantos do mundo. Se a saúde mental prioriza a potência de existir (sua ética mais profunda) ela se acha ligada a uma opção política no nascedouro das práticas. Somente a experiência da loucura, vista como processo a um tempo dilacerante e libertador da alma escrava, torna possível ao técnico em saúde mental evadir-se de si mesmo, sair de si, escapar do medo, dar o fora, em prol do Encontro com o outro, o paciente. A diferença é o puro movimento que impulsiona o encontro para além dos enquadres clínicos demasiado conhecidos. No entanto, sabemos, aí reside o perigo da desestabilização brutal da subjetividade. Contra isso, o trabalho da diferença utiliza critérios de aumento ou diminuição das forças de criação, tanto no paciente quando no técnico que o atende. Uma espécie de "termostato" da potência de criar.


A.M

sábado, 21 de novembro de 2020

APERTURE - Edward Clug (NDT 1 | Soir Historique)

A POESIA É UMA FORÇA DESTRUTIVA


Isto é que é a miséria,

Nada Ter no coração.

É Ter ou nada.


É uma coisa Ter,

Um leão, um boi no seu peito,

Senti-la respirando ali.


Corazón, cachorro bravo,

Bezerro, urso de pernas tortas,

Ele prova seu sangue, não cospe.


É como um homem

No corpo de uma fera violenta.

São seus os músculos dela...


O leão dorme ao sol.

O nariz entre as patas.

Ela pode matar um homem.


Wallace Stevens

( tradução de Ronaldo Brito )

sexta-feira, 20 de novembro de 2020


 

A DIFERENÇA NA SAÚDE MENTAL - II

Para discutir a diferença na saúde mental há uma questão conceitual básica. A "mente" não é o cérebro. Ninguém nunca viu a mente, ninguém nunca pegou, mediu ou pesou a mente. Lidamos com um objeto abstrato, ou seja, com o sem-forma. Para acessá-lo, o método científico da psiquiatria  não só é limitado como muitas vezes se faz nocivo ao paciente. É que em função do lugar de poder que ocupa, o discurso psiquiátrico produz verdades subjetivadas como transtorno mental. Num quadro conceitual que representa a saúde mental como saúde do cérebro, como inserir a diferença? Ora, a diferença concebe a mente enquanto mundo, já que o mundo não tem uma forma única, não tem modelo. Ao contrário e bem mais, o mundo é composto de processos sociais (forças) que se cruzam, se aliam, se destroem, se alimentam, configurando o que chamamos de inconsciente-produção no sentido em que Deleuze-Guattari trabalham. A diferença está imersa no inconsciente. Mais: ela é o próprio inconsciente, bem entendido, não o psicanalítico, mas o inconsciente como o sem-forma (a mente) que se corporifica em práticas sociais concretas (a clínica) tudo isso em incessante produção (os devires).


A.M. 

NOVIDADE

Um trabalhador negro ganha cerca de 17% a menos do que um branco, mesmo que ambos tenham origens sociais semelhantes. A conclusão é de um estudo do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS juntamente com a Rede de Observatórios da Dívida Social na América Latina (Rede ODSAL), publicado na revista científica Dados, do Rio de Janeiro. O artigo pode ser conferido no site da publicação.

(...)

Janaína Lopes, G1, RS, 20/11/2020, há uma hora

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Cuidado

Não analise

Demais o que sente.

Apenas sinta!


Autópsias

Sempre estão

Onde não

Existe Vida.


Zack Magiezi

terça-feira, 17 de novembro de 2020

O QUE É VIVER?

As linhas da diferença estão em toda a parte. No entanto, caso prevaleça o olho paranóico da Consciência, este acesso é impossível. Ao contrário, buscamos o cultivo de percepções finas, sutis, delicadas, para além e aquém das formas subjetivas do eu-importante. As pessoas, em geral, se acham importantes. Queremos o desimportante. Experimentar viver sem clichês, com poucas respostas ou referências de verdade: buscar a diferença. Para isso, dobras psíquicas e corpos intensivos fazem novas conexões afetivas. A diferença é o que sobra dos afetos produzidos ao sabor dos encontros. Um "resto" composto de afetos irá encontrar novos afetos, e assim por diante, numa repetição prenhe de nuances de arte. A diferença é a arte. Não a arte mercantil ou monumental, mas a arte como processo de criação de mundos: um devir-arte.Traçar essa linha, esboçar essa linha de força ativa, linha de potência, linha de invenção, linha de vida, quem consegue saiu de si. Enlouqueceu de amor ao amar. Uma passagem, uma travessia. Viver, não apenas sobreviver.


A.M.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020


 

O CADÁVER PT

Nunca antes na história, o PT se saiu tão mal na disputa pela Prefeitura de São Paulo. O candidato a prefeito pelo partido, Jilmar Tatto, teve apenas 8,65% dos votos válidos —com 99,92% das urnas apuradas.

É menos do que foi obtido por todos os candidatos a prefeito do PT em São Paulo anteriores a Tatto. Até então, a pior marca tinha sido os 16,7% de Fernando Haddad em 2016, na esteira do impeachment de Dilma Rousseff e da Operação Lava Jato.


Amanda Rossi, do UOL, 16/11/2020, 00:53 hs

domingo, 15 de novembro de 2020

Céu azul. Cores vivas. Você rindo

de alguma coisa ou alguém que está à esquerda

do fotógrafo. É talvez domingo.

É claro que essa sensação de perda


não está na foto, não – não está na imagem

extremamente, absurdamente nítida.

E se fosse menor a claridade,

ou se estivesse sem foco, ou tremida,


ou se fosse em sépia, ou preto e branco,

talvez a foto não doesse tanto?

Você, às gargalhadas. O motivo


você não lembra. A foto é muito boa.

Naquele tempo você ria à toa,

você lembra. Você ainda era vivo.



Paulo Henriques Britto

A realidade é dura, mas ainda é o único lugar onde se pode comer um bom bife...


Woody Allen

sábado, 14 de novembro de 2020

Tempo  de  eleição


Chega  a  hora   das  eleições, mas o tempo  não passa. Ou, pelo  menos, não salta, digamos, para um outro  universo de sentido, onde o homem  comum possa  dizer: “enfim, algo  novo”. Ora, o homem “comum” é  o da  cidade e também do campo, o que  está  em contato  com a   experiência  do  cotidiano-dia-e-noite ( trabalho,  ruas,  matas,  estradas,  serviços, casas,  etc) e por  isso  expressão  de  um tempo  que  não  passa. Mas  que, apesar  de  tudo, passa.  Inútil esconder:  fluxos de toda ordem circulam sem cessar. Isso escorre, isso flui...

Desse modo, há um terrível  paradoxo no  cumprimento de uma espécie de sobrevida  para viver,  inverso do desejo de viver, ou apenas  viver por e para viver.

Chega  a Hora. 

Como escolher se não há escolha?

Escolher um candidato  passa  a ser uma ação  que  oscila  no mercado  das  ofertas  clientelísticas  conforme  razões  de  mando e comando  do poder  econômico  em sua face  mais risonha (todos  riem na foto)  e  cínica. Com os  pobres, os  inferiores, os  miseráveis, os párias, a palavra vira  repetição cega e automática. Ou não  vira, não vira  (no sentido  em que  se diz “esse   carro não  vira”), permanecendo em seu  lugar a ladainha interminável da servidão moderna.

No fim, que é o começo, não só a  Cidade  é  enfeada e desfigurada,  com  banners, fotos de bandidos honestos, signos do horror melífluo... não, não! Ao contrário, é  toda  a  cena  da  disputa  que se escancara, via mídia, onde você  decide,  cidadão, a  não decidir.


 A.M.


sexta-feira, 6 de novembro de 2020

ESTUDO CLÍNICO DAS PSICOSES - III

As psicoses são reconhecíveis pelo delírio. Mas, atenção: o delírio nas psicoses se constitui como sentido. Desse modo, ultrapassa a dimensão do sintoma (elemento da semiologia médica) em direção a uma produtividade subjetiva incompatível com o meio social e com a percepção moral. Tanto é verdade que os quadros ditos negativistas (quando o paciente não fala, não responde, não obedece...) respondem mal ao uso de psicofármacos ou simplesmente não respondem (não melhoram). Sinal de que há algo mais que o sintoma. A psiquiatria biológica chama isso de sintoma negativo. Quem trabalha numa equipe de saúde mental sabe como é difícil se aproximar de um "sintoma negativo". O essencial a reter é o fato de que o delírio não necessita ser dito verbalmente, já que ele pode ser dito não verbalmente, como o jeito de olhar, de andar, de rir, por exemplo. As psicoses, conforme uma psiquiatria da diferença ou de uma diferença na psiquiatria, produzem uma semiótica desconcertante (regime de signos) que só será acessada mediante o uso de recursos técnicos fora da psiquiatria. Isso não invalida, ao contrário, o uso da medicação antipsicótica. Antes, estabelece a psicofarmacologia como um instrumento terapêutico cujo valor estará condicionado a uma postura ético-política de quem atende, de quem cuida. Infelizmente, há um muro na clínica das psicoses. É que o problema essencial, a má formação "congênita" da psiquiatria biológica é a sua adesão inconfessa a um positivismo cientificista raso e danoso para o paciente enquanto ser vivente capaz de autonomia existencial. Considerando-o objeto inerte (e perigoso) tal psiquiatria se instala em seu próprio território de poder (a clínica), e daí obtém resultados terapêuticos de abominável controle sobre a mente, inclusive a do próprio psiquiatra.

A.M.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Amor é mar...

Por isso não me contento com quem só quer molhar os pés.


Zack Magiezi

domingo, 1 de novembro de 2020

ADEUS AO PT

A bordo de velhos nomes e velhas propostas, o Partido dos Trabalhadores chega às urnas em 2020 com remotas chances de eleger prefeitos nas principais capitais do país, como mostram todas as pesquisas.

Não dá para brigar com os fatos. Aos 40 anos, o PT envelheceu e está sem rumo, apenas tentando acertar as contas com o passado e glorificar as conquistas dos seus períodos de governo.

Cheguei a essa triste conclusão assistindo terça-feira ao programa produzido pelo partido e exibido nas redes sociais para celebrar os 75 anos de Lula, seu fundador e ainda a principal liderança.

Fora os filhos e netos do ex-presidente, a maioria dos personagens que desfilaram na tela está na minha faixa etária, ou seja, não têm muito futuro pela frente. Quem não ficou careca está de cabelos brancos ou grisalhos.

A maior prova de que o discurso petista já não empolga é que, ao longo de mais de uma hora de programa, em nenhum momento a audiência chegou a 400 pessoas assistindo no YouTube. Apenas 400 pessoas! Dá para acreditar?

Já na eleição municipal de 2016, o PT perdeu dois terços das suas prefeituras e só elegeu o prefeito de uma capital, Rio Branco, no Acre.

Não houve uma renovação de lideranças e de propostas, nada mudou no comando do partido, que só teve dois presidentes nos últimos muitos anos, e hoje lidera as pesquisas apenas em Vitória, no Espírito Santo.

Para um partido que venceu quatro eleições presidenciais consecutivas neste século, não basta colocar a culpa na mídia, na Lava Jato e nos adversários para justificar a derrocada.

Algo se rompeu na relação do PT com o seu eleitorado.

Os tempos mudaram e as receitas usadas nas antigas campanhas eleitorais também envelheceram, já não empolgam mais.

Foi-se o tempo dos grandes comícios (e não só por conta da pandemia) e da militância aguerrida, que fazia campanha de porta em porta, carregando suas bandeiras com a estrela por todos as esquinas e grotões do país.

Ninguém mais vende a bicicleta, empresta o carro ou falta no emprego para fazer campanha pelo PT.

Como vimos em 2018, as eleições agora se decidem nos algoritmos da internet, e não mais nos programas na TV; nos memes e nas fake news, e não mais nas propostas de governo; apenas nas altas rodas do poder econômico e não em assembleias de operários e estudantes.

Numa democracia em que os partidos perderam a importância e o respeito, com a multiplicação de siglas de aluguel que têm donos, assim como as novas igrejas, que brotam por toda parte, a sociedade civil cedeu lugar às corporações militares e religiosas, abrindo espaço para as milícias e o crime organizado, cada vez mais influentes.

Esta é a nova realidade da política brasileira, gostemos dela ou não. Dia 15 de novembro, as urnas vão provar.

Vida que segue.


Ricardo Kotscho, UOL, 30/10/2020, 14:31 hs





SEM AFETO

Não há, nos livros de psiquiatria clínica, algum capítulo voltado ao estudo dos afetos. Nos livros atuais fala-se muito sobre as sinapses. Em psicopatologia, outrora, havia sim algumas considerações sobre os afetos do paciente. No entanto, elas não diziam o que era de fato o afeto, ou seja, não havia (nem nunca houve) um conceito de afeto. Em troca, diz-se que afeto é o que não é pensamento, memória, consciência, atenção, sensopercepção, inteligência... Uma definição pelo negativo, imaginária e urdida num vazio histórico-conceitual. Esse dado expõe à luz do dia uma fraude teórica. Por que é essencial discutir o conceito de afeto? Porque é através dele que se dará (ou não) o vínculo terapêutico com o paciente, ou mais precisamente, a construção da relação de ajuda técnico-paciente. A isso se acresce o dado empírico de que na clínica, frente ao psiquiatra, é muito comum a atitude negativista do paciente: ou seja, ele não quer saber de tratamento, não se acha doente, acha que só ele está certo, não responde às perguntas, não quer sair de casa, que o deixem em paz, etc... Que afetos sustentam esse tipo de atitude?


A.M.

desde que a minha vida

saiu dos trilhos

sinto que posso ir

a qualquer lugar.


Zack Magiezi

MARIA BETHANIA - VOCÊ