A Academia Brasileira de Letras se compõe de 39 membros e 1 morto rotativo...
Millôr Fernandes
Este blog busca problematizar a Realidade mediante a expressão de linhas múltiplas e signos dispersos.
Liga dos Comunistas
Primeira organização comunista internacional do proletariado, fundada em 1847 em Londres por Marx e Engels, em consequência da reorganização da Liga dos Justos, associação secreta alemã de operários e artesãos, que surgiu na década de 1830. O lema da Liga dos Comunistas foi: "Proletários de Todos os Países Uní-vos!" e seu programa o "Manifesto do Partido Comunista". Os principais pontos de apoio da Liga se encontravam em Londres, Paris, Bruxelas, na Suiça e na Alemanha. Os membros da Liga tomaram parte ativa na revolução de 1848, principalmente na Alemanha.
Marx e Engels se pronunciaram contra a opinião sectária e reformista de alguns membros da Liga. Depois da detenção da maioria de seus ativistas a influência dos oportunistas se reforçou no seio da Liga. Em 1852, a Liga proclamou a sua autodissolução.
A Liga dos Comunistas foi a primeira organização proletária que atuou com base nos princípios do comunismo científico e foi a predecessora da Primeira Internacional.
(do site "Dicionário Político")
UNIVERSO DA DIFERENÇA
Nada é estável. Mesmo a natureza, com seu cortejo teológico anexado à crença humana na “maternidade”, é fluida e mutante. Mãe-natureza, você nos socorre? Nada. Não há garantias, salvação ou igualdade de direitos. Quem estabeleceu os direitos? A natureza é em essência cruel e indeterminada, ainda que bela. Esqueça a moral. O argumento da prática é o empírico invisível e fugidio. Defensores do estado (ou do mercado) se pegam em discursos intermináveis. Eles querem mais é controlar a natureza.Ao contrário, o universo da diferença não tem controle, não tem cronos. O caos se avizinha num tom musical. Aproveite. A questão é a da alegria, força maior. Encontrar quem o socius codificou como o excluído, mesmo que, pela via da Ciência, seja o incluído. As palavras iludem e fazem de um problema, a solução. Inverta: faça da solução um problema. Nada a compreender, mas a aceitar. Quem delira espaços, culturas, continentes, povos, políticas e a abertura do cosmos? Quem habita zonas produtivas do inconsciente? Como chegar às angústias do seu mundo? A psiquiatria “confessa” o fracasso. A psicanálise, arrogante, brocha. Estamos, pois, a buscar espíritos sensíveis que encontrem a diferença sem o bom senso do cristianismo. Traçar linhas da existência onde a razão vacila. Investir um risco infinito: afinal, quem é você? Não uma identidade, estou certo. A hora do sonho cedeu lugar à exigência de uma tarefa clara. Foi à cidade? Pagou as contas? O coração da gente é o de uma rua da cosmópolis. Nada é fixo. Hoje, o alimento dos deuses do capital envenenou raízes edipianas. Resistir, resistir à infâmia, à vergonha e ao fascismo na medida em que nascer o inumano em nós. Estar em carne, mesmo em espírito.Viver de paradoxos. Pertencer ao universo que vaza representações e canções à margem. Desejar linhas minoritárias do corpo.A psicologia não quer. Ela odeia a diferença. Não combina. Tem ares de ciência rasa. Tampouco a psiquiatria e a sociedade. Elas se alimentam de medianos. Oh, os medianos! Há boas intenções, sabemos. Afinal, o humanismo marcou nossos gens. Mas um grande riso sem motivo tornou-se o motivo do riso. A hora do acontecimento se aproxima.
A.M.
Obs.: texto revisado, ampliado e republicado.
SINAPSES DA ALMA
Os transtornos mentais não explicam nada. Eles é que deveriam ser explicados. Isto significa que a psiquiatria biológica (bem entendido, a psiquiatria hoje hegemônica) funciona com base em entidades clínicas fixas, endurecidas, coisificadas, os chamados transtornos. Munida deste apriorismo metodológico, a pesquisa clínica não avança, não descobre, não cria, não inventa, desconhecendo o que se passa de fato com o paciente (ele não é escutado, ao contrário) bem como com as origens (causas) do seu estado psíquico "alterado". É uma constatação prática, até certo ponto óbvia. Olhe em torno, escute relatos, leia artigos e livros de psiquiatria. É tudo atual. O pensamento está ausente. Um dado complicador é o seguinte: o enquadre teórico desta psiquiatria notoriamente conservadora (em termos técnicos, teóricos e políticos) conta com traços autísticos. Eles travam o diálogo mediante a ajuda de fora. São as neurociências. Essa teologia científica segue, sem dúvida, um cortejo sináptico de importantes descobertas imagéticas. No entanto, tais imagens, feitas para serem vistas no écran, passam a funcionar num regime de visibilidade onipresente, constituindo o próprio universo institucional da psiquiatria: transtornos mentais-recheados-de-imagens, descarnados, desossados, cadáveres gordos. Nada explicam. Mas, como dissemos, ao contrário, deveriam ser explicados.
A.M.
O QUE É UMA PSIQUIATRIA MENOR?
É uma psiquiatria da alma. Não a alma usada nas religiões, mas a alma do mundo das coisas, a que se desloca veloz e invisível: o pensamento. A psiquiatria cuida disso. Ou deveria. Pelo menos, quando ele sai dos trilhos...
Uma psiquiatria menor busca captar o paciente através de percepções finas e encontrá-lo onde jamais alguém o encontrou. Uma ética de força e criação guia suas ações, mesmo as farmacológicas.
Seu instrumento de pesquisa e intervenção prática (clínica) é uma psicopatologia aberta às mil influências (saberes) do que está longe e ao mesmo tempo tão perto. Seu objetivo é sondar o fora ( não como espaço) mas como ligação ao cosmos aqui em terra firme. É uma psiquiatria do real.
Considera antes de tudo, os corpos-em-relação, os corpos-em-vibração, o que move o paciente e o técnico: afetos.
A política existe como trama de poder onde ela está incluída. No entanto, para além ou aquém do regime binário direita/esquerda, ela é apaixonada pela diferença, pela singularidade e pelo múltiplo.
Uma psiquiatria menor é grande. Psiquiatras neuro-maníacos lhe são estranhos.
A.M.
CAPS: BASES PARA UMA CLÍNICA PSICOPATOLÓGICA
De início, pode-se identificar (entre outras) duas dificuldades que condicionam o funcionamento de um Caps. Ambas se ligam à realidade fora do Caps. Sem ordem de importância, a primeira está acoplada à Rede de Atenção Básica, a segunda ao perfil clínico de um paciente do Caps. Elas estão ligadas entre si, consumando-se na composição dos usuários e no projeto terapêutico singular (PTS). Estão dentro e fora como duas realidades numa só: a Clínica. Se esta vem de fora, o Caps é uma realidade voltada para fora. Mas se esse "fora" está "dentro", é possível tornar o “fora” a própria realidade da Clinica. Então, do que se trata, concretamente, dizer que “ o Caps é o próprio fora?" Significa dizer que o “fora” é o real, o real-concreto,o real-social, o mundo em seu fluir incessante configurando a clínica – o Encontro - como superfície (multiplicidade) de práticas voltadas à produtividade e à autonomia do paciente. Trabalhar sob essa ótica implica num compromisso ético do técnico em saúde mental. Assim, não se trata de atender o paciente ao modo mecanicista (consertar um organismo) mas de fazer produzir linhas de diferenciação existencial, ainda que sob as condições mais adversas. É que a semiologia da loucura (dissolução dos códigos estáveis, desorientação da cosnciência, fim do mundo, apocalipse...) incomoda aos serviçais do senso comum e do bom senso, esteios subjetivos da Ordem Estabelecida. O universo da loucura foge do lugar da consciência normativa. O trabalho com o paciente está, pois, para além do paciente e ao mesmo tempo é o paciente como o Outro-em-nós colocado como linha de risco, risco de enlouquecer. Quem sou? O que devo fazer? Estamos diante dos perigos constitutivos da clínica e do serviço no qual ela se instala e se produz. Talvez seja possível apenas começar a pensar como: 1- evitar o reducionismo tosco da visão biomédica, não usando a CID-10, as imagens do cérebro e os psicofármacos como únicos (ou principais) promotores de saúde mental; 2- evitar os princípios morais da racionalidade, do eu e da consciência moral na avaliação clínico-psicopatológica; 3- não usar as relações de poder inscritas no contato com o paciente como a forma pura da técnica, poder que remete ao item 1; 4- não considerar o paciente duma perspectiva estritamente individual, pessoal, egóica, narcísica, devendo-se incluir na etiologia (origem) os vetores sociopolíticos, econômicos, culturais, institucionais, familiares, espirituais, etc, que produzem modos de subjetivação; 5- Não “sentir pena” do paciente, mesmo quanto aos mais graves, humilhados e destruídos, livrando a prática clínica da aura de um humanismo salvacionista e esgotado.
A.M.
Obs.: texto originalmente publicado em 09/08/2017, revisado, ampliado e republicado.
NADA DE NOVO SOB O SOL
(...) Mesmo deixando de lado a experiência histórica, que nos demonstra que nunca uma classe privilegiada despojou-se, total ou parcialmente, de seus privilégios e que nunca um governo abandonou o poder sem ser obrigado a fazê- lo pela força, os fatos contemporâneos bastam para convencer quem quer que seja de que os governos e os burgueses procuram usar a força material para sua defesa, não somente contra a expropriação total, mas contra as mínimas reivindicações populares, e estão sempre prontos a recorrer às perseguições mais atrozes, aos massacres mais sangrentos. Ao povo que quer se emancipar, só resta uma saída: opor violência a violência. Disso resulta que devemos trabalhar para despertar nos oprimidos o vivo desejo de uma transformação radical da sociedade, e persuadi-los de que, unindo-se possuem a força de vencer. Devemos propagar nosso ideal e preparar as forças morais e materiais necessárias para vencer as forças inimigas e organizar a nova sociedade. Quando tivermos força suficiente, deveremos, aproveitando as circunstâncias favoráveis que se produzirão, ou que nós mesmos provocaremos, fazer a revolução social: derrubar pela força o governo, expropriar pela força os proprietários, tornar comuns os meios de subsistência e de produção, e impedir que novos governantes venham impor sua vontade e opor-se à reorganização social, feita diretamente pelos interessados. Tudo isso é, entretanto, menos simples do que parece à primeira vista. Relacionamo-nos com os homens tais como são na sociedade atual, em condições morais e materiais muito desfavoráveis; e nos enganaríamos ao pensar que a propaganda é suficiente para elevá-los ao nível de desenvolvimento intelectual e moral necessário à realização de nosso ideal. Entre o homem e a ambiência social há uma ação recíproca. Os homens fazem a sociedade tal como é, e a sociedade faz os homens tais como são, resultando disso um tipo de círculo vicioso: para transformar a sociedade é preciso transformar os homens, e para transformar os homens é preciso transformar a sociedade. A miséria embrutece o homem e, para destruir a miséria, é preciso que os homens possuam a consciência e a vontade. A escravidão ensina os homens a serem servis, e para se libertar da escravidão é preciso homens que aspirem à liberdade. A ignorância faz com que os homens não conheçam as causas de seus males e não saibam remediar esta situação; para destruir a ignorância, seria necessário que os homens tivessem tempo e meios de se instruírem. O governo habitua as pessoas a sofrerem a lei e a crerem que ela é necessária à sociedade; para abolir o governo é preciso que os homens estejam persuadidos da inutilidade e da nocividade dele. Como sair deste impasse?
(...)
Errico Malatesta in Escritos Revolucionários - programa anarquista, 1903
A EQUIPE TÉCNICA EM SAÚDE MENTAL : 10 LINHAS PARA O MÉTODO DA DIFERENÇA
1-A equipe técnica é um dispositivo grupal. Ou seja, trabalha e funciona visando um objeto e um objetivo: o paciente e o cuidado.
2-O Cuidado é um conjunto de ações práticas, incisivas, velozes, até mesmo ações não-práticas (por exemplo, usar novos conceitos, fazer diagnósticos, etc) que redundam em ações concretas e mudam alguma coisa para outra coisa.
3-Pensar é também uma prática, já que não se trata do pensamento reflexivo, mas do pensamento-em-ato, pensamento-corpo. Pensar é um exercício perigoso. Nisso há uma distinção importante para com os métodos da Academia, impregnados de positivismo e falso humanismo.
4-De acordo com o método da diferença, há um estilo deshierarquizado da equipe atuar em saúde mental. Figuras de autoridade técnica e institucional (como o médico, por exemplo) são usadas tão só como tijolos nas relações de produção do Cuidado.
5-Em face da sua história (cf. M. Foucault) a psiquiatria ainda ocupa o lugar da verdade em saúde mental, tanto em em relação ao paciente, quanto aos demais técnicos e à sociedade como um todo. Com status médico, compromissos morais e políticos inconfessáveis, aparece como o centro de ação para o Cuidado. Mas não é. Apenas reduz ou suprime (quando consegue) sintomas.
6-A busca da diferença no paciente é ao mesmo tempo a busca da diferença na equipe, em cada técnico, independente do nivel de escolaridade, do status social, do poder nas relações de trabalho e de tantas outras assimetrias O método da diferença valoriza a potência de criar e não a verticalidade dos contratos de mando e comando.
7-O método da diferença se corporifica na clínica da diferença. Um cuidado, para ser verdadeiro e real, passa pela escuta do outro e das suas linhas subjetivas expostas.
8-Se observarmos um caps, um ambulatório, um manicômio, há pistas cotidianas muito claras que mostram o quanto a clinica da diferença está sendo traída. Tudo começa pela Escuta quando não há escuta.
9-É necessário auto-análise grupal como condição para a Escuta. A questão técnico-individual (qual a sua graduação?) é substituída por qualidades como o senso de observação, a intuição, a sensibilidade fina, a inteligência, a atitude de espreita, entre outras.
10- Fazer a clinica da diferença é fazer a diferença na clínica. E seguir um método que vai além dos funcionários da organização, seja pública ou privada. Este método implica na produção do desejo de buscar e expressar novas linguagens, outros mundos, sonhos. Uma ética do trabalho se alia a uma estética da loucura não médica.
A.M.
Obs. : texto revisado, ampliado e republicado.
A DIFERENÇA NA CLÍNICA
A análise dos afetos e dos sistemas de crenças substitui o insípido exame mental. Começa pelo corpo em ação, mesmo que este esteja imóvel. Linhas do corpo não são as do organismo físico-químico.Os afetos se traduzem em movimentos às vezes imperceptíveis.Preenchem outro corpo, o corpo das intensidades. Os olhos. O paciente é olhado nos olhos. Eles revelam algo do nível da consciência naquele momento. Ora, o nível da consciência está em contínua mudança, mesmo que tal fato não seja percebido. E geralmente não é, exceto em situações clínicas “grosseiras” como nos quadros orgânico-cerebrais.A consciência está sujeita à flutuações. Estas escapam à visão do médico. A análise da consciência é atravessada pelos afetos e suas expressões. O corpo visível, enquanto sujeito e objeto do pragmatismo social, se apresenta de imediato. “Ele está pragmático?”, pergunta nem sempre formulada, mas sempre pensada. No cara a cara psiquiatra-paciente (um antigo dispositivo) a questão básica é a do poder. Esse dado, tão discutido por Foucault, tem na proposta de uma clínica da diferença, o valor da realidade fabricada pela psiquiatria. Valor relativo pois o paciente de fato necessita de ajuda ou pelo menos algo deve ser feito em prol da vida. Ora, o Encontro torna-se uma sensibilidade não codificada em manuais de psiquiatria. Nada a propor senão linhas anormais da existência.A hora do tempo a-temporal se afirma.Um paradoxo.É a temporalidade como matéria irreversível, devir. Esta é a base (o tempo) para se pensar o paciente como um agenciamento de forças, estranho encontro regido pelo acaso, mas do qual não há como escapar. O paciente traduz um certo comportamento. Sob um olhar-clichê, ele se constitui como comportamento preso num regime de visibilidade. Não mais. Daí a rigidez do exame mental clássico ceder lugar a uma percepção fina construida na prática com o outro. Apesar de reconhecer a importância da fenomenologia, aqui não se trata dela. Tampouco se trata de um espiritualismo travestido de clínica. Buscamos construir um plano não hierarquizado. As relações de poder compõem esse plano junto a outras relações num continuum empírico sem forma. Tudo se passa num lugar sem lugar. Ao seguir a trilha do inconsciente produtivo em suas expressões à luz do dia, o percurso da diferença se defronta com o ato de criar. Ou seja, trata-se de algo que (ainda) não existe. Na verdade, o ato de criar é o ato de diferenciar-se. O formato da clínica não é o do psiquiatra atrás de uma mesa defronte ao paciente. Pode ser qualquer coisa, até mesmo a tradicional, desde que torcida e transformada. O que muda neste caso é a sua atitude e o rearranjo dos elementos vivenciados pelo paciente. Este não é um nome, mas uma vida, cerne da ética. A “garimpagem” dos signos-sintomas acontece no fluir da conversa. Uma atitude empática do psiquiatra amplia-se...Isto implica na construção de um campo perceptivo que não se restringe à pessoa, mas ao que a precede e lhe determina: o universo. A diferença não é uma coisa, mesmo se a coisa “valiosa” da visão humanista. A diferença torna-se. Ela é processo afirmativo inscrito nas ações do paciente, mesmo que sejam inadequadas e bizarras. É um grito. Ora, um psiquiatra biológico, em geral, quer calar ou afastar o grito.Nada de grito. Então, o método da diferença, para driblar e ao mesmo tempo usar os fármacos, é outro, trilha desconhecida a explorar. Neste sentido, o percurso do tratamento é incerto. As garantias técnicas se dissolvem. A clínica tradicional desabituou-se a encarar o vazio como resposta aos problemas ditos mentais. Voltamos à perda das referências pontuais e à subjetividade não individuada em papéis demarcados.Quem é o paciente? Quem é o psiquiatra? A partir de vivências múltiplas, o paciente talvez não queira ser normal, mas diferente. Não há o ser-paciente. Não há o ser-psiquiatra.
(...)
A.M. in Trair a psiquiatria
INCONSCIENTE-PRODUÇÃO
Não negamos que haja uma sexualidade edipiana, uma heterossexualidade e uma homossexualidade edipianas, uma castração edipiana - objetos completos, imagens globais e egos específicos. Negamos que sejam produções do inconsciente. Mais ainda, a castração e a edipianização engendram uma ilusão fundamental que nos faz crer que a produção desejante real é passível das mais altas formações que a integram, submetem-na a leis transcendentes e fazem-na servir a uma espécie de 'descolamento' do campo social em relação á produção do desejo, em nome de que todas as resignações são justificadas por antecipação.
G. Deleuze e F. Guattari in O anti-édipo
Congresso Internacional do Medo
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
Carlos Drummond de Andrade
QUEM DELIRA?
O delírio é considerado um sintoma (perigoso) pela psiquiatria. Por isso necessita ser controlado via fármacos. Na fenomenologia ele é um modo de existência, um ser-no-mundo. Para Freud, uma defesa contra o desejo homossexual. Já Lacan o via como uma espécie de "buraco" no simbólico, mais elegantemente chamado de foraclusão. São todas elas concepções atadas ao espaço psíquico. Pensamos outra coisa: através das linhas abstratas (sem forma) de Deleuze-Guattari, acessamos o delírio como produção coletiva. Neste sentido, todos podem delirar, restando saber onde, quem, quando, como, por que e para que. Observe os tempos internéticos on line. O desejo, em seus mil agenciamentos, se expressa... Isso põe o técnico em saúde mental (não só o psiquiatra) para além dos neurônios e das sinapses, ou seja, no real. Ou "na real".
A.M.
CAPS SEM REMÉDIO
O trabalho de equipe num Caps, para ser turbinado, compreende uma superação da hegemonia psiquiátrica. Não nos referimos à figura do psiquiatra (nada pessoal) nem aos seus equipamentos químicos (fármacos à mão cheia) mas à forma-psiquiatria, instituição secular registrada na mente e no DNA dos técnicos não-psiquiatras. É claro que há outros elementos em jogo, outras condições para a mudança. Mas essa questão é essencial. Ela implica na produção de novas clínicas, novas psicopatologias descoladas do modelo biomédico. Desse modo, o Caps sairia do ranço manicomial e do jeitão de ambulatório camuflado. Difícil.
A.M.
O Estatuto do Homem
Artigo Primeiro
Fica decretado que agora vale a verdade. Agora vale a vida, e de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo Segundo
Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo Terceiro
Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo Quarto
Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único
O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino.
Artigo Quinto
Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.
Artigo Sexto
Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.
Artigo Sétimo
Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor.Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.
Artigo Oitavo
Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida, uso do traje branco.
Artigo Nono
Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo Décimo
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único
Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.
Artigo Décimo Primeiro
Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.
Artigo Final
Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso e das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.
Thiago de Mello
(Santiago do Chile, abril de 1964 dedicado a Carlos Heitor Cony )
JANEIRO BRANCO DESBOTADO
Saúde Mental não é uma coisa. Tampouco uma mercadoria. Não se guarda no "eu" de cada um. Ao contrário, está no mundo. Ela é o mundo.
Desde 2014 veio (de Uberaba?) essa ideia para o discurso (raso) da mídia. Como não emocionar corações vulneráveis e sensíveis? A imagem é poderosa.
Deu um branco em mim.
Ninguém nunca viu (ou enxergou) o "mental". Como, então, dedicar um mês inteiro a falar sobre esse objeto mágico?
Um mês para refexões psicológicas e existenciais. Seria lindo se não fosse tolo. Qual o melhor mês para "viagens" no interior de nós mesmos? Talvez todos eles.
Saúde é tudo. Saúde Mental é tudo o mais...que tudo.
Na TV um psiquiatra fala da alvura de janeiro. Engasgou em duas sinapses e expeliu sete neurônios. O cérebro mente.
Ora, ora, pelas bandas do caps, do sus e do cuidado, a Saúde Mental anda meio estropiada.
No entanto, prossegue a ideia de janeiro esbranquiçar o tempo. Mas não olhe para cima.
As palestras ocorrem num clima de delírio racional. Sem máscaras ou olanzapinas.
Saúde Mental não é uma coisa, mas é coisa séria. Tanto que anda escassa. Sem manche a aeronave (enlouquecida) segue sem rumo.
Você entendeu.
A.M.
POLÍTICAS VITAIS
Há muitos doutores e eruditos que nos convidam a um olhar científico asseptizado, verdadeiros loucos também, paranóicos. É preciso resistir às duas armadilhas, a que nos arma o espelho dos contágios e das identificações, a que nos indica o olhar do entendimento. Nós só podemos agenciar entre os agenciamentos. Só temos a simpatia para lutar, e para escrever, dizia Lawrence. Mas a simpatia não é nada, é um corpo a corpo, odiar o que ameaça e infecta a vida, amar lá onde ela prolifera (nada de posteridade nem de descendência, mas uma proliferação...). Não, diz Lawrence, vocês não são o pequeno esquimó que passa, amarelo e gorduroso, vocês não têm que se tomar por ele. Mas talvez vocês tenham algo a ver com ele, vocês têm algo para agenciar com ele, um devir-esquimó que não consiste em se passar pelo esquimó, a imitar ou em se identificar, em assumir o esquimó, mas em agenciar alguma coisa entre ele e vocês – pois vocês só podem se tornar esquimó se o próprio esquimó se tornar outra coisa. O mesmo acontece com os loucos, com os drogados, com os alcoólatras. Há quem faça objeção: com sua miserável simpatia, você se serve dos loucos, faz o elogio da loucura, e depois os deixa de lado, permanece sobre a margem... Não é verdade. Tentamos extrair do amor toda posse, toda identificação, para nos tornarmos capazes de amar. Tentamos extrair da loucura a vida que ela contém, odiando, ao mesmo tempo, os loucos que não param de fazer essa vida morrer, de voltá-la contra si mesma. Tentamos extrair do álcool a vida que ele contém, sem beber: a grande cena da embriaguez com água pura, em Henry Miller. Abster-se do álcool, da droga, da loucura, é isso o devir, o devir-sóbrio para uma vida cada vez mais rica.
(...)
G.Deleuze e C. Parnet in Diálogos
PONTO MORTO
A minha primeira mulher
se divorciou do terceiro marido.
A minha segunda mulher
acabou casando com a melhor amiga dela.
A terceira (seria a quarta?)
detesta os filhos do meu primeiro casamento.
Estes, por sua vez, não suportam os filhos
do terceiro casamento da minha primeira mulher.
Confesso que guardo afeto pelas minhas ex-sogras.
Estava sozinho
quando um de meus filhos acenou para mim no meio do engarrafamento.
A memória demorou para engatar seu nome.
Por segundos, a vida parou, em ponto morto.
Augusto Massi
O PENSAMENTO DA SAÚDE MENTAL e o janeiro branco
Não acreditamos na crítica como ato que propicie uma criação. A criação é que propicia uma crítica. A criação vem primeiro. Saúde é um conceito nominal. Aparelho engendrado por tecnocratas do Estado, vive para a ideia, o imaginário, a transcendência e as boas intenções humanísticas. Com o conceito de mental ocorre o mesmo. Criar nada tem a ver com essa ladainha político-conceitual. A arte de criar conceitos, como diz Deleuze, é a aventura do novo. Em saúde mental, criar é despersonalizar-se sem culpa, ressentimento ou nostalgias egóicas. Começa pela ausência de títulos e pompas. Uma gratuidade.
Talvez qualquer Caps enfrente a desvalorização do usuário e da equipe técnica. Baixos salários e a trama do Estado corrupto. Apesar disso, uma alegria empurra os que querem criar, os artistas. Não os profissionais da arte, mas os que expressam um devir-arte para além e aquém das categorias do bom senso. Explicar essas coisas requer um longo aprendizado: sair do eu na direção das multiplicidades, sair de si para o fora rumo à loucura não-médica.
O espírito da reforma psiquiátrica vive atolado nas palavras de ordem do polvo estatal e em sonhos corporativos; psiquiatras firmam suas alianças macabras, seja com os laboratórios farmacêuticos, seja com seus pares. Um fascismo maquiado exibe-se à seco.
É por demais evidente que a sorte dos pacientes está ligada aos agenciamentos de forças –instituições sociais - que se materializam em práticas, desde que se saiba que a mente não é algo a ser consertado. A mente é o mundo. Tudo a fazer é preparar o paciente para enfrentá-lo. Ainda assim, alianças políticas pesam contra, já que o paciente não produz, não registra uma identidade (quem sou?) e não consome. Está fora do circuito da produção e ao mesmo tempo no interior da produção, produto coagulado. A questão do fora e do dentro merece ser considerada. Ela remete à política em psicopatologia. O paciente está fora dos códigos sociais e se submete a eles, tornando-se mais um código, até mesmo incluído em patologias tidas como menos graves: as neuroses.
Entretanto, quando a psiquiatria trabalha o desejo desde o interior da clínica, podemos chamá-la de psiquiatria materialista, clínica da diferença ou clínica das multiplicidades. Ela tece um território movente de criação; essa clínica não existe fora ou dentro de algo. Ela é imanente à produção. Tudo é uma coisa e outra. Primado do “e”. A saúde mental deixa de ser um aparelho conceitual encolhedor de mentes para construir uma superfície prática onde a clínica é vazada pelo coletivo, o mundo que o paciente terá que enfrentar, pois o mundo é ele mesmo. Saúde mental é um conceito a ser estilhaçado: saúde refere-se não apenas ao organismo, mas ao corpo; mental refere-se não apenas ao cérebro, mas ao mundo. Será possível, então, dizer corpo-no-mundo como na fenomenologia? Sim, desde que a extensão do conceito considere a potência do corpo e o caos do mundo. Potência e caos estão fundidos na produção de novas configurações subjetivas.O pensamento da saúde mental só existe enquanto ciência, filosofia e arte encadeadas em devires. O que se chama de reforma psiquiátrica é um rearranjo de poder dos modos de codificar a loucura. Desse modo não existe o devir, a não ser na fantasia e/ou no delírio. Ele não, se constitui como "pensamento", mas como saber classificatório para o qual a CID-10 e o DSM-IV são cartilhas mortas com respaldo jurídico e científico. A luta pela diferença passa, então, por uma rachadura no conceito de saúde mental. Feito isso, o espaço-tempo de trabalho com o paciente alarga-se ao ponto de não mais pertencer ao mercado da saúde mental e sim aos territórios coletivos conquistados no encontro com a loucura. Muda o conceito de transtorno mental ou o de doença mental, como antes era chamado. Quem é doente? O que é doença? Não há certezas. Esse fato é condição elementar para desfazer a saúde mental como organização da forma- Estado e substitui-la por uma clínica órfã e molecular, produzindo seus próprios códigos. Uma outra linguagem poderá surgir dos problemas (sempre há) que o paciente traz. O diagnóstico submete-se ao contexto social e não o contrário. Acreditamos que, desse modo, os técnicos se farão aliados de forças que eles mesmos tornam úteis em terapêuticas singulares. Ao pé da letra, diríamos: servir ao paciente ou .... à vida?
A. M. in Trair a psiquiatria
O HORROR DO HUMOR
Não se encontra nos livros de psiquiatria um conceito de afeto. Dito de outro modo, a pergunta "o que é a afetividade?" sequer é posta. Às vezes são encontradas aqui e ali definições ridículas, baseadas no pressuposto de que afetividade é tudo que não é consciência, pensamento, memória, atenção, fala, etc. É de fazer rir. Um raciocínio é assim produzido ao inverso, ou seja, pelo seu negativo.Dos manuais de psicopatologia (cada vez mais raros com a progressiva extinção desse campo de pesquisa) aos tratados de psiquiatria, os textos não assumem a auto-ignorância para com um tema tão essencial à clínica. Contudo, o mais grave ainda não é isso, e sim a construção de um conjunto pseudo-teórico sobre o humor sem quase nada se saber do humor. Um horror! O estado-de-ânimo (humor) decorre dos afetos e não o contrário. O humor se expressa antes de tudo como "afetos sob variados matizes". Trata-se de um dado facilmente observável no cotidiano dos indivíduos não necessariamente doentes. O mau-humor matinal. Ainda assim, surge e se afirma, nos dias atuais, o conceito de bipolaridade, esta pérola de inconsistência teórica e clínica. Os pacientes tendem a acreditar numa empulhação técnica que supostamente irá melhorar suas vidas psíquicas. Toneladas de psicofármacos são enfiados goela abaixo.
A.M
Quando ouvi o astrônomo erudito
Quando ouvi o astrônomo erudito,
Quando as provas, os números foram enfileirados diante de mim,
Quando me foram mostrados os mapas e diagramas a somar, dividir e medir,
Quando, sentado, ouvia o astrônomo muito aplaudido, na sala de conferências,
Senti-me logo inexplicavelmente cansado e enfermo,
Até que me levantei e saí, parecendo sem rumo
No ar úmido e místico da noite, e repetidas vezes
Olhei em perfeito silêncio para as estrelas.
Walt Whitman