domingo, 25 de abril de 2021

O QUE É DEVIR?


1. Em Guattari, como em Deleuze, devir não é identidade - nem processo de produção ou fragmentação de identidades; devir não é mecanismo de territorialização de virtualidades quaisquer sob uma atual e transcendente forma-sujeito, mas um processo marcado por uma indecidibilidade virtual no seio da própria subjetivação – uma espécie de experimentação potente de múltiplas intensidades (por isso, Deleuze e Guattari falavam em devires-moleculares, inorgânicos, mulher ou homossexual); eles explicavam que o devir só é possível quando se é minoritário: não há devires-majoritários, devires-identidade, devires-sujeito-fixo. Elementos majoritários são os organizados por um aparelho de captura ou de estado; não podem devir porque não são capazes daquela “marginalização positiva” de que fala seu fragmento. Não há devir-homem-branco-europeu-cristão, mas organização, estratificação e usurpação do corpo sem órgãos criando sobre ele um estado subjetivo, uma identidade imóvel. Eis o que Deleuze lembrava, em Mil Platôs, como o juízo-de-Deus: a organização demasiado fixa dos órgãos sobre o corpo sem órgãos.

2.  Como expressar, do devir, uma intuição simples? Aqui muitos caminhos se cruzam: desde a inescapabilidade do devir como o movimento do eterno retorno do diferente, em uma evocação de Nietzsche, até a interpenetração e a coexistência intensa entre campos da memória, do atual e do futuro (que Nietzsche chama de “o intempestivo”, Foucault chamava de “o atual, o interessante”), em que Deleuze termina por estender seu bergsonismo – a grande passagem das três sínteses do tempo, em Diferença e Repetição, me parece um texto exemplar, nesse sentido.Parece que recaímos em um problema dos mais interessantes da filosofia: como exprimir o devir? A linguagem é, também, um eficaz aparelho de captura; ela também estratifica, faz estado; exprimir o devir passa por uma tentativa (poética, de imagens móveis, talvez) de introduzir o devir, com toda a complexidade bergsoniana dos lençóis do tempo, no interior de uma experiência que é a própria linguagem filosófica. Por isso, não há explicação simples em “O que é a filosofia?” para a definição da filosofia como “criar conceitos”. Deleuze e Guatarri dizem que o gesto supremo da filosofia é mostrar que o plano de imanência, no qual o conceito se “auto-põe” esteve, desde sempre, ali. Mostrar que pensar, criar conceitos, só se faz supondo o plano de imanência – corte e crivo do caos, que debela o caos ensaiando conservar algo de suas velocidades absolutas.

3. Eis aqui um agenciamento estranho: pensar foucaultianamente os produtos dos devires; não como identidades ou reterritorializações em formas fixas de subjetividade (a forma-homem, o “Ego”), mas como experiências de um processo de subjetivação (Deleuze preferia falar em “individuação”, ou “hecceidade”) que não podem dispensar uma dessubjetivação imanente e positiva – algo próximo do que você escreve: “entrar em aliança”, em ressonância, com a diferença ontológica, (isto é, deixar as intensidades passarem entre os corpos numa dissolução das subjetividades identitárias para lançá-las em um devir-qualquer, em conexão com o movimento diferenciador do próprio ser). Devir é um jorro incessante de criação que não tem na origem nem um vazio constitutivo, nem uma experiência do negativo, tampouco um Sujeito a dirigir-lhe a atualização; o devir é o movimento de criação do próprio real, é processo de produção do real. Devires-minoritários, como um movimento fundamental de micropolíticas do desejo, são o que nos conecta com a diferença que, também em nós - no campo subjetivo intensivo do qual nosso “eu” é tributário-, lança-nos em um devir; parece claro que o desejo opera aí, no lançar-nos a esse movimento indomável, selvagem, operando como uma causa imanente: pois o desejo, já diziam Deleuze e Guattari em “Kafka: para uma literatura menor”, é a imanência; e a imanência é, também, a justiça.


Murilo Duarte Costa Corrêa

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