Este blog busca problematizar a Realidade mediante a expressão de linhas múltiplas e signos dispersos.
sexta-feira, 30 de abril de 2021
quinta-feira, 29 de abril de 2021
segunda-feira, 26 de abril de 2021
domingo, 25 de abril de 2021
O QUE É DEVIR?
1. Em Guattari, como em Deleuze, devir não é identidade - nem processo de produção ou fragmentação de identidades; devir não é mecanismo de territorialização de virtualidades quaisquer sob uma atual e transcendente forma-sujeito, mas um processo marcado por uma indecidibilidade virtual no seio da própria subjetivação – uma espécie de experimentação potente de múltiplas intensidades (por isso, Deleuze e Guattari falavam em devires-moleculares, inorgânicos, mulher ou homossexual); eles explicavam que o devir só é possível quando se é minoritário: não há devires-majoritários, devires-identidade, devires-sujeito-fixo. Elementos majoritários são os organizados por um aparelho de captura ou de estado; não podem devir porque não são capazes daquela “marginalização positiva” de que fala seu fragmento. Não há devir-homem-branco-europeu-cristão, mas organização, estratificação e usurpação do corpo sem órgãos criando sobre ele um estado subjetivo, uma identidade imóvel. Eis o que Deleuze lembrava, em Mil Platôs, como o juízo-de-Deus: a organização demasiado fixa dos órgãos sobre o corpo sem órgãos.
2. Como expressar, do devir, uma intuição simples? Aqui muitos caminhos se cruzam: desde a inescapabilidade do devir como o movimento do eterno retorno do diferente, em uma evocação de Nietzsche, até a interpenetração e a coexistência intensa entre campos da memória, do atual e do futuro (que Nietzsche chama de “o intempestivo”, Foucault chamava de “o atual, o interessante”), em que Deleuze termina por estender seu bergsonismo – a grande passagem das três sínteses do tempo, em Diferença e Repetição, me parece um texto exemplar, nesse sentido.Parece que recaímos em um problema dos mais interessantes da filosofia: como exprimir o devir? A linguagem é, também, um eficaz aparelho de captura; ela também estratifica, faz estado; exprimir o devir passa por uma tentativa (poética, de imagens móveis, talvez) de introduzir o devir, com toda a complexidade bergsoniana dos lençóis do tempo, no interior de uma experiência que é a própria linguagem filosófica. Por isso, não há explicação simples em “O que é a filosofia?” para a definição da filosofia como “criar conceitos”. Deleuze e Guatarri dizem que o gesto supremo da filosofia é mostrar que o plano de imanência, no qual o conceito se “auto-põe” esteve, desde sempre, ali. Mostrar que pensar, criar conceitos, só se faz supondo o plano de imanência – corte e crivo do caos, que debela o caos ensaiando conservar algo de suas velocidades absolutas.
3. Eis aqui um agenciamento estranho: pensar foucaultianamente os produtos dos devires; não como identidades ou reterritorializações em formas fixas de subjetividade (a forma-homem, o “Ego”), mas como experiências de um processo de subjetivação (Deleuze preferia falar em “individuação”, ou “hecceidade”) que não podem dispensar uma dessubjetivação imanente e positiva – algo próximo do que você escreve: “entrar em aliança”, em ressonância, com a diferença ontológica, (isto é, deixar as intensidades passarem entre os corpos numa dissolução das subjetividades identitárias para lançá-las em um devir-qualquer, em conexão com o movimento diferenciador do próprio ser). Devir é um jorro incessante de criação que não tem na origem nem um vazio constitutivo, nem uma experiência do negativo, tampouco um Sujeito a dirigir-lhe a atualização; o devir é o movimento de criação do próprio real, é processo de produção do real. Devires-minoritários, como um movimento fundamental de micropolíticas do desejo, são o que nos conecta com a diferença que, também em nós - no campo subjetivo intensivo do qual nosso “eu” é tributário-, lança-nos em um devir; parece claro que o desejo opera aí, no lançar-nos a esse movimento indomável, selvagem, operando como uma causa imanente: pois o desejo, já diziam Deleuze e Guattari em “Kafka: para uma literatura menor”, é a imanência; e a imanência é, também, a justiça.
Murilo Duarte Costa Corrêa
O ser humano é cego para os próprios defeitos. Jamais um vilão do cinema mudo proclamou-se vilão. Nem o idiota se diz idiota. Os defeitos existem dentro de nós, ativos e militantes, mas inconfessos. Nunca vi um sujeito vir à boca de cena e anunciar, de testa erguida: - Senhoras e senhores, eu sou um canalha.
Nelson Rodrigues
sábado, 24 de abril de 2021
AFETOS E CORPOS
Os afetos são a consistência do real subjetivo que se expressa como real objetivo. Eles são o próprio real, encontro de corpos com corpos. O corpo-a-corpo do Tempo. Não organismos, mas corpos. Afetos não são passíveis de codificações fixas como tenta fazer a psiquiatria biológica e outras instituições. Ao cunhar o logro da ansiedade-doença, do pânico-doença, da depressão-doença, da fobia-doença, entre outros, a psiquiatria entroniza a burrice erudita. É que eles, os afetos, sempre vazam, muitas vezes inomináveis, quando, por exemplo, nem uma só palavra expressa o que alguém está sentindo. O que dizer? Eles são abstratos! Usamos esse termo fora da acepção ordinária. Trata-se de algo sem medida, sem forma e invisível, essencialmente concreto, fluxo de corpos querendo conexões infinitas para além de toda regra social. O desejo... enfim.
A.M
quarta-feira, 21 de abril de 2021
NON SENSE
No trabalho clínico em saúde mental, a fala do técnico deve evitar o emprego do senso comum e/ou do bom senso. Isso desfigura a relação de ajuda, tornando-a mero simulacro de relações de poder como a do juiz ("eu julgo"), a do policial ("eu prendo), a do professor ("eu ensino"), a do sacerdote (eu salvo"), bem como as da família, resumo e condensação das anteriores, aquilo que a psicanálise (ícone do familiarismo) expôs ad nauseam. O técnico em saúde mental não é mais do que um facilitador dos processos existenciais de expansão da vida e do aumento da potência de agir, como diz Espinosa. Isso posto, a psicoterapia como técnica está ao alcance de qualquer um, desde que ultrapasse a fronteira dos valores instituídos da moral burguesa e institua a ética da alegria no próprio meio (caos) contemporâneo. Tarefa difícil, complexa e inglória, reservada aos que se deixam atravessar por uma espécie de"solidão povoada", método em que a arte é o que move, o que impulsiona, o que vibra, e o que faz viver sem garantias ilusórias. Trata-se, enfim, de encarar o real e mais ainda, de fazer o real.
A.M.
Toda vez que encontro uma parede
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das
lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou
de mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesma só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.
Manoel de Barros
A bruxaria e o feminino através da história
Bruxa, feiticeira, mandingueira, adivinha, vidente, maga, mágica, necromante, nigromante, lâmia, xamã, sábia, sacerdotisa, pitonisa são alguns dos termos associados àquela mulher que manifestava e manifesta algum conhecimento sobre - presságios, adivinhações, benzeduras, curas através das ervas, partos e orações - cultuando um mundo invisível, mágico, misterioso e numinoso sobre o qual o conhecimento científico e racional tem muito pouco a explicar e comprovar. Para que entendamos as transformações históricas pelas quais as representações da imagem da “bruxa” passou, se faz necessário olharmos para um passado bem longínquo em que o feminino era visto como força fundamental para a sobrevivência na terra.
Como nos conta a História e nos comprovam estudos arqueológicos1 houve uma época em que uma cultura “matrifocal” regia nossa civilização. Tal cultura denomina-se “matrifocal,” e não “matriarcal,” pelo fato de não permitir, principalmente, distinções hierárquicas entre homens e mulheres.2 Não havendo relações baseadas no poder, os indivíduos relacionavam-se com o princípio do coletivo, do trabalho e vida em comunidade onde não havia espaço para guerras, ameaças e destruições de seus semelhantes. A vida era totalmente regida pela relação entre o indivíduo e a natureza. As mulheres, por seus ciclos menstruais e de fertilidade e gestação, eram diretamente relacionadas com os ciclos da natureza. A própria terra era considerada como a “grande mãe,” aquela que nutria e dava sustento àqueles que dela dependiam, daí a importância atribuída ao aspecto “feminino,” tanto do ser humano quanto da terra que habitava. O indivíduo era totalmente absorvido e integrado à natureza, aos seus ciclos de vida e morte, e aos cuidados ao tratar com a terra, pois dela advinha sua existência e continuidade.3 (CABREIRA, 2012, p.23-24)
Tal cultura matrifocal foi primordialmente retratada através da mitologia, do folclore e de achados arqueológicos, em que foram encontrados não só pinturas rupestres neolíticas em cavernas representando figuras femininas, bem como esculturas do corpo feminino bastante avantajado em tamanho, como a Vênus de Willendorf (CIVITA, 1997, p.10) com seus seios e corpos arrendondados representando feminilidade e fertilidade: a mulher doadora de vida.
(...)
Bruno Vinicius Kutelak dias e Regina Helena Urias Cabreira, Curitiba, maio de 2019
terça-feira, 20 de abril de 2021
PSIQUIATRIA DEPRIMIDA
A psicopatologia é uma ferramenta essencial da psiquiatria clínica.Ou, pelo menos, deveria ser. Mais, ainda, a etiologia (causa) dos transtornos também deveria. No entanto, em neurotempos atuais ocorre o inverso. Não se fala e não se faz pesquisa psicopatológica e/ou etiológica. Só há transtornos mentais de origem orgânica, mesmo não sendo, e suas descrições encaixotadas e encaixotantes. A psicopatologia foi esquecida e tornou-se a neuromania dos crâneos. Basta olhar em torno: o vazio epistemológico deixado só é preenchido pela vontade de controlar da psiquiatria cidobiológica. Tal vontade opera no cadastramento tecno-burocrático dos desvios de conduta, do mau comportamento social, do irracionalismo violento, do eu-individual desesperado, da inadequação do sujeito aos valores e normas capitalísticos, e muito mais. Isto se traduz em diagnósticos-verdade, palavras-de-ordem. Cumpra-se! Sob a arrogância do poder médico, quem duvida? Em tal contexto, a loucura se alastra por toda parte, não como experiência de abertura a novas semiologias, a novos ares, a novas terras, a uma nova Terra, ao novo, enfim, mas como esvaziamento de sentido da existência, fim de mundo, apocalipse, noite eterna, buraco negro... Confira a alta cotação das religiões no mercado espiritual do medo. A ideação suicida, suas tentativas, o próprio suicídio, a auto-flagelação de jovens, o grande medo tornado fobia, são sintomas da angústia inominável do tecido social em decomposição. Uma psiquiatria sem pesquisa psicopatológica e epistemológica, além de se constituir como psiquiatria ela mesma deprimida, atua como especialidade médica que cauciona o sofrimento psíquico e o bioproduz, daí retirando lucro, poder, prestígio, reverência e status social.
A.M.
segunda-feira, 19 de abril de 2021
POLÍTICA DOS CORPOS NÃO SÓ ORGÂNICOS
Para Deleuze e Guattari os termos micropolítica, cartografia, esquizoanálise, estratoanálise, rizomática e pragmática são sinônimos e funcionam como platôs, zonas de intensidade contínua, isto é, linhas ligadas a determinadas dimensões de multiplicidades: linhas de fuga, círculos de convergência, cadeias moleculares, estratos, etc. A micropolítica não pretende devir uma ciência nem conhece a cientificidade ou a ideologia, mas apenas agenciamentos maquínicos de desejo e coletivos de enunciação. A micropolítica, antes de tudo, repousa sobre uma concepção singular do corpo e do desejo. Um corpo não se restringe a um organismo. Da mesma maneira, o espírito de um corpo não se reduz à alma do mesmo. O espírito não é melhor, porém é volátil, enquanto a alma é gravífica, centro de gravidade. Por conseguinte, não se trata do corpo da medicina ou do fitness, mas do corpo no sentido espinosista, nietzscheano. Isto é, por um lado, o corpo apreendido na sua capacidade de afetar e ser afetado, na sua dupla dimensão de atração e repulsão. Por outro lado, trata-se de um corpo entendido como uma relação entre forças ativas e reativas. Qualquer relação de forças é o que define um corpo: químico, biológico, social, político.
(...)
Rafael Estrada Mejia
domingo, 18 de abril de 2021
sábado, 17 de abril de 2021
NOVOS MUNDOS
A subjetividade moderna é atravessada e determinada por mil fluxos eletrônicos que chegam de fora e de todas as partes. Dizer "eu sinto", "eu penso", "eu percebo", "eu ajo", etc, são funções subjetivas desatreladas ao nível da consciência (ou intencionalidade) da mesma. Politicamente o eu tornou-se um cadáver gordo. Esse dado constitutivo do real atual atesta o momento histórico de um aniquilamento do sentido da existência. Olhe para todos os lados, todos os cantos, todas as terras, todos os países, todas as nações e constate a dissolução profunda dos valores e das crenças. No entanto, ao invés de apelar para a salvação religiosa (mesmo a ciência e o capital tornaram-se religiões laicas...), por que não considerar que a experiência de erosão do sentido da existência pode ser um profundo desejo do novo? Por que não criar novos modos de viver?
A.M.
(19 DE JANEIRO)
Até esta chegar às suas mãos
eu já devo ter cruzado a fronteira.
Entregue por favor aos meus irmãos
os livros da segunda prateleira,
e àquela moça —a dos "quatorze dígitos"-
o embrulho que ficou com teu amigo.
Eu lavei com cuidado o disco rígido.
Os disquettes back-up estão comigo.
Até mais. Heroísmo não é a minha.
A barra pesou. Desculpe o mau jeito.
Levei tudo que coube na viatura,
mas deixei um revólver na cozinha,
com uma bala. Destrua este soneto
imediatamente após a leitura.
Paulo Henriques Britto
PROCURA-SE UM COMUNISTA
Procura-se um comunista, no desespero do momento histórico. Sério. Procura-se um comunista para uma cerveja, um vinho, um rabo-de-galo, uma pinga, uma catuaba, o que vale é comoção do encontro. A legenda da foto do Instagram está pronta: um brinde ao lado do último comunista brasileiro. O problema é achar o personagem.
Procura-se esse comunista e esse comunismo que tanto assombra a família brasileira nas correntes de WhatsApp - sejam nos grupos amadores e espontâneos ou nas milícias virtuais do caixa 2 do Bolsonaro.
Não vale esse suposto, teórico e pseudo-comunismozinho do PT, partido nascido nos sindicatos e nas comunidades eclesiais de base da Igreja Católica, uma legenda carola por excelência, democrata-cristã demais da conta, papa-hóstia. Muito capitalista e burguês para o meu gosto.
(...)
Xico Sá, El País, 26/10/2018, 15:02 hs
sexta-feira, 16 de abril de 2021
quinta-feira, 15 de abril de 2021
terça-feira, 13 de abril de 2021
A SAÍDA É LOGO ALI
A experiência capsiana é (ou deveria ser) movida por dois conceitos. São eles: o “cuidado ao paciente” e o “técnico em saúde mental”. A criação desses conceitos emerge no interior da prática com o paciente. É aí onde o “psicossocial” interpela o “biomédico” como parte de uma luta diária em prol de regimes ético-estéticos inauditos. Isso pode parecer estranho e demasiado abstrato. Lamento que não o seja ainda mais abstrato: é que o puro afeto não tem forma. A abstração ordinária (perda das formas instituídas) está inscrita em cada gesto como o que inova e faz dos modelos fixos peças recicláveis em arranjos clínicos disformes. O Caps é a clínica-linha como signo de vida na crueza do real-social. O cuidado ao paciente funciona em alianças institucionais e fluxos atrevidos rasgando convenções arcaicas. Isso margeia a periferia dos espíritos que resistem à infâmia e a vergonha. O técnico em saúde mental é o que ultrapassou as divisões entre disciplinas e entre os saberes e se transferiu para a técnica, aí onde já não há mais fronteiras. O contato com a loucura (este não é um conceito médico) é regido pela percepção do caos da psicopatologia num mundo fora e dentro de nós, técnicos do equilibrismo. Sim, não é para qualquer um. Não, não, não é mesmo.
A.M.
AO TÉCNICO EM SAÚDE MENTAL
Considere o paciente (ou usuário de um serviço) antes de toda moral julgadora. Lembre-se que a existência é puro devir, e por isso vertigem, risco e potência. Essa é uma maneira de enxergar o mundo que busca apreender a passagem do tempo como sendo a própria subjetividade. Há só devires. E mais: considere que o que distingue os seres (humanos e inumanos) não é o gênero, a função, a forma, o status, a raça, o credo, etc, mas os graus de potência. A instituição medicina não sabe disso, não quer isso, não quer saber pois funciona essencialmente com formas visíveis. Isso não é um mal, mas uma postura clínico-teórica insuficiente para encontrar a diferença em psicopatologia. Saia da ótica médica marcada pela ciência positivista, pelo mecanicismo newtoniano e pela adesão ao mercado de consumo desenfreado. Escape dos horrores do capital. Adote uma posição ético-estética. no dia-a-dia da clínica. Despsiquiatrize-se. Os fluxos vitais que animam o corpo do paciente são os do desejo-produção, não os do desejo coagulado, cronificado, humilhado, desejo-produto, desejo-em-falta, carência infinita. Experimente o Encontro ao escutar antes que a escuta, ao Amar antes que o amor. Faça o acontecimento. Não há fórmulas, receitas ou protocolos. Arrisque...jogue os dados do acaso. Ou então, tome a benção ao doutor... e peça autorização para existir.
A.M.
sábado, 10 de abril de 2021
segunda-feira, 5 de abril de 2021
domingo, 4 de abril de 2021
SUBJETIVIDADE E TEMPO
(...) (...) Tudo o que é subjetivo remete ao “fora” porque se refere ao mundo. Não há como situar a subjetividade“dentro” de algo ou “acima” do mundo, como querem as Transcendências, mesmo as disfarçadas. Na matriz teórica de tais posições, está a crença no Ser e portanto a negação do tempo. Ao contrário, conforme H. Bergson nos ensinou, não é o tempo que está em nós, nós é que estamos no tempo, enfiados num tecido que não é o da história mas o do devir. A subjetividade-está-no-mundo. Tal assertiva fenomenológica serve de ponto de apoio para uma clínica em produção, em movimento, e não como produto final. É fato que a psiquiatria, tomada em seu percurso epistemológico, nunca formulou uma teoria da subjetividade. Talvez, na vertente jasperiana, haja um esboço do que estamos nos referindo, ao se falar do eu e de suas alterações. Mas isso é muito escasso se considerarmos a gama de condutas ditas psicopatológicas que figuram na CID-10, cap. F. Neste sentido, uma pergunta se impõe: o que é o “psíquico”? Ora a subjetividade ultrapassa o “psíquico”. Este padece de versões marcadas por uma espécie de “interiorização” do universo objetivo que permaneceria estático, ou pior, jogado às alturas do imaginário, espécie de epifenômeno sobrevoando o que se considera matéria. Entretanto, se nos basearmos no tempo, tudo muda. Tal universo não estará apenas voltado para fora, mas será o Fora. Não mais composto por formas estáveis ou substâncias formadas. Isso é o Fora, ou seja, o Caos. Pensar o “subjetivo” de tal perspectiva é incluir o tempo, a passagem, a “durée”, ao estilo bergsoniano. Portanto, convém não falar em “subjetividade” mas em “processos subjetivos ”ou “modos de subjetivação”.
(...)
A.M.
ILEGAL, IRRACIONAL E ANTICRISTÃO
Enviado ao Supremo por ter compartilhado goles de tubaína com Bolsonaro, o ministro Nunes Marques fez mais um favor ao seu patrono: com uma canetada, autorizou o funcionamento de igrejas no auge da pandemia. Seu despacho é ilegal, irracional e anticristão.
A decisão é ilegal porque os decretos de governadores e prefeitos que proibiram momentaneamente a realização de cultos e missas estão escorados na Lei 13.979. Foi sancionada por Bolsonaro. Permite a estados e municípios impor medidas restritivas para inibir a proliferação do coronavírus.
O despacho é irracional porque um único ministro contrariou decisão do plenário da Suprema Corte. Por unanimidade, o tribunal reconheceu que governadores e prefeitos têm poderes para decretar medidas sanitárias restritivas no combate ao coronavírus em seus territórios.
O canetaço da toga de estimação de Bolsonaro é anticristão porque atropela até as sagradas escrituras. Nunes Marques tratou as tábuas de Moisés com desprezo abjeto. O vírus, como se sabe, mata. E a conversão de igrejas em covidários promove uma releitura homicida do "não matarás".
Num dia em que o total de mortos por covid ultrapassou a marca de 330 mil, Nunes Marques fez uma rara concessão ao óbvio: "Reconheço que o momento é de cautela, ante o contexto pandêmico que vivenciamos."
Mas o ministro transformou o óbvio em alicerce para a insanidade: "...Justamente por vivermos em momentos tão difíceis, mais se faz necessário reconhecer a essencialidade da atividade religiosa, responsável, entre outras funções, por conferir acolhimento e conforto espiritual", escreveu.
Chama-se Associação Nacional de Juristas Evangélicos a patrocinadora do recurso ao Supremo para abrir as igrejas. Há dúvidas quanto à legitimidade dessa entidade para se dirigir ao Supremo em nome das congregações.
Certos "juristas", "magistrados" e "autoridades" defendem os interesses de Deus com tal desenvoltura que vão acabar forçando o Todo-Poderoso a provar que existe, enviando Jesus de volta à Terra para sussurrar nos ouvidos dos seus defensores:
"Amai, senhores, amai. UTIs cheias pedem igrejas vazias. O 'conforto espiritual' pode ser obtido online. Preocupados com o dízimo? Lembrem-se do seguinte: a morte do rebanho extingue a coleta."
Josias de Souza, UOL, 04/04/2021, 05:54 hs
sexta-feira, 2 de abril de 2021
IN LIVE
Em três minutos de análise da live do capitão neste 1º de abril, a imagem do autoritário, despreparado, desorganizado e egoísta. São esses os atributos que podem ser identificados quando se assiste à fala do capitão. Como desdobramento dessas qualidades, estão a infantilidade, a impaciência e a dissimulação.
Não é preciso percorrer os 58 minutos de exposição para entender do que se trata o capitão-deputado.
Fico em três minutos sem analisar as mensagens, as palavras em si, mas em relação ao conjunto dos sinais da sua comunicação.
Cabelo à escovinha, úmido, como quem saiu do banho para o "programa", mostra que tem preocupação em se apresentar bem, mas os ombros levantados e ligeiramente projetados para a frente demonstram tensão e falta de segurança - possivelmente está com os pés cruzados sob a mesa, um ensaio de movimento de quem vai pular em cima do outro.
Além disso, coloca-se ligeiramente à frente dos dois "parceiros de live", sentados ao lado dele, indicando que é o chefe. Uma postura típica que tem reforço numa fala recorrente de quem "quem manda aqui sou eu".
A cabeça projetada para a frente, como o queixo ligeiramente erguido, mostra, além da arrogância a vulnerabilidade, a insegurança. Como se a sua grande missão fosse a de desmentir e de desqualificar quem o contesta. Esse modelo que é impresso e se reproduz nas suas redes sociais, o "seu" exército, cuja atuação se baseia na intimidação.
A postura autoritária aparece também na maneira como apresenta os coadjuvantes do seu programa. Dá os nomes de cada um, porém, ao fazê-lo, não olha para eles e nem abre espaço para os dois fazerem quaisquer gestos, apontando com o dedo polegar - eu mando!
Numa manifestação inequívoca de autoritarismo, introduz "um dos mais novos ministros" sem lhe dar qualquer importância, num movimento de mão, como se estivesse empurrando para o lado algum objeto, revela desdém, mas que alimenta o servilismo de Roma, o tal ministro da Cidadania, que se apoia com as duas meias-mãos na mesa e mantém um sorriso beatífico de quem se sente ungido por mãos divinas a pertencer ao centro do poder.
A falta de repertório, a pobreza de vocabulário e estrutura de discurso, denota despreparo. Isso fica evidente nos primeiros três minutos da live e vai se repetindo monotonamente ao longo de quase uma hora. Ao anunciar a presença do presidente da Caixa, observa que o auxílio emergencial, uma das suas pautas, "tem tudo a ver coma Caixa também". Tem dificuldade de elaborar frases simples que contenham uma informação completa, como por exemplo: a Caixa Econômica Federal realiza os pagamentos dos beneficiários do auxílio emergencial.
O capitão-deputado tem pressão, é impaciente, quer se livrar dessas histórias de pandemia, de gente morrendo, de hospitais lotados. Nada disso o sensibiliza. Mas tem uma tarefa a cumprir e isso é representado pela mesa de "trabalho" cheia de bilhetinhos para alguém que não consegue ter uma linha de raciocínio estruturada, precisa ser alimentado pouco a pouco com informações em doses homeopáticas.
Quando inicia a sua transmissão olha para o conjunto da papelada à sua frente - dizendo que tem muita coisa importante para falar - mas está meio sem rumo - olha de um lado a outro e pega a primeira folha de papel sobre a mesa, numa ordem em que o capitão consegue entender o que vem primeiro, mas tudo apresentado de maneira telegráfica, em informação, mas contendo afirmações. São o ponto de partida para um discurso genérico. Ele não consegue elaborar raciocínios complexos ou juntar informações de maneira integrada.
E vai para a leitura, informando que "o governo federal continua liberando recursos para leitos de UTI". É interessante observar que, ao terminar de fazer a frase sucinta, joga o papel sobre a mesa, descartando, como se o assunto não tivesse a menor importância. Mostra uma certa impaciência e despreparo - sem trazer números, descrever processos, ou indicar concretamente como são realizadas ou coordenadas essas ações. Não tem paciência para os fatos. Portanto, não tem "faltado leito". Porém, para afirmar o que a realidade desmente, apela para a cumplicidade do novo-ministro Roma, olhando para ele pela primeira vez, apoiando-se no servilismo do funcionário que anui. A insegurança, mesmo com a roupagem de uma falsa convicção, aparece. Não posso mentir sozinho, diz sem falar. Que afundemos todos juntos! Reitera sem palavras.
O capitão precisa sempre de uma pequena plateia para garantir a ele mesmo um reforço de confiança. Tem o cercadinho do lado de fora do Palácio da Alvora, que o vitamina e os puxa-saco do WhatsApp. São essenciais para que ele fale com convicção. Não possui autoconfiança, precisa de claque, de alguém abanando a cabeça e babando ovo. Muito inseguro.
É contraditório essencialmente porque não tem recurso de organização lógica. Ainda sobre os leitos de UTI, diz que não está faltando, e se desdiz meio minuto depois, "mas se estiver faltando é falta de planejamento por parte dos interessados". Nesse sentido, reproduz um padrão recorrente, que é o de transferir responsabilidade quando há algum problema para cuja solução é cobrado, isentando-se.
É deliberadamente vago, recurso bem ao gosto do populismo: "o governo não mede esforço" para resolver a situação. Nunca demonstra concretamente os processos, ou descreve os resultados. Mantém a fala em abstrato, permitindo que, a partir daí, se criem slogans e histórias - na sua maioria fruto de imaginação paranoica - alimentando um público com perfil semelhante: despreparado, infantil, raivoso e autoritário.
O capitão-deputado por 27 anos tem o modelo mental perverso dos insensatos, dos tolos determinados, dos ignorantes, que usam uma meia informação para desmentir a realidade. Não falta seringa, comemora, lembrando que sofreu "pancada", com o Pazuello - sócio na tragédia, mas que "hoje ninguém fala que falta seringa". Sim capitão, não falta seringa porque não tem vacina. Seringas são usadas para aplicar a vacina.
A maneira do capitão-deputado se expressar, ligeirinho, às vezes tropeçando na própria língua, mostra a pressa de quem quer se livrar de um tema sobre o qual não tem conhecimento necessário, incapaz que é de analisar. Fica na pressa. Foi assim que mandou as pessoas que queriam vacina "comprar na casa da mãe". O capitão se vale do senso comum, da percepção ligeira, da obviedade e daí a impaciência quando lhe pedem explicações. Não as tem. Usa os palavrões como vocabulário de apoio.
A cena montada no Palácio da Alvorada para a live do capitão reformado revela com precisão como funciona a cabeça dele. Os papéis com os "lembretes", que são a pauta do programa, ficam enfileirados numa lógica confusa. Porque pega um que está no meio de uma sequência, indicando que os assuntos têm uma prioridade aleatória, ao gosto do chefe. Vai de pedaço em pedaço de papel, olhando aqui e ali, fazendo escolhas pontuais, porque não tem a capacidade para olhar o todo, a partir da sua complexidade, dentro de uma organização integrada.
Outro ponto importante que estrutura a imagem que pretende projetar e fortalecer é a de "coitadismo". Conta que é vítima de pancada, de massacre contra si pelos de sempre, a mídia, em especial.
Uma estratégia básica de vilões, quando são pegos com a mão no butim, é tentar se passar por vítima. Assim, cria algozes e distrai o público do que é está acontecendo. Na vitimização, o vilão conta que busca soluções, mas que é "impedido" - ele lembra que foi castrado - criando também um discurso em que os malfeitores são sempre os outros.
Mas é pura prestidigitação. O vilão não consegue esconder a sua natureza. O "não estou nem aí" - quando fala sobre leitos de UTIs é visível, ao se referir à compra de "material para entubação". Sim, o corpo fala. Com um gesto padrão de quem se "livra do problema", joga o papel em que está o lembrete sobre as ações do desgoverno dele, passa ao tema seguinte sem parar um segundo que seja para mostrar apreço, respeito por aqueles que são os personagens mais trágicos da pandemia: os doentes, os mortos, os parentes, o povo exposto à insanidade da gestão da pandemia.
Sim, o capitão deputado não está nem aí. Em apenas três minutos confirma, ao vivo e em cores: autoritarismo, despreparo, desorganização. Na contramão da realidade, usa o tempo para criar inimigos e fugir à responsabilidade. Até que a sociedade diga: capitão, não estamos mais aí para você.
Olga Curado, UOl, 02/04/2021, 13:36 hs