O PENSAMENTO DA SAÚDE MENTAL e o janeiro branco
Não acreditamos na crítica como ato que propicie uma criação. A criação é que propicia uma crítica. A criação vem primeiro. Saúde é um conceito nominal. Aparelho engendrado por tecnocratas do Estado, vive para a ideia, o imaginário, a transcendência e as boas intenções humanísticas. Com o conceito de mental ocorre o mesmo. Criar nada tem a ver com essa ladainha político-conceitual. A arte de criar conceitos, como diz Deleuze, é a aventura do novo. Em saúde mental, criar é despersonalizar-se sem culpa, ressentimento ou nostalgias egóicas. Começa pela ausência de títulos e pompas. Uma gratuidade.
Talvez qualquer Caps enfrente a desvalorização do usuário e da equipe técnica. Baixos salários e a trama do Estado corrupto. Apesar disso, uma alegria empurra os que querem criar, os artistas. Não os profissionais da arte, mas os que expressam um devir-arte para além e aquém das categorias do bom senso. Explicar essas coisas requer um longo aprendizado: sair do eu na direção das multiplicidades, sair de si para o fora rumo à loucura não-médica.
O espírito da reforma psiquiátrica vive atolado nas palavras de ordem do polvo estatal e em sonhos corporativos; psiquiatras firmam suas alianças macabras, seja com os laboratórios farmacêuticos, seja com seus pares. Um fascismo maquiado exibe-se à seco.
É por demais evidente que a sorte dos pacientes está ligada aos agenciamentos de forças –instituições sociais - que se materializam em práticas, desde que se saiba que a mente não é algo a ser consertado. A mente é o mundo. Tudo a fazer é preparar o paciente para enfrentá-lo. Ainda assim, alianças políticas pesam contra, já que o paciente não produz, não registra uma identidade (quem sou?) e não consome. Está fora do circuito da produção e ao mesmo tempo no interior da produção, produto coagulado. A questão do fora e do dentro merece ser considerada. Ela remete à política em psicopatologia. O paciente está fora dos códigos sociais e se submete a eles, tornando-se mais um código, até mesmo incluído em patologias tidas como menos graves: as neuroses.
Entretanto, quando a psiquiatria trabalha o desejo desde o interior da clínica, podemos chamá-la de psiquiatria materialista, clínica da diferença ou clínica das multiplicidades. Ela tece um território movente de criação; essa clínica não existe fora ou dentro de algo. Ela é imanente à produção. Tudo é uma coisa e outra. Primado do “e”. A saúde mental deixa de ser um aparelho conceitual encolhedor de mentes para construir uma superfície prática onde a clínica é vazada pelo coletivo, o mundo que o paciente terá que enfrentar, pois o mundo é ele mesmo. Saúde mental é um conceito a ser estilhaçado: saúde refere-se não apenas ao organismo, mas ao corpo; mental refere-se não apenas ao cérebro, mas ao mundo. Será possível, então, dizer corpo-no-mundo como na fenomenologia? Sim, desde que a extensão do conceito considere a potência do corpo e o caos do mundo. Potência e caos estão fundidos na produção de novas configurações subjetivas.O pensamento da saúde mental só existe enquanto ciência, filosofia e arte encadeadas em devires. O que se chama de reforma psiquiátrica é um rearranjo de poder dos modos de codificar a loucura. Desse modo não existe o devir, a não ser na fantasia e/ou no delírio. Ele não, se constitui como "pensamento", mas como saber classificatório para o qual a CID-10 e o DSM-IV são cartilhas mortas com respaldo jurídico e científico. A luta pela diferença passa, então, por uma rachadura no conceito de saúde mental. Feito isso, o espaço-tempo de trabalho com o paciente alarga-se ao ponto de não mais pertencer ao mercado da saúde mental e sim aos territórios coletivos conquistados no encontro com a loucura. Muda o conceito de transtorno mental ou o de doença mental, como antes era chamado. Quem é doente? O que é doença? Não há certezas. Esse fato é condição elementar para desfazer a saúde mental como organização da forma- Estado e substitui-la por uma clínica órfã e molecular, produzindo seus próprios códigos. Uma outra linguagem poderá surgir dos problemas (sempre há) que o paciente traz. O diagnóstico submete-se ao contexto social e não o contrário. Acreditamos que, desse modo, os técnicos se farão aliados de forças que eles mesmos tornam úteis em terapêuticas singulares. Ao pé da letra, diríamos: servir ao paciente ou .... à vida?
A. M. in Trair a psiquiatria
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