A DIFERENÇA NA CLÍNICA
A análise dos afetos e dos sistemas de crenças substitui o insípido exame mental. Começa pelo corpo em ação, mesmo que este esteja imóvel. Linhas do corpo não são as do organismo físico-químico.Os afetos se traduzem em movimentos às vezes imperceptíveis.Preenchem outro corpo, o corpo das intensidades. Os olhos. O paciente é olhado nos olhos. Eles revelam algo do nível da consciência naquele momento. Ora, o nível da consciência está em contínua mudança, mesmo que tal fato não seja percebido. E geralmente não é, exceto em situações clínicas “grosseiras” como nos quadros orgânico-cerebrais.A consciência está sujeita à flutuações. Estas escapam à visão do médico. A análise da consciência é atravessada pelos afetos e suas expressões. O corpo visível, enquanto sujeito e objeto do pragmatismo social, se apresenta de imediato. “Ele está pragmático?”, pergunta nem sempre formulada, mas sempre pensada. No cara a cara psiquiatra-paciente (um antigo dispositivo) a questão básica é a do poder. Esse dado, tão discutido por Foucault, tem na proposta de uma clínica da diferença, o valor da realidade fabricada pela psiquiatria. Valor relativo pois o paciente de fato necessita de ajuda ou pelo menos algo deve ser feito em prol da vida. Ora, o Encontro torna-se uma sensibilidade não codificada em manuais de psiquiatria. Nada a propor senão linhas anormais da existência.A hora do tempo a-temporal se afirma.Um paradoxo.É a temporalidade como matéria irreversível, devir. Esta é a base (o tempo) para se pensar o paciente como um agenciamento de forças, estranho encontro regido pelo acaso, mas do qual não há como escapar. O paciente traduz um certo comportamento. Sob um olhar-clichê, ele se constitui como comportamento preso num regime de visibilidade. Não mais. Daí a rigidez do exame mental clássico ceder lugar a uma percepção fina construida na prática com o outro. Apesar de reconhecer a importância da fenomenologia, aqui não se trata dela. Tampouco se trata de um espiritualismo travestido de clínica. Buscamos construir um plano não hierarquizado. As relações de poder compõem esse plano junto a outras relações num continuum empírico sem forma. Tudo se passa num lugar sem lugar. Ao seguir a trilha do inconsciente produtivo em suas expressões à luz do dia, o percurso da diferença se defronta com o ato de criar. Ou seja, trata-se de algo que (ainda) não existe. Na verdade, o ato de criar é o ato de diferenciar-se. O formato da clínica não é o do psiquiatra atrás de uma mesa defronte ao paciente. Pode ser qualquer coisa, até mesmo a tradicional, desde que torcida e transformada. O que muda neste caso é a sua atitude e o rearranjo dos elementos vivenciados pelo paciente. Este não é um nome, mas uma vida, cerne da ética. A “garimpagem” dos signos-sintomas acontece no fluir da conversa. Uma atitude empática do psiquiatra amplia-se...Isto implica na construção de um campo perceptivo que não se restringe à pessoa, mas ao que a precede e lhe determina: o universo. A diferença não é uma coisa, mesmo se a coisa “valiosa” da visão humanista. A diferença torna-se. Ela é processo afirmativo inscrito nas ações do paciente, mesmo que sejam inadequadas e bizarras. É um grito. Ora, um psiquiatra biológico, em geral, quer calar ou afastar o grito.Nada de grito. Então, o método da diferença, para driblar e ao mesmo tempo usar os fármacos, é outro, trilha desconhecida a explorar. Neste sentido, o percurso do tratamento é incerto. As garantias técnicas se dissolvem. A clínica tradicional desabituou-se a encarar o vazio como resposta aos problemas ditos mentais. Voltamos à perda das referências pontuais e à subjetividade não individuada em papéis demarcados.Quem é o paciente? Quem é o psiquiatra? A partir de vivências múltiplas, o paciente talvez não queira ser normal, mas diferente. Não há o ser-paciente. Não há o ser-psiquiatra.
(...)
A.M. in Trair a psiquiatria
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