sábado, 30 de abril de 2022

Caetano Veloso - Samba de Verão

ESTAMOS TODOS MEDICADOS

A vitrine mercadológica dos psicofármacos, apesar de propiciar alguns usos benéficos ao paciente, acabou por cassar a sua fala e o que seria a escuta pelo técnico em saúde mental. No interior dessa ótica, considera-se que estão todos farmacologizados, pacientes e técnicos, mesmo que os segundos não usem (em si mesmos) remédios da mente. ( Será?) De todo modo, a farmacologia estabeleceu uma condição de possibilidade ( aparentemente irrecusável ) para se atuar clinicamente frente aos transtornos ditos mentais. Dir-se-ia que o fármaco está à mão (uso imediato) ou como reserva para alguma intervenção assim que necessária. O caso das psicoses é exemplar, enquanto o das depressões caminha para isso, na medida em que ninguém mais poderá ficar deprimido. Esboço exagerado de análise? Pode ser, mas a clínica psicofarmacológica cada vez mais expande o seu campo e o seu poder rumo a um suposto cérebro enfermo, enquanto o mundo explode em rajadas de um niilismo avassalador. Tempos capitais.


A.M.

quarta-feira, 27 de abril de 2022

O que é psiquiatria? (1)


A psiquiatria é uma especialidade médica surgida na França em fins do século XVIII. Ai se dá a passagem (conforme Pinel) dos asilos aos manicômios.

No entanto, sua origem mais longínqua remete à existência de asilos no século VII (cultura árabe) e no século XVI (ocupação árabe na Espanha). Desde então passam a ser chamados de hospícios e se espalham pela Europa.

Sendo assim, a origem da psiquiatria se confunde com a origem dos asilos, dos hospícios e dos manicômios. Tudo se prepara para encolher as mentes.

A lógica dos asilos é o DNA da psiquiatria.

Já o século XIX, chamado século dos manicômios, dá origem aos hospitais psiquiátricos conforme o modelo atual.

São conhecidas as agressões e os horrores perpretados contra pacientes nos manicômios desse século. Foucault descreveu com detalhes as torturas científicas.

No Brasil, entre outros horrores, o hospital psiquiátrico de Barbacena é um registro histórico como modelo da barbárie consentida.

No período do estalinismo na União Soviética (1927/1957) presos políticos (quantos?) foram internados em hospitais psiquiátricos. 

No período da ditadura brasileira (1964/1979)  presos políticos (quantos?) foram internados em hospitais psiquiátricos.

A psiquiatria tem uma história pouco edificante.

No Brasil, veio a reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial. Diferentemente, no campo da medicina não se tem notícia de alguma reforma cardiológica, pneumológica, nefrológica, etc.

De fato, trata-se de uma especialidade que pede  um método para além do biomédico.

A psiquiatria (psicopatologia) não dispõe de uma teoria dos afetos, apesar da extrema importância desse conceito para o trabalho clínico, ou seja, da gestação do vínculo com o paciente.

O paciente psiquiátrico muitas vezes não quer ser atendido pelo psiquiatra, sendo levado à força por familiares ou terceiros. Na clínica médica, não se tem notícia de tal recusa por vezes hostil e agressiva.

O objeto de pesquisa e intervenção clínica da psiquiatria é invisível, impalpável e abstrato. Chamado de “mente” , não há nada parecido em pesquisa médica. A mente não é o cérebro.

Nos hospitais psiquiátricos (ainda existem!) é muito comum pacientes fugirem. Por que fugiriam do tratamento? Em contraste, nos hospitais gerais (clínicos) isso não existe. Pelo menos, que se saiba.

 A alta e a cura são dispositivos raros na psiquiatria clínica.

Sim, uma estranha especialidade essa.


A.M.


terça-feira, 26 de abril de 2022

A fúria da beleza

Estupidamente bela 

a beleza dessa maria-sem-vergonha rosa 

soca meu peito esta manhã! 

Estupendamente funda, 

a beleza, quando é linda demais, 

dá uma imagem feita só de sensações, 

de modo que, apesar de não se ter consciência desse todo, 

naquele instante não nos falta nada. 

É um pá. Um tapa. Um gole. 

Um bote nos paralisa, organiza, 

dispersa, conecta e completa! 

Estonteantemente linda 

a beleza doeu profundo no peito essa manhã. 

Doeu tanto que eu dei de chorar, 

por causa e uma flor comum e misteriosa do caminho. 

Uma delicada flor ordinária, 

brotada da trivialidade do mato, 

nascida do varejo da natureza, 

me deu espanto! 

Me tirou a roupa, o rumo, o prumo 

e me pôs a mesa... 

é a porrada da beleza! 

Eu dei de chorar de uma alegria funda, 

quase tristeza. 


Acontece às vezes e não avisa. 

A coisa estarrece e abre-se um portal. 

É uma dobradura do real, uma dimensão dele, 

uma mágica à queima-roupa sem truque nenhum. 

Porque é real. 

Doeu a flor em mim tanto e com tanta força 

que eu dei de soluçar! 

O esplendor do que eu vi era pancada, 

era baque e era bonito demais! 


Penso, às vezes, que vivo para esse momento 

indefinível, sagrado, material, cósmico, 

quase molecular. 

Posto que é mistério, 

descrevê-lo exato perambula ermo 

dentro da palavra impronunciável. 

Sei que é desta flechada de luz 

que nasce o acontecimento poético. 


Poesia é quando a iluminação zureta, 

bela e furiosa desse espanto 

se transforma em palavra! 

A florzinha distraída 

existindo singela na rua paralelepípeda esta manhã, 

doeu profundo como se passasse do ponto. 

Como aquele ponto do gozo, 

como aquele ápice do prazer 

que a gente pensa que vai até morrer! 

Como aquele máximo indivisível, 

que, de tão bom, é bom de doer, 

aquele momento em que a gente pede pára 

querendo que e não podendo mais querer, 

porque mais do que aquilo 

não se agüenta mais, 

sabe como é? 


Violenta, às vezes, de tão bela, a beleza é! 


Elisa Lucinda,

Titãs & Arnaldo Antunes - O Pulso

domingo, 24 de abril de 2022

ÉTICA E SAÚDE MENTAL

Em saúde mental, a ética é indissociável da clínica e de tudo que gira em torno e a determina. Assim, ela é uma atitude a construir, a tentar, a arriscar. Não como ideia, ética idealista, não como reflexão teórica sobre a moral. Trata-se de outra coisa, outro conceito, outro rumo. A ética está encravada na prática, é a prática. Aumento ou redução da força de viver. Potência ou impotência dos corpos. A clínica em psicopatologia é a ética em si mesma, crua, real, concreta, atravessada e atravessando linhas político-institucionais muitas vezes nefastas. Impossível não haver uma escolha. O ranço da psiquiatria manicomial, por vezes disfarçado do enfoque neurobiológico, portanto, científico, ou de políticas públicas da forma-Estado legitimadas pela forma-Universidade,  também é ético, ainda que regido pelo cinismo e pela destruição de singularidades. No ato clínico, a ética precede a técnica e passa por linhas singulares da existência que exigem escolhas politicas finas. Não é fácil. Não há uma chave universal para resolver os dilemas éticos. Não há modelo fixo, exceto o dos manicômios, mesmo que sejam manicômios da alma. Então a ética funciona sempre num contexto sócio-institucional dado. A não escolha é uma escolha. É essa a implicação técnica do profissional em saúde mental. Ou nada.


A.M. 


 

sexta-feira, 22 de abril de 2022

COMO FAZER A DIFERENÇA? 

A diferença é um conceito discutido em profundidade em duas grandes obras do pensador Gilles Deleuze. Trata-se de Diferença e Repetição (1968) e Lógica do Sentido (1969). Tal densidade conceitual pode (e deve) ser usada por não-filósofos para o exercício de uma atitude ética essencialmente prática. Quer dizer: o mundo não é uma substância mas sim problemático (oco) por sua própria natureza e não por uma instância que lhe seria superior (a razão, por exemplo). Assim, tudo passa a ser imanência, tudo está na terra. O corpo da terra se tece na arte dos encontros pessoais e impessoais. Aí reside a diferença como linha curva, incerta, perigosa e delicadamente potente. Não exige nem possui explicações. Para experimentá-la basta seguir o fluxo do devir (o conteúdo do desejo) em suas infinitas possibilidades de conexão com outros devires. É com a criança-em-nós e com o tempo não-cronológico que a diferença estabelece seu traço  irreversível. Mas não é fácil. Sem que se perceba, as instituições sociais administram o medo no interior de nós mesmos, naturalizando o horror e racionalizando a existência: a aposta é numa realidade mortuária for ever


A.M.

terça-feira, 19 de abril de 2022

 MICROPOLÍTICA


-Libere a ação política de toda a forma de paranóia unitária e totalizante.

-Faça crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, antes que por submissão e hierarquização piramidal.

-Libere-se das velhas categorias do Negativo (a lei; o limite; a castração, a falta, a lacuna) que o pensamento ocidental por tanto tempo manteve sagrado enquanto forma de poder e modo de acesso à realidade. Prefira o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os agenciamentos móveis aos sistemas, considere que o que é produtivo não é sedentário, mas nômade.

-Não imagine que precise ser triste para ser militante, mesmo se a coisa que combatemos é abominável. É o elo do desejo à realidade (e não sua fuga nas formas de representação) que possui uma força revolucionária.

-Não utilize o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade; nem a ação política para desacreditar um pensamento, como se ele não fosse senão  pura especulação. Utilize a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como  um multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política.

-Não exija da política que ela restabeleça os "direitos" do indivíduo, tais como a filosofia os definiu. O indivíduo é o produto do poder. O que é preciso é "desindividualizar" pela multiplicação e pelo deslocamento, pelo agenciamento de combinações diferentes. O grupo não deve ser o elo orgânico que une indivíduos hierarquicamente, mas um constante gerador de "desindividualização".

-Não se apaixone pelo poder.


Michel Foucault -  O Anti-édipo: uma introdução à vida não-fascista

José Simão: "Exército quer boneca inFlávio"

terça-feira, 12 de abril de 2022

TEATRO POÉTICO: SÓ PARA LOUCOS

A linguagem poética constitui um território de significações que escapa às coordenadas da razão. Há um sentido a produzir. Desse modo, a busca de singularidades existenciais é facilitada pela aventura de se ler um poema e implicar-se a ele. O que isso quer dizer? Quer dizer formar e firmar conexões afetivas com um ou muitos pedaços do poema ou do poema como um todo, mesmo sabendo que não há todo. Não há todo porque as multiplicidades heterogêneas do texto nunca fecham um sistema ou tamponam um devir. O processo do desejo é irreversível. Ou seja, sem volta. A poesia é isso: multiplicidades do leitor se ligando a multiplicidades do poema na busca de... uma diferença. Ler um poema não é como ler um ensaio de sociologia, por exemplo, mas sim escutar os versos como se escuta uma música ou se sente no corpo as vibrações das cores de um quadro de Emil Nolde, ou no mesmo corpo e ao mesmo tempo o ritmo de um improviso de jazz, ou uma coreografia de Pina Baush, um gol de bicicleta... Poesia não foi e não é feita para interpretar porque ela já é uma interpretação ou mil, cem mil interpretações da realidade. Ou a própria realidade, a realidade em si-mesma. Quando se está apaixonado (isso deveria ser sempre) a poesia cobre e recobre as superfícies do mundo numa película fina de delicadeza, suavizando os pedregulhos das estradas mais longínquas e inóspitas. Tal como em "Asas do Desejo" (Wim Wenders, 1987), o anjo amante do tempo está transfigurado por avistar a trapezista no seu camarim, não por ele ser um anjo, mas por haver entrado num devir-humano, devir-mundo, devir-risco, devir-perigo, devir-paixão, devir-amar. 


A.M.

domingo, 10 de abril de 2022

ENTÃO, ELE ME  DISSE: "EU MANDEI DEUS CRIAR O MUNDO"

O mundo caminha para se tornar um grande hospício de portas abertas. Há uma generalização social do que é chamado de transtorno mental. A psiquiatria cumpre a função de tratar para adoecer ainda mais.Chegaremos a um ponto onde cada um de nós tratará do outro e vice versa.A mercantilização da alma já não precisará dos valores de troca do mercado.Ela, a alma, será o próprio mercado intimo da angústia por viver.

Grandeza de Marx.


A.M.

HENRY ASENCIO

 


Se eu me livrasse de meus demônios, perderia meus anjos.


Tennessee Williams

O ENCONTRO MARCADO

Numa prática clínica da diferença em psicopatologia, o conceito de Encontro é essencial. Ele diz respeito à chance de estabelecer ligações com os afetos que circulam livremente e/ou aprisionados pelas formas sociais (por ex., a de paciente "mental"). No caso da psiquiatria biológica, da terapia cognitivo-comportamental, das psicoterapias regidas pelo senso comum, das psicologias do bom senso, das terapias religiosas, das psicanálises edipianizantes, enfim, das agências psi normatizadoras, os afetos livres (devires) rodopiam no mesmo ponto subjetivo, endurecidos em sintomas prontos a serem eliminados. Há até pacotes comerciais disponíveis para resolução em apenas 3 meses. Confira. Caso haja êxito, vão-se os sintomas e com eles o desejo. Ao contrário, é preciso encontrar-se com o sintoma já que o Encontro é condição básica para 1-usar os afetos livres para fora da configuração subjetiva dita patológica; 2- desorganizar as formas sociais especializadas em infeccionar as forças ativas. Em ambos os casos, o Encontro não se dá com uma bela alma, mas com a crueza do real múltiplo. Estão e estarão aí, por exemplo, todos os tipos de personalidades anormais que a psiquiatria conservadora engloba sob o código F.60. Ou as histerias, filhas freudianas convertidas ao século XXI e estranhas ao diagnóstico psicanalítico. Ou os pânicos urbanos gritando alto frente à dissolução das certezas do homem tecnológico. Ou as psicoses não especificadas em eus cindidos e aniquilados pelo tempo virtual. Ou corpos descarnados oscilando entre a autoflagelação e o suicídio enquanto formas de se sentirem vivos. O Encontro hoje é, pois, um encontro sem rosto fixo, sem modelo, sem eu, sem consciência, mas ainda assim,e principalmente, um Encontro.


A.M.

 


quinta-feira, 7 de abril de 2022

ela foi a mulher

que me fez amante

como não dizê-la

sem tê-la


como não evocá-la

sem amá-la

sem tempo


ou julgamento?



A.M.


segunda-feira, 4 de abril de 2022

E se Bolsonaro virar Orbán? | Ponto de Partida

TEMAS EM PSICOPATOLOGIA CLÍNICA -1 


O Encontro com o paciente precede os sintomas (delírios, alucinações, angústias, etc). Ou melhor, precede o Exame. Este é um dispositivo institucional à serviço da medicina clínica, positivista, mecanicista, regida pela busca de objetos sólidos, visíveis e manipuláveis: o organismo doente. Ao contrário, o percurso da diferença em psicopatologia começa pelo Encontro. É dizer que o técnico em saúde mental torna-se o outro sem ser o Outro, fazendo do território da Clínica um campo de vibração intensiva (afeto). Isso funciona sob a ética do paciente criar a si mesmo, potência de existir/agir e da resistência aos poderes vigentes.


A.M.

domingo, 3 de abril de 2022

Bedtime story - Nadav Zelner (NDT 2 | The play between)

POR QUE A PRISÃO?

"Conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa quando não inútil. E entretanto não ‘vemos’ o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão”

– Foucault, Vigiar e Punir

Agora finalmente temos recursos para responder à pergunta: por que a prisão? Ora, ela é apenas uma das muitas maneiras de se exercer o poder. Por que então necessariamente ela? Afinal, desde o começo vimos como a prisão é um enorme fracasso! Simplesmente não funciona! Não se presta a cumprir o que promete.

A prisão devia ser um lugar de transformação do criminoso, corrigindo-o e reintegrando-o à sociedade;

A prisão prometia isolar e classificar os sujeitos, segundo a gravidade de seus crimes;

As penas seriam moduladas de acordo com o bom comportamento dos detentos, seus progressos e resultados obtidos durante o processo de regeneração;

O trabalho seria uma peça essencial na transformação e ressocialização progressiva;

A educação seria um princípio indispensável de formação e crescimento;

O regime prisional seria controlado por um corpo técnico especializado, com capacidades morais e técnicas, que zelaria pela boa formação dos indivíduos durante o cumprimento da pena;

O encarceramento seria assistido e acompanhado de medidas de controle tendo em vista a readaptação definitiva do detendo, prestando-lhe suporte para sua reclassificação no seio da sociedade.

Nada disso acontece, muito pelo contrário:

A prisão coloca o presidiário sob outra forma de poder que não o judiciário, abrindo campo para instituições parapenais. Mas de forma alguma diminui as taxas de criminalidade;

A prisão mistura condenados dos mais variados tipos, constituindo uma comunidade de criminosos. Transforma criminosos amadores em profissionais;

A prisão dá abrigo, comida, roupa e às vezes trabalho, sendo, em tempos difíceis, um destino preferível a outras formas de vida. E cria a miséria para a família do delinquente, multiplicando seus efeitos deletérios;

À prisão retornam sempre reincidentes que, marcados pelo crime, só possuem esta alternativa.

Do ponto de vista histórico, a prisão é uma peça nova, inusitada e por isso desconsiderada. Do ponto de vista teórico, a prisão é estranha, pois não satisfazia nenhuma das exigências dos reformadores penais. Do ponto de vista prático e funcional, a prisão é disfuncional e nada prática: não diminui a criminalidade e leva à reincidência. Mas ainda assim:

"Há um século e meio que a prisão vem sempre sendo dada como seu próprio remédio”

– Foucault, Vigiar e Punir

Aqui a Arqueologia de Foucault se torna limitada, e por isso a necessidade da Genealogia: como vimos, a prisão não deriva dos documentos dos Reformadores Juristas. A prisão não é filha de códigos penais nem dos tribunais. Não está lá o seu nascimento, ele se encontra alhures e só o encontraremos numa heterogeneidade de todas as transformações que o período acarreta. Uma heterogeneidade que envolve a burguesia, a religião, a maneira de produzir e acumular riqueza, o fim do despotismo, a revolução política francesa e a revolução industrial inglesa.

A prisão torna-se assim mais um capítulo na história do corpo. Uma maneira do poder político atuar: sutil, imperceptível, mas penetrante. Ela veio de fora, não nasceu da cabeça de juristas, formou-se por outras razões, ela é o cume de uma sociedade disciplinar. Desempenha um papel importante por três características:

Distribui espacialmente os indivíduos. A reclusão permitia o controle dos fluxos, impedia a vagabundagem, o nomadismo, a migração. Prender é antes de mais nada colocar ao dispor;

O encarceramento oferece a chance de intervir na conduta dos indivíduos. É uma maneira de atuar nas vontades, intentos, discursos, comportamentos. A penalidade pune a infração, mas a reclusão permite punir a vida desregrada, anormal, perturbada, irregular;

A clausura permite controle parapenal, para além do crime, da infração do ato. Permite vigiar, coletar informações, atuar continuamente nas mais diversas instâncias.

A quais necessidades atendiam essas novas características do poder? De modo geral, para gerir a nova sociedade industrial como um todo! O funcionamento prisional é uma maneira de regular fluxos sociais, fluxos de pessoas, de ações, de pensamentos, de corpos, de condutas, fixar no espaço e no tempo.

Podemos chamá-las de instituições de sequestro, pois:

Adquirem tempo total sobre seus internos, sejam operários, loucos, velhos, crianças, presos, que são controlados e observados o tempo todo. O modelo prisão basicamente permite ser encontrado;

Possuem objetivos monofuncionais: o tempo de vida é usado exclusivamente para uma única atividade: produção, terapia, cuidado, formação, etc. A prisão permite treinar ininterruptamente;

Fabricação e preparação do indivíduo para o social, em função de algo externo. O indivíduo não era avaliado por si mesmo ou por pares, mas sempre por algum superior tendo em vista um fim maior, um bem maior: tornar-se um bom soldado, um bom funcionário, uma pessoa saudável. A prisão permite organizar a ordem social.

"Estar sob sequestro é estar preso numa discursividade ininterrupta no tempo, proferida a partir de fora por uma autoridade e necessariamente feita em função daquilo que é normal e daquilo que é anormal”

– Foucault, Sociedade Punitiva

Por que a prisão? Ora, a forma-prisão é muito mais que uma construção arquitetônica, ela é uma forma social! Um plano de imanência. Eis a resposta sobre o fracasso das prisões: ela não dá certo apenas para um olhar pequeno, que presta atenção somente nas grades das celas e nos muros altos. Mas do ponto de vista do poder, poderíamos concluir que ela é um enorme sucesso, pois funciona como forma-social para exercer profundamente a disciplina, a vigilância contínua e a punição eterna.

O que sustenta a prisão como elemento penal é seu valor moral. A coerção faz parte de suas engrenagens. A salvação, a limpeza da alma, a penitência. A prisão possui elementos externos que incidem sobre sua maneira de ser e atuar sobre o corpo. Trata-se de colocar ao dispor para tomar o poder sobre o tempo e o espaço, formar corpos e transformar almas.

Mas em que um sistema social baseado na prisão funcionaria tão bem e seria inquestionável por todos? Como vimos, é na sociedade vigilante e disciplinar que o poder adquire suas características mais sutis.

"A prisão, essa região mais sombria do aparelho de justiça, é o local onde o poder de punir, que não ousa mais se exercer com o rosto descoberto, organiza silenciosamente um campo de objetividade em que o castigo poderá funcionar em plena luz como terapêutica e a sentença se inscrever entre os discursos do saber. Compreende-se que a justiça tenha adotado tão facilmente uma prisão que não fora entretanto filha de seus pensamentos. Ela lhe era agradecida por isso

– Foucault, Vigiar e Punir


Do Blog "Razão Inadequada"