POR QUE A PRISÃO?
"Conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa quando não inútil. E entretanto não ‘vemos’ o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão”
– Foucault, Vigiar e Punir
Agora finalmente temos recursos para responder à pergunta: por que a prisão? Ora, ela é apenas uma das muitas maneiras de se exercer o poder. Por que então necessariamente ela? Afinal, desde o começo vimos como a prisão é um enorme fracasso! Simplesmente não funciona! Não se presta a cumprir o que promete.
A prisão devia ser um lugar de transformação do criminoso, corrigindo-o e reintegrando-o à sociedade;
A prisão prometia isolar e classificar os sujeitos, segundo a gravidade de seus crimes;
As penas seriam moduladas de acordo com o bom comportamento dos detentos, seus progressos e resultados obtidos durante o processo de regeneração;
O trabalho seria uma peça essencial na transformação e ressocialização progressiva;
A educação seria um princípio indispensável de formação e crescimento;
O regime prisional seria controlado por um corpo técnico especializado, com capacidades morais e técnicas, que zelaria pela boa formação dos indivíduos durante o cumprimento da pena;
O encarceramento seria assistido e acompanhado de medidas de controle tendo em vista a readaptação definitiva do detendo, prestando-lhe suporte para sua reclassificação no seio da sociedade.
Nada disso acontece, muito pelo contrário:
A prisão coloca o presidiário sob outra forma de poder que não o judiciário, abrindo campo para instituições parapenais. Mas de forma alguma diminui as taxas de criminalidade;
A prisão mistura condenados dos mais variados tipos, constituindo uma comunidade de criminosos. Transforma criminosos amadores em profissionais;
A prisão dá abrigo, comida, roupa e às vezes trabalho, sendo, em tempos difíceis, um destino preferível a outras formas de vida. E cria a miséria para a família do delinquente, multiplicando seus efeitos deletérios;
À prisão retornam sempre reincidentes que, marcados pelo crime, só possuem esta alternativa.
Do ponto de vista histórico, a prisão é uma peça nova, inusitada e por isso desconsiderada. Do ponto de vista teórico, a prisão é estranha, pois não satisfazia nenhuma das exigências dos reformadores penais. Do ponto de vista prático e funcional, a prisão é disfuncional e nada prática: não diminui a criminalidade e leva à reincidência. Mas ainda assim:
"Há um século e meio que a prisão vem sempre sendo dada como seu próprio remédio”
– Foucault, Vigiar e Punir
Aqui a Arqueologia de Foucault se torna limitada, e por isso a necessidade da Genealogia: como vimos, a prisão não deriva dos documentos dos Reformadores Juristas. A prisão não é filha de códigos penais nem dos tribunais. Não está lá o seu nascimento, ele se encontra alhures e só o encontraremos numa heterogeneidade de todas as transformações que o período acarreta. Uma heterogeneidade que envolve a burguesia, a religião, a maneira de produzir e acumular riqueza, o fim do despotismo, a revolução política francesa e a revolução industrial inglesa.
A prisão torna-se assim mais um capítulo na história do corpo. Uma maneira do poder político atuar: sutil, imperceptível, mas penetrante. Ela veio de fora, não nasceu da cabeça de juristas, formou-se por outras razões, ela é o cume de uma sociedade disciplinar. Desempenha um papel importante por três características:
Distribui espacialmente os indivíduos. A reclusão permitia o controle dos fluxos, impedia a vagabundagem, o nomadismo, a migração. Prender é antes de mais nada colocar ao dispor;
O encarceramento oferece a chance de intervir na conduta dos indivíduos. É uma maneira de atuar nas vontades, intentos, discursos, comportamentos. A penalidade pune a infração, mas a reclusão permite punir a vida desregrada, anormal, perturbada, irregular;
A clausura permite controle parapenal, para além do crime, da infração do ato. Permite vigiar, coletar informações, atuar continuamente nas mais diversas instâncias.
A quais necessidades atendiam essas novas características do poder? De modo geral, para gerir a nova sociedade industrial como um todo! O funcionamento prisional é uma maneira de regular fluxos sociais, fluxos de pessoas, de ações, de pensamentos, de corpos, de condutas, fixar no espaço e no tempo.
Podemos chamá-las de instituições de sequestro, pois:
Adquirem tempo total sobre seus internos, sejam operários, loucos, velhos, crianças, presos, que são controlados e observados o tempo todo. O modelo prisão basicamente permite ser encontrado;
Possuem objetivos monofuncionais: o tempo de vida é usado exclusivamente para uma única atividade: produção, terapia, cuidado, formação, etc. A prisão permite treinar ininterruptamente;
Fabricação e preparação do indivíduo para o social, em função de algo externo. O indivíduo não era avaliado por si mesmo ou por pares, mas sempre por algum superior tendo em vista um fim maior, um bem maior: tornar-se um bom soldado, um bom funcionário, uma pessoa saudável. A prisão permite organizar a ordem social.
"Estar sob sequestro é estar preso numa discursividade ininterrupta no tempo, proferida a partir de fora por uma autoridade e necessariamente feita em função daquilo que é normal e daquilo que é anormal”
– Foucault, Sociedade Punitiva
Por que a prisão? Ora, a forma-prisão é muito mais que uma construção arquitetônica, ela é uma forma social! Um plano de imanência. Eis a resposta sobre o fracasso das prisões: ela não dá certo apenas para um olhar pequeno, que presta atenção somente nas grades das celas e nos muros altos. Mas do ponto de vista do poder, poderíamos concluir que ela é um enorme sucesso, pois funciona como forma-social para exercer profundamente a disciplina, a vigilância contínua e a punição eterna.
O que sustenta a prisão como elemento penal é seu valor moral. A coerção faz parte de suas engrenagens. A salvação, a limpeza da alma, a penitência. A prisão possui elementos externos que incidem sobre sua maneira de ser e atuar sobre o corpo. Trata-se de colocar ao dispor para tomar o poder sobre o tempo e o espaço, formar corpos e transformar almas.
Mas em que um sistema social baseado na prisão funcionaria tão bem e seria inquestionável por todos? Como vimos, é na sociedade vigilante e disciplinar que o poder adquire suas características mais sutis.
"A prisão, essa região mais sombria do aparelho de justiça, é o local onde o poder de punir, que não ousa mais se exercer com o rosto descoberto, organiza silenciosamente um campo de objetividade em que o castigo poderá funcionar em plena luz como terapêutica e a sentença se inscrever entre os discursos do saber. Compreende-se que a justiça tenha adotado tão facilmente uma prisão que não fora entretanto filha de seus pensamentos. Ela lhe era agradecida por isso”
– Foucault, Vigiar e Punir
Do Blog "Razão Inadequada"
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