sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

O PENSAMENTO DA SAÚDE MENTAL  e o janeiro branco                   

Não acreditamos na crítica como ato que   propicie  uma criação.  A  criação é que   propicia uma crítica. A  criação vem primeiro.  Saúde é um conceito nominal.  Aparelho    engendrado     por  tecnocratas do Estado,   vive  para  a  ideia, o imaginário, a transcendência    e as boas  intenções humanísticas. Com o conceito de mental ocorre o mesmo. Criar  nada  tem a ver com essa  ladainha político-conceitual. A arte de  criar conceitos, como diz  Deleuze, é a aventura do novo. Em saúde mental,  criar é  despersonalizar-se sem culpa, ressentimento ou nostalgias egóicas. Começa  pela ausência de títulos e  pompas.  Uma gratuidade.  

Talvez  qualquer  Caps enfrente   a desvalorização do usuário e da equipe técnica. Baixos  salários e  a  trama do Estado corrupto.  Apesar disso, uma alegria empurra os que querem criar, os artistas. Não os  profissionais  da  arte,  mas os  que  expressam um devir-arte para  além e  aquém das categorias  do bom senso. Explicar essas  coisas requer um longo aprendizado:  sair  do eu na direção das  multiplicidades,  sair de  si para o  fora  rumo à loucura não-médica.  

O  espírito da reforma  psiquiátrica  vive atolado  nas palavras de ordem  do polvo estatal e em sonhos corporativos; psiquiatras firmam suas alianças macabras, seja com os laboratórios  farmacêuticos,  seja   com  seus   pares. Um fascismo maquiado exibe-se à seco.

É  por demais  evidente  que  a sorte dos pacientes está ligada aos agenciamentos de forças –instituições  sociais -  que se  materializam em práticas, desde que se  saiba que  a mente não  é  algo a ser consertado. A mente é o mundo. Tudo a fazer é preparar o paciente para enfrentá-lo. Ainda  assim,  alianças políticas  pesam contra,  já que o paciente não produz, não registra uma identidade  (quem sou?) e não consome. Está fora  do circuito  da produção e ao mesmo tempo no interior da produção, produto coagulado.  A questão  do fora e  do dentro merece ser considerada. Ela  remete à política em psicopatologia. O paciente está fora dos códigos sociais e  se submete  a eles, tornando-se mais um código, até  mesmo incluído em  patologias tidas como menos  graves: as neuroses.

Entretanto,  quando a psiquiatria  trabalha o desejo  desde o  interior  da clínica, podemos  chamá-la de psiquiatria materialista,  clínica da diferença ou clínica das multiplicidades.  Ela tece um território movente de criação;  essa clínica não existe fora ou dentro de algo.   Ela é imanente à produção.   Tudo é uma coisa e outra. Primado  do  “e”. A saúde mental deixa de ser um aparelho  conceitual encolhedor de mentes para construir uma superfície prática onde a clínica  é vazada pelo coletivo, o mundo  que  o paciente terá  que enfrentar, pois  o mundo é ele mesmo. Saúde mental é um  conceito a ser estilhaçado: saúde refere-se não apenas ao organismo, mas ao corpo; mental refere-se não apenas ao cérebro, mas ao mundo. Será  possível, então,  dizer   corpo-no-mundo como na fenomenologia? Sim, desde que a extensão do conceito considere a  potência do corpo e o caos do mundo. Potência e caos estão fundidos na produção de novas configurações subjetivas.O pensamento da saúde mental só existe enquanto ciência, filosofia e arte encadeadas em devires. O que se  chama de reforma psiquiátrica é um rearranjo de poder dos modos de codificar a loucura.  Desse modo  não existe o devir, a não ser  na fantasia  e/ou no delírio. Ele não,   se  constitui  como  "pensamento", mas como  saber classificatório  para  o qual a  CID-10 e o DSM-IV são cartilhas mortas com respaldo jurídico e científico. A luta pela diferença passa, então,  por  uma  rachadura no conceito de saúde mental. Feito isso, o espaço-tempo  de trabalho com o paciente alarga-se ao ponto de não  mais  pertencer  ao mercado da saúde mental  e sim aos territórios  coletivos  conquistados  no  encontro  com a  loucura. Muda o conceito de transtorno mental ou o de doença mental, como antes  era  chamado. Quem é  doente? O que  é doença?  Não há certezas. Esse fato é condição elementar para desfazer a saúde mental  como organização   da  forma- Estado e  substitui-la  por uma clínica órfã e molecular, produzindo seus próprios  códigos. Uma outra linguagem poderá surgir dos problemas (sempre há) que o paciente traz. O diagnóstico submete-se ao contexto  social  e   não o contrário. Acreditamos que, desse modo, os técnicos se farão aliados de forças que  eles  mesmos  tornam  úteis  em   terapêuticas singulares.  Ao pé  da letra, diríamos:  servir  ao  paciente  ou .... à vida?


A. M.  in Trair a psiquiatria

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