Este blog busca problematizar a Realidade mediante a expressão de linhas múltiplas e signos dispersos.
domingo, 31 de dezembro de 2023
Uma Arte
A arte de perder não é de difícil lastro;
tantas coisas parecem prenhes de perda
que sua perda não constitui nenhum desastre.
Perca um pouco a cada dia. Aceite o arrasto
do molho de chaves perdido, a hora mal gasta.
A arte de perder não é de difícil lastro.
Então teste perder mais longe, mais rastros:
lugares, nomes, o destino de onde pensava passar
férias. E nada disso pressupõe desastre.
Perdi o relógio de minha mãe. E, ah, que impacto!,
a última ou penúltima das três casas que amei.
A arte de perder não é de difícil lastro.
Perdi duas cidades, que belas. E, mais vasto,
algumas terras, dois rios, um continente,
que saudade, mas não chega a ser desastre.
―Mesmo perder você (anedota na voz, gesto
que adoro) não deve enganar-me. Pois é claro
que a arte de perder não é de tão difícil lastro
mesmo que pareça (note!) um desastre.
Elizabeth Bishop
sexta-feira, 29 de dezembro de 2023
ESTUDO CLÍNICO SOBRE OS DELÍRIOS - VI
Entre os delírios, os da esquizofrenia são os mais graves. Por que? Porque a esquizofrenia é um processo subjetivo em que há uma espécie de cisão do eu. Na realidade clínica isto significa que o paciente tem comprometida (em maior ou menor extensão) a função de autonomia social. É o que a psiquiatria manicomial, interessada no adestramento à Norma, chama de Apragmatismo. Dir-se-ia que o esquizofrênico é aquele que pergunta "quem sou?". Para dar respostas e preencher um vazio psíquico dilacerante (ontológico?), ele é como que tomado pelo delírio. Assim, diferente de outras patologias delirantes, na esquizofrenia o paciente é o próprio delírio. Isso só pode ser verificado numa escuta não julgadora e na pesquisa cuidadosa da sua inserção na Realidade. Não há, como o modelo biomédico gostaria de acreditar, algum exame de laboratório ou de imagem que garanta com um laudo conclusivo " cifras e imagens atestam esquizofrenia". Vamos rir. Na esquizofrenia, se é que existe uma tal entidade clínica ao estilo médico, é onde desmorona o Sentido e onde a própria psiquiatria e o seu psiquiatra deveriam se questionar enquanto agentes da saúde e daí promotores do cuidado. Servir a quem? Por que? Para que? Como?
A.M.
sexta-feira, 22 de dezembro de 2023
quinta-feira, 21 de dezembro de 2023
QUEM PRECISA DE QUEM?
A psiquiatria e as psicoterapias necessitam mais do seu paciente do que o contrário. Tal enunciado, no mínimo estranho e desconcertante, tem sua "razão de ser" no funcionamento do círculo do capital. Conforme Marx demonstrou, o capital, (operador semiótico hegemônico), é ávido pela manutenção ad infinitum do circuito produção-consumo-produção. Isso constitui o universo delirante da realidade contemporânea. Ele atravessa as linhas da subjetividade, mesmo as ditas "normais", produzindo a convicção de que nada existe ou existirá para além dos axiomas (princípios ossificados) da civilização moderna. No caso da psicopatologia clínica, assistimos a dois fenômenos correlatos. Num, o seu próprio desaparecimento, caso da psiquiatria "bio-cidológica", filha bastarda das neurociências. No outro, o endurecimento (reificação) conceitual da psicopatologia, caso da psicanálise ortodoxa e das psicoterapias aliançadas a ela (ou não) mas expostas na vitrine do mercado da clínica. Em ambos os casos o paciente surge como consumidor (passivo) de remédios químicos ou de teorias da subjetividade. Mil peças para abastecer o Mercado.
A.M.
ILYA PRIGOGINE, O REBELDE DO TEMPO
(...)A concepção de uma natureza passiva, submetida a leis deterministas, é uma especificidade do Ocidente. Na China e no Japão, “natureza” significa “o que existe por si mesmo”. Joseph Needham lembrou-nos a ironia com a qual os letrados chineses receberam a exposição dos triunfos da ciência moderna. Talvez o grande poeta indiano Tagore também tenha sorrido quando tomou conhecimento da mensagem de Einstein:
“Se a lua enquanto efetua o seu eterno curso ao redor da Terra, fosse dotada de consciência de si mesma, estaria profundamente convencida de que se move por sua própria vontade, em função de uma decisão tomada de uma vez por todas. Da mesma forma, um ser dotado de uma percepção superior e de uma inteligência mais perfeita, ao olhar o homem e suas obras, sorriria da ilusão que esse homem tem de agir segundo a sua própria vontade livre. Está é a minha convicção, embora saiba que ela não é plenamente demonstrável (...)”
Para Einstein, essa posição era a única comparável com os ensinamentos da ciência. Mas, para nós, essa concepção é tão difícil de aceitar quanto o era para Epicuro. E isto tanto mais que, desde o século XIX, o pensamento filosófico vem interrogando-se cada vez mais sobre a dimensão temporal de nossa existência. Como testemunham Hegel, William James, Bergson, Whitehead, ou Heidegger. Enquanto para os físicos que seguiam Einstein o problema do tempo estava resolvido, para os filósofos ele continuava sendo a questão por excelência, aquela em que estava em jogo a significação da existência humana.(grifos do blog).
Num de seus últimos livros, L´univers Irrêsolu, escreveu Karl Popper: "Considero o determinismo laplaciano – confirmado, como parece estar, pelo determinismo das teorias físicas e pelo brilhante sucesso delas – o obstáculo mais sólido e mais sério no caminho de uma explicação e de uma apologia da liberdade, da criatividade e da responsabilidade humana." Para Popper, porém, o determinismo não põe somente em causa a liberdade humana. Ele torna impossível o encontro com a realidade, que é a vocação mesma de nosso conhecimento. Popper escreve mais adiante que a realidade do tempo e da mudança sempre foi para ele “o fundamento essencial do realismo”
Em “O possível e o real”, Henri Bergson pergunta: “De que serve o tempo? ... o tempo é o que impede que tudo seja dado de uma só vez. Ele atrasa, ou adianta, ele é o atraso. Deve, pois, ser elaboração. Não seria, então, o veículo de criação e de escolha? A existência do tempo não provaria que há certa indeterminação nas coisas? Para Bergson, como para Popper, o realismo e o indeterminismo são solidários. Mas essa convicção choca-se com o triunfo da física moderna, com o fato de que o mais fértil e o mais rigoroso dos diálogos que travamos com a natureza desemboca na afirmação do determinismo.
A oposição entre o tempo reversível e determinista da física e o tempo dos filósofos levou a conflitos abertos. Hoje, a tentação é mais de um recuo, que se traduz por ceticismo geral quanto ao significado de nossos conhecimentos. Assim ,a filosofia pós-moderna defende a “desconstrução”. Rorty, por exemplo, convida a transformar os problemas que dividiram a nossa tradição em temas de conversação civilizada. Evidentemente, para ele, as controvérsias cientificas, demasiado técnicas, não têm lugar nessa conversação.
(...)
Ilya Prigogine, in O fim das certezas, 1996
domingo, 17 de dezembro de 2023
ÉTICA E CLÍNICA EM SAÚDE MENTAL
Em Saúde Mental, a ética é indissociável da clínica. Não como uma ética idealista, ou seja, não como reflexão teórica sobre a moral. Trata-se de outra coisa, um conceito. Ele está encravado na prática. A ética como aumento ou como redução da força de viver. Potência dos corpos. A clínica em psicopatologia é assim a própria ética, ela em si mesma, a ética crua. Impossível não haver uma escolha. A psiquiatria manicomial, por vezes disfarçada de neurobiológica, também é ética, ainda que possa ser uma ética de destruição e/ou amordaçamento do desejo. É que no ato clínico, a ética passa por linhas singulares da existência que solicitam escolhas finas. Não é fácil. Não há uma chave universal para resolver os dilemas éticos. Não há modelo, exceto o dos manicômios da alma. Ou o do sistema do capital: mais lucro, mais, mais, até o infinito. Então a ética terá que ser inventada a cada momento e num contexto sócio-institucional dado. Como diria um antigo professor: "depois de tudo que vi, escutei, li, estudei e aprendi, chegou a hora". Diante do paciente, o que fazer? E como diz o Deleuze, com que direito?
A.M.
sábado, 16 de dezembro de 2023
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais reis nem regências.
Uma certa liberdade com a luxúria convém.
Manoel de Barros
quinta-feira, 14 de dezembro de 2023
quarta-feira, 13 de dezembro de 2023
segunda-feira, 11 de dezembro de 2023
PSIQUIATRIA NÃO É MEDICINA
O conhecimento médico, no que se refere à fisiologia, a fisiopatologia, a bioquímica, a histologia, entre outras disciplinas, possui uma complexidade teórica admirável, sendo construída laboriosamente na história. Só um exemplo: a função renal. Daí é surpreendente e misterioso o fato da psiquiatria se constituir como especialidade médica, se ela - enquanto teoria - sequer sabe o que é a mente. Não estamos falando do cérebro. Este há muito é objeto da neurologia, e nos dias que correm, das neurociências. Há grandes avanços no conhecimento. Neuro-imagens facilitam e sustentam o grande valor de tais pesquisas. Mas, e a psiquiatria teórica?
A.M.
domingo, 10 de dezembro de 2023
RELIGIÃO?
Minha opinião acerca da religião é a mesma que a de Lucrécio. Considero-a como uma doença nascida do medo e como uma fonte de indizível sofrimento para a raça humana. Não posso, porém, negar que ela trouxe certas contribuições à civilização. Ajudou, nos primeiros tempos, a fixar o calendário, e levou os sacerdotes egípcios a registrar os eclipses com tal cuidado que, com o tempo, foram capazes de predizê-los. Estou pronto a reconhecer esses dois serviços, mas não tenho conhecimento de quaisquer outros.
(...)
Bertrand Russel in Trouxe a religião contribuições úteis à civilização?
CLÍNICA E TECNOLOGIA DA IMAGEM - IV
Como F. Guattari previu, vivemos tempos esquizofrênicos. Isso faz retirar do conceito de Capitalismo Mundial Integrado (Guattari, 1982) elementos teóricos contingentes e necessários a uma análise institucional. A produção social (econômica) estendeu-se à produção subjetiva (semiótica) como matéria prima, ou, como diz Foucault, biopoder. A vida passa a ser produzida, e com ela, tudo que parece imitá-la. Antigos códigos sociais (por ex., na Idade Média, o código teológico) cedem lugar à auto-dissolução numa espécie de esquizofrenização generalizada do corpo social (socius). Não há mais eu, mesmo que pareça. Há, sim, um eu voltado às logísticas de manutenção do cotidiano. É possível olhar em torno: o cenário de dissolução do sentido é devastador. Indagações da alma ("estarei vivo?") atracam-se no território do corpo-imagem. Assim, pensar para além da simples cognição da realidade só se torna possível mediante a representação dessa realidade e não com e através dela. A realidade "real", o corpo das intensidade mundanas, cede a sua vez, seu número e seu lugar à teatralidade de um mundo em decomposição. Notícias de toda a parte chegam instantâneas. Registram as linhas subjetivas do consumidor (orgulhoso) de ordens implícitas. Sem saber, é o desejo encalacrado nas dobras da alma: o capital.
A.M
sábado, 9 de dezembro de 2023
sexta-feira, 8 de dezembro de 2023
O FUTEBOL, SEMPRE
O futebol é trágico. Trágico porque alegre, imprevisível, inexplicável, não se dobra ao modelo quantitativo do seu "acontecer", está além e aquém dos comentários rasteiros de apresentadores pífios, caçadores de audiências imbecilizantes, funciona na ambiguidade do futuro (quem vai vencer?), contém uma estética que precede toda racionalidade orgulhosa de si, trabalha com 90 minutos irreversíveis, inclui os acréscimos, joga com a sorte, idolatra o acaso, investe no puro talento, contempla e considera a competência técnica, flerta e se embriaga de arte, é arte, é arte, pura arte, completamente enlouquecedor para torcedores amantes da bola na trave, do verde-gramado, do contra-ataque mortífero, desdenha dos teóricos de carteirinha do jornalismo chifrin, sobrevive aos desmandos e corrupções dos poderes vigentes, surpreende nos minutos de acréscimo até os mais desconsolados e angustiados e esperançosos torcedores, é pura zebra rondando os pastos, enfim, por isso e muito mais, o futebol é uma heresia santa, um dilúvio envolvente e enxuto, delírio de multidões, catarse sem igual, orgasmo público ou apenas um único gol sem preço no mercado (não existe gol feio), milhares deles, mesmo que não aconteçam, ainda que sonhados, o futebol é o esporte para além do esporte, uma metafísica encarnada na magia do drible, o gol de cabeça..., uma torcida diferente: Bahia minha porra!
A.M.
sábado, 2 de dezembro de 2023
sexta-feira, 1 de dezembro de 2023
terça-feira, 28 de novembro de 2023
O FIM DO EU
As tecnologias da imagem, veiculadas pelos equipamentos de informação e comunicação (internet, celulares, tablets, TVs, etc) produzem formas de sentir, perceber, pensar e agir que chamamos subjetividade contemporânea. Este fato social atualíssimo alterou profundamente a consciência, o eu, a razão, os afetos, enfim, elementos psíquicos que respondiam outrora pelo que se chamava "pessoa", "indivíduo". O chamado "mundo interno", então constituído como território existencial de si mesmo, espécie de autonomia individual do ser-no-mundo, se desfez, se desfaz e desmorona a olhos vistos. Considere o aumento explícito da morbidade dos transtornos mentais. A fenomenologia e todas as doutrinas do pensamento calcadas no poder da consciência (inclusive o materialismo histórico) ruiram sob o efeitos da era da Tecnologia, ao que parece irreversível. Veio para ficar. Nós não somos mais nós mesmos. De toda a parte, fluxos de notícias, comunicados, informações, imagens, chegam sem cessar, funcionando como recheio subjetivo para acontecimentos que não nos dizem respeito e ao mesmo tempo nos dizem respeito. O tempo não é mais a temporalidade de uma vivência e sim, ao contrário, a vivência, submetida ao Tempo Mundial (que importam os fusos horários?)se transfigura em éter o que era tão certo como este corpo-aqui-visível-de-carne. Há uma rachadura nas certezas do eu, uma erosão do sentido. As crenças vacilam. Não mais existe "o tempo vivido", mas o tempo mundial descarnado, evaporado, codificado, por exemplo,em mensagens do zap, a confluir naquilo que Paul Virilio chama de cataclísma. Trata-se de uma mudança "espiritual" muito mais profunda do que se imagina, já que as comodidades objetivas (o mundo-em-mim-sem-sair-de-casa) escondem e legitimam a vertigem da loucura do cotidiano normal. Não mais é possível resgatar a nostalgia dos tempos idos (bons tempos, hein!) sob pena de afundarmos numa depressão coletiva. Sabe-se que depressão é luto. O que fazer? Além de consumir vorazmente, consumir (até mesmo consumir esse texto ora escrito), não se tem a mínima ideia....! O estilhaçamento da subjetividade abre um vazio insondável. Em suma, as tecnologias da imagem nos fabricam à sua imagem e semelhança qual um deus profano que se expressa e se impõe pela ubiquidade, simultaneidade e pelo desaparecimento do passado e do futuro, portanto, da História. Se há um devir-revolucionário (sempre há!) ele é tragado pelas ondas gigantescas das imagens planetárias.Um novo conservadorismo sociopolítico emerge. A esquerda se desorienta! A direita, munida do argumento do caos, da decadência dos valores e da dissolução dos códigos sociais, se resguarda à sombra de fascismos religiosos. No fundo, o axioma do progresso técnico e da pureza moral se expressam como religião do deus-capital disfarçada pela aura de um salvacionismo militante. E suicida. Todos rezam, mesmo os ateus.
A.M.
sexta-feira, 24 de novembro de 2023
sábado, 18 de novembro de 2023
quinta-feira, 16 de novembro de 2023
quarta-feira, 15 de novembro de 2023
domingo, 12 de novembro de 2023
JESUS, ESSE DESCONHECIDO
O cristianismo será realmente o Anticristo: ele violenta Cristo, proporciona-lhe à força uma alma coletiva; em contrapartida, propicia à alma coletiva uma figura individual de superfície, o cordeirinho.
Gilles Deleuze - in Crítica e Clínica : Nietzsche e São Paulo, D.H. Lawrence e João de Patmos.
sábado, 11 de novembro de 2023
PSIQUIATRIA NÃO É MEDICINA
O conhecimento médico, no que se refere à fisiologia, a fisiopatologia, a bioquímica, a histologia, possui uma complexidade teórica admirável, sendo construída laboriosamente na história. Pense no funcionamento dos rins, só um exemplo. Daí é surpreendente, misterioso e bizarro o fato da psiquiatria se constituir como especialidade médica, se ela - enquanto teoria - sequer sabe o que é a mente. Não estamos falando do cérebro. Este há muito é objeto da neurologia, e nos dias que correm, das neurociências. Há grandes avanços no conhecimento. Neuro-imagens facilitam e sustentam o grande valor de tais pesquisas. Mas, e a psiquiatria teórica?
A.M.
domingo, 5 de novembro de 2023
sábado, 4 de novembro de 2023
sexta-feira, 3 de novembro de 2023
O CERCO DIAGNÓSTICO
A questão do "diagnóstico psiquiátrico" não é só clínica. É também, e, principalmente, político-institucional. Isso se deve ao fato da "forma-psiquiatria" haver construído o diagnóstico como uma prática social de poder e controle moral sobre os pacientes, bem como linha de ascenção da psiquiatria a uma credibilidade científica e daí acadêmica. Da segunda metade do século XIX com o diagnóstico de "demência precoce" (Kraeplin) até o início do século XX, substituindo-o pelo de "esquizofrenia" (Bleuler), a psiquiatria se instala como "ciência". A partir daí passa a dispor do seu principal objeto de pesquisa (a esquizofrenia) e intervenção prática (a internação manicomial), galgando o status de especialidade médica. Em fins do século XX (a chamada década do cérebro - anos 90) as pesquisas neuro-cerebrais sacramentam não só a esquizofrenia, como todas as patologias mentais como sendo doenças do cérebro. Até mesmo um pânico, angústia, depressão, tudo. As consequências desses fatos foram e são devastadoras para a pesquisa em psicopatologia clínica e teórica, tanto quanto à observação/intervenção sobre o paciente no campo da saúde mental. A psicopatologia clínica, a que busca dar voz ao sujeito, entrou em franco declínio, beirando hoje o aniquilamento total. Quem fala é o cérebro. Desse modo, o debate sobre o diagnóstico clínico em psiquiatria tornou-se essencial para uma crítica ativa e um trabalho prático com o paciente. Trata-se de uma micro-estratégia de combate, muitas vezes invisível, muitas vezes ao modo de um agente de saúde mental infiltrado na teia psiquiátrica... É que as formas de violência subjetiva legitimadas e institucionalizadas cientificamente já não apenas vivem nos quartos sombrios dos manicômios, nas masmorras ocultas, nos corredores infectos, nos quartos-forte dos hospícios, mas se expandem e se mostram à luz do dia, à luz do sol, inclusive em ambulatórios, caps, consultórios, postos de saúde, comunidades terapêuticas e em todos nós.
A.M.
quinta-feira, 2 de novembro de 2023
bardo
tal qual um menino
procura brinquedos
lá vai o poeta
a tinta as letras
tal qual passarinho
no uso das asas
lá vai o poeta
o voo as palavras
tal qual a canoa
por cima do rio
lá vai o poeta
o remo a rima
tal qual marinheiro
no rumo do mar
lá vai o poeta
a bússola a poesia
tal qual lavra_dor
na lida da terra
lá vai o poeta
lavai o sangue
Liria Porto
quarta-feira, 1 de novembro de 2023
terça-feira, 31 de outubro de 2023
A DIFERENÇA NA SAÚDE MENTAL
Para discutir a diferença na saúde mental há uma questão conceitual básica. A "mente" não é o cérebro. Ninguém nunca viu a mente, ninguém nunca pegou, mediu ou pesou a mente. Lidamos com um objeto abstrato, ou seja, com o sem-forma. Para acessá-lo, o método científico da psiquiatria não só é limitado como muitas vezes se faz nocivo ao paciente. É que em função do lugar de poder que ocupa, o discurso psiquiátrico produz verdades subjetivadas como transtorno mental. Num quadro conceitual que representa a saúde mental como saúde do cérebro, como inserir a diferença? Ora, a diferença concebe a mente enquanto mundo, já que o mundo não tem uma forma única, não tem modelo. Ao contrário e bem mais, o mundo é composto de processos sociais (forças) que se cruzam, se aliam, se destroem, se alimentam, configurando o que chamamos de inconsciente-produção no sentido em que Deleuze-Guattari trabalham. A diferença está imersa no inconsciente. "O inconsciente é órfão, ateu e anarquista". Bem entendido, não o psicanalítico, mas o inconsciente- produção e sem-forma (a mente) que se corporifica em práticas sociais concretas (a clínica).
A.M.
domingo, 29 de outubro de 2023
UMA ESTRANHA ESPECIALIDADE
O que é involuntariedade em psiquiatria? É o fato do paciente não se achar doente, não se perceber como um doente, não se sentir doente, e, portanto, não querer tratamento. A aproximação de um técnico que lhe ofereça ajuda (talvez um psiquiatra) lhe provoca rechaço, negativismo, indiferença, ou até hostilidade/agressividade. Este é um dado muito comum observado no campo da psicopatologia clínica, o qual, entre outros efeitos concretos, atesta a insuficiência do modelo biomédico nas práticas de saúde mental. Citando ao acaso, é possível incluir os quadros de transtornos da personalidade, dependências de drogas, demências graves, retardos mentais, psicoses de variadas etiologias e semiologias (com sintomas positivos ou negativos, em especial as esquizofrenias), delírios sistematizados crônicos, transtornos do humor (formas de mania excitada e mania psicótica, e até mesmo depressões), entre outros quadros mal diagnosticados, com diagnóstico obscuro, ou até sem diagnóstico. O essencial a considerar é que a maioria não quer tratamento, nem sabe do que se trata, ou do que se passa. Ora, como é possível que exista uma especialidade médica cujos pacientes não apenas não querem tratamento, como também não se sentem doentes? Na maioria dos quadros arrolados, a busca de tratamento é, sim, da família, ou dos que estão à volta (amigos, colegas, vizinhos, etc) e não do próprio paciente. Por que?
A.M
sábado, 28 de outubro de 2023
O CÉREBRO MENTE
A psiquiatria é uma especialidade médica híbrida. Funciona na zona de fronteira entre as ciências humanas e as biológicas. Contudo, mais importante para a prática clínica (ou seja, aos efeitos sobre o paciente) é o fato de ser ela uma forma social que se nutre dos códigos sociais estabelecidos. Exemplo simples é o da moral. A psiquiatria guia-se pela moral como pressuposto implícito dos seus enunciados diagnósticos, os quais inscrevem-se no fenômeno mais amplo de medicalização da sociedade. Para que tal empreendimento "dê certo", conta com a reverência das pessoas em geral a uma neuro-cientificidade reducionista e à figura do psiquiatra como ponto de subjetivação mantenedor da ordem. São linhas semióticas (produzem significados) que circulam entre os técnicos de saúde mental num circuito de naturalização a-histórica da medicina, e por extensão da própria psiquiatria. Daí, a assepsia tecnocientífica da psiquiatria biológica esconder a função da clínica-do-remédio-químico como produtora social de fármaco-subjetividades. Para o paciente e familiares, vulneráveis aos fluxos da loucura, a saída terapêutica passa a ser o psiquiatra que apenas medica, ainda que isso mortifique o desejo. Ou justo por isso. O chamado paciente crônico é produzido, estigmatizado como crônico pelas vias do diagnóstico "cidológico" e pela farmacoterapia contençora dos processos subjetivos singulares.
A.M.
sexta-feira, 27 de outubro de 2023
quarta-feira, 25 de outubro de 2023
Há uma película fina que nos separa do mundo e seus horrores humanos. Tudo está por um triz. Ao mesmo tempo tal película é o único modo de experimentar amanheceres. Não há escolha possível a não ser a não escolha. É que os mil signos dos deuses da natureza animam os corpos em seus encontros maravilhosos. São os nômades do espírito.
A.M.
segunda-feira, 23 de outubro de 2023
O FIM DO EU
As tecnologias da imagem, veiculadas pelos equipamentos de informação e comunicação (internet, celulares, tablets, TVs, etc) produzem formas de sentir, perceber, pensar e agir que chamamos subjetividade contemporânea. Este fato social atualíssimo alterou profundamente a consciência, o eu, a razão, os afetos, enfim, elementos psíquicos que respondiam outrora pelo que se chamava "pessoa", "indivíduo". O chamado "mundo interno", então constituído como território existencial de si mesmo, espécie de autonomia individual do ser-no-mundo, se desfez, se desfaz e desmorona a olhos vistos. Considere o aumento explícito da morbidade dos transtornos mentais. A fenomenologia e todas as doutrinas do pensamento calcadas no poder da consciência (inclusive o materialismo histórico) ruiram sob o efeitos da era da Tecnologia, ao que parece irreversível. Veio para ficar. Nós não somos mais nós mesmos. De toda a parte, fluxos de notícias, comunicados, informações, imagens, chegam sem cessar, funcionando como recheio subjetivo para acontecimentos que não nos dizem respeito e ao mesmo tempo nos dizem respeito. O tempo não é mais a temporalidade de uma vivência e sim, ao contrário, a vivência, submetida ao Tempo Mundial (que importam os fusos horários?)se transfigura em éter o que era tão certo como este corpo-aqui-visível-de-carne. Há uma rachadura nas certezas do eu, uma erosão do sentido. As crenças vacilam. Não mais existe "o tempo vivido", mas o tempo mundial descarnado, evaporado, codificado, por exemplo,em mensagens do zap, a confluir naquilo que Paul Virilio chama de cataclísma. Trata-se de uma mudança "espiritual" muito mais profunda do que se imagina, já que as comodidades objetivas (o mundo-em-mim-sem-sair-de-casa) escondem e legitimam a vertigem da loucura do cotidiano normal. Não mais é possível resgatar a nostalgia dos tempos idos (bons tempos, hein!) sob pena de afundarmos numa depressão coletiva. Sabe-se que depressão é luto. O que fazer? Além de consumir vorazmente, consumir (até mesmo consumir esse texto ora escrito), não se tem a mínima ideia....! O estilhaçamento da subjetividade abre um vazio insondável. Em suma, as tecnologias da imagem nos fabricam à sua imagem e semelhança qual um deus profano que se expressa e se impõe pela ubiquidade, simultaneidade e pelo desaparecimento do passado e do futuro, portanto, da História. Se há um devir-revolucionário (sempre há!) ele é tragado pelas ondas gigantescas das imagens planetárias.Um novo conservadorismo sociopolítico emerge. A esquerda se desorienta! A direita, munida do argumento do caos, da decadência dos valores e da dissolução dos códigos sociais, se resguarda à sombra de fascismos religiosos. No fundo, o axioma do progresso técnico e da pureza moral se expressam como religião do deus-capital disfarçada pela aura de um salvacionismo militante. E suicida. Todos rezam, mesmo os ateus.
A.M.
sexta-feira, 20 de outubro de 2023
NÃO HÁ MAIS FORA
A passagem da sociedade disciplinar à sociedade de controle se caracteriza, inicialmente, pelo desmoronamento dos muros que definiam as instituições. Haverá, portanto, cada vez menos distinções entre o dentro e o fora. Trata-se, efetivamente, de um elemento de mudança geral na maneira pela qual o poder marca o espaço, na passagem da modernidade à pós-modernidade. A soberania moderna sempre foi concebida em termos de território – real ou imaginário – e da relação desse território com seu fora. É assim que os primeiros teóricos modernos da sociedade, de Hobbes a Rousseau, compreendiam a ordem civil como um espaço limitado e interior que se opõe à ordem exterior da natureza, ou que dela se distingue. O espaço circunscrito da ordem civil, seu lugar, se define por sua separação dos espaços exteriores da natureza. De modo análogo, os teóricos da psicologia moderna compreenderam as pulsões, as paixões, os instintos e o inconsciente metaforicamente, em termos espaciais, como um fora no âmbito do espírito humano, como um prolongamento da natureza bem no fundo de nós. A soberania do indivíduo repousa, aqui, em uma relação dialética entre a ordem natural das pulsões e a ordem civil da razão ou da consciência. Por fim, os diversos discursos da antroposofia moderna sobre as sociedades primitivas funcionam, freqüentemente, como o fora que define as fronteiras do mundo civil. O processo de modernização repousa nesses diferentes contextos, na interiorização do fora da civilização da natureza.No mundo pós-moderno, entretanto, essa dialética entre dentro e fora, entre ordem civil e ordem natural chegou ao fim.
(...)
Michael Hardt
quinta-feira, 19 de outubro de 2023
sábado, 14 de outubro de 2023
VELOCIDADES SEM DONO
Os devires (conteúdos do desejo) são processos nos quais o desejo engata em algo, mesmo que seja a coisa mais insignificante do mundo. O conceito de multiplicidade permite ultrapassar a linha de fronteira destes processos situados entre o orgânico e o não orgânico, e desse modo mobilizar forças de auto-movimento. Devir-pensamento, devir-cérebro, devir-mundo. Ora, o Encontro se dá exatamente na linha dos devires. É um trânsito, uma passagem. Sendo assim, quem trabalha com o paciente (um terapeuta) muda na medida em que é afetado pelas multiplicidades que vêm de fora. Não é um encontro interpessoal, já que a chamada “pessoa”, conceito molar, está ausente. É um encontro entre devires, inclassificável, velocidade de pensamento que escapa do enquadre clínico convencional.
A.M.
segunda-feira, 9 de outubro de 2023
A FORÇA MAIOR
A alegria é, por sua própria definição, de essência ilógica e irracional. Para pretender ao sério e à coerência, sempre lhe faltará uma razão de ser que seja convincente ou mesmo simplesmente que possa ser confessada e dizível. A língua corrente diz muito mais à respeito do que geralmente se pensa quando fala de "alegria louca" ou declara que alguém está "louco de alegria". Expressões desse tipo não são apenas imagens; elas devem ser entendidas literalmente. pois exprimem a verdade mesma: não há alegria senão louca - todo homem alegre é necessariamente e a seu modo um desatinado.
(...)
Clément Rosset in Lógica do pior
domingo, 8 de outubro de 2023
SEIS SONETOS SOTURNOS - III
E durma-se com um barulho desses,
engulam-se os sapos necessários.
Resolução? Final feliz? Esquece.
Por outro lado, tudo está bem claro,
nada é ambíguo, e nas entrelinhas
é só espaço em branco. Noves fora,
não há saída. A coisa não termina.
A hora chega, e ainda não é a hora,
ou já é tarde e Inês é morta. Não,
não adianta mais. E no entanto
há que seguir em frente, sempre. Mãos
à obra, sim. Conforme o combinado.
Igual à outra vez: táticas, planos,
metas. É claro que vai dar errado.
Paulo Henriques Britto
sábado, 7 de outubro de 2023
ISSO NÃO PÁRA
Movimento islâmico armado bombardeou Israel neste sábado, deixando centenas de mortos e milhares de feridos. Conflito já dura mais de 70 anos
O movimento islâmico armado Hamas bombardeou Israel na manhã deste sábado (7), pelo horário local, em um ataque surpresa considerado um dos maiores sofridos pelo país nos últimos anos.
(...)
Por g1, 07/10/2023, 10:49 hs
sexta-feira, 6 de outubro de 2023
O RISCO DA INSÂNIA
Tomemos a psiquiatria biológica: uma compreensão da mente a partir do funcionamento cerebral não é um erro. É só uma visão incompleta e reducionista da realidade psíquica. E mais: pelo lugar de poder que a psiquiatria ocupa, tal manobra se transforma em danos irreversíveis sobre o paciente. Estamos na área obscura dos biopoderes que formigam por todos os cantos. Desse modo, fabrica-se em escala industrial um organismo físico-químico que consome verdades prontas. "Tome esse comprimido que é para o seu bem". A invisível engrenagem semiótica, para funcionar e funcionar bem (asséptica e sem travamentos), conta com a adesão (inconsciente) de segmentos sociais "bem intencionados" em suas respectivas subjetivações. Um padre, um juiz, um delegado, um burocrata, um pastor, um pai de família, um empresário, um diretor de RH, um médico, um professor, uma mãe, entre outros, são personagens sociais que sustentam o desejo de ordem e harmonia. Alguém que ouse quebrar o circuito afetivo da normalidade naturalizada arrisca-se a mergulhar nas trevas da insânia.
A.M.
quinta-feira, 5 de outubro de 2023
quarta-feira, 4 de outubro de 2023
QUEM DELIRA?
O delírio é considerado um sintoma (perigoso) pela psiquiatria. Por isso é hiper-vigiado e controlado via psicofármacos. Na fenomenologia ele é um modo de existência, um ser-no-mundo. Para Freud, uma defesa contra o desejo homossexual. Já Lacan o via como uma espécie de "buraco" no simbólico, mais elegantemente chamado de foraclusão. São todas elas concepções atadas ao espaço psíquico. Pensamos outra coisa: através das linhas desejantes abstratas (sem forma) de Deleuze-Guattari, acessamos o delírio como produção coletiva. Neste sentido, todos podem delirar, restando saber onde, quem, quando, como, por que e para que. Observe os tempos internéticos on line, ainda mais no universo político. O desejo, em seus mil agenciamentos, se expressa... e delira... Isso põe o técnico em saúde mental (não só o psiquiatra) para além dos neurônios e das sinapses, ou seja, no real. Ou "na real".
A.M.
JESUS, ESSE DESCONHECIDO
O cristianismo será realmente o Anticristo: ele violenta Cristo, proporciona-lhe à força uma alma coletiva; em contrapartida, propicia à alma coletiva uma figura individual de superfície, o cordeirinho.
Gilles Deleuze - in Crítica e Clínica : Nietzsche e São Paulo, D.H. Lawrence e João de Patmos.
terça-feira, 3 de outubro de 2023
O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu.
Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens e das coisas.
Eu imaginava que o mundo visto de uma borboleta seria, com certeza,
um mundo livre aos poemas.
Daquele ponto de vista:
Vi que as árvores são mais competentes em auroras do que os homens.
Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças do que pelos homens.
Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do que os homens.
Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que os cientistas.
Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do ponto de vista de
uma borboleta.
Ali até o meu fascínio era azul.
Manoel de Barros
domingo, 1 de outubro de 2023
SOBRE A DIFERENÇA
Pergunta-se o que é a diferença. A diferença não é o indivíduo, não é a pessoa, não é algo fixo e estável onde se possa ancorar o corpo e a alma exaustos. Nem tampouco é ver, assuntar, medir, pesar, adjetivar, qualificar. Ela não é do campo do substantivo nem do adjetivo, ou de alguma substância dura, pétrea, imóvel, formatada em ideais do valor de troca. Nada a ver com a troca, pilar e essência do capital em seu cortejo mortuário. Tampouco é o ser-diferente, até porque não há o ser. Não é o estranho-em-nós. Já somos de antemão e suficientemente estranhos, estranhos a nós e ao mundo. Não há, pois, medidas para identificá-la. Ela é desmedida. Quando há cálculos, dão sempre errado, as contas não fecham, tudo se frustra e se decompõe. Ao inverso, bem mais além e aqui mesmo, há somente corpos, corpos de corpos, corpos no interior de corpos, devires, processos, passagens, relâmpagos, vertigens, intensidades, frêmitos, respirações, ardores, ardências, viagens anômalas no mesmo lugar. Da diferença não se alimenta o narcisismo porque também não existe o narcisismo no seu universo, este sim, verso encantado, encantador e cantador em estradas desertas. A diferença é o bicho. Não tem forma, não é identificável pela percepção de representações exatas ou imagens-clichês. A diferença é o bicho na espreita. Percorre o mundo em linhas finas de sensibilidade e arte. Com delicadeza foge de todos os dualismos, de todos os títulos, de todos os senhores, de todas as pátrias, de todas as pretensões e boas intenções da racionalidade, da consciência e do pensamento da autoridade, mesmo a mais admirável e mansa. Brinca com o poder, a morte e o amor. Faz disso a própria natureza do seu percurso invisível e silencioso pelos caminhos desconhecidos do Encontro. Composta de multiplicidades ingênuas e encravada na irreversibilidade do tempo, se tece e se faz inglória e pura. Mas quem a suporta?
A.M.
sábado, 30 de setembro de 2023
sexta-feira, 29 de setembro de 2023
FUNCIONÁRIOS DA VERDADE
Eles estão em toda a parte. Talvez sejam a maioria.
São funcionários porque funcionam, operam, agem. Sustentam o mundo estabelecido dos humanos.
Iremos citar alguns exemplos como tentativa de caracterização objetiva e subjetiva. São linhas existenciais que os constituem e se misturam. Por isso um lusco-fusco na expressão prática se impõe como camuflagem de crenças.
Os funcionários administram o acaso para que seja possível a manutenção da ordem. E apelam para a verdade como referência única.
Essa verdade pode ser várias, mil, cem mil. Permanece, contudo, sendo uma verdade.Os funcionários precisam de uma certeza, assim como os pulmões de ar.
Encontramos na grande política funcionários vitalícios. Tanto os que dominam quanto os que são dominados. Há quem chame estes últimos de massa.
Começamos pela política porque aí a história da humanidade é a de um pesadelo do qual não se acorda.Mas poderia ser outro começo.
Por exemplo, a religião: nela os funcionários (ou fiéis) costumam ser ungidos acima dos mortais, na medida em que cultuam a imortalidade.
Mas há muito mais, já que a verdade ajuda (e muito) a viver.
A universidade, e sua forma que vem da Idade Média, usa dos seus para promover a verdade do pensamento. A sociedade fica abaixo no quesito intelectual.
A verdade da academia exporta seus seguidores para a ciência. Ou o inverso, tanto faz.
Para complicar a questão da verdade, o capital e o seu método, o capitalismo, fabrica uma verdade única, a mercadoria. Esta se expande e se disfarça nos poros abertos do corpo social. Uma longa história atualiza a barbárie planetária do horror econômico. Ou seria político?
A pessoa humana (conceito cristão) naturaliza o funcionamento da verdade como crença no eu, na consciência e no céu como eterna promessa. O futuro não chega.
As massas consomem e gozam palavras-de-ordem veiculadas pela mídia.
Fake news são verdades, mesmo não sendo.
Em casos extremos, funcionários da verdade tornam-se fascistas. Querem tampar o buraco de sentido das sociedades de controle. Uma crispação paranóide se anuncia como crise política.
No amor, o romantismo traz o tom adocicado da verdade para os amantes da fantasia. Isso não funciona mais, exceto como arcaísmo.
A.M
quarta-feira, 27 de setembro de 2023
AFETOS NÔMADES
Os afetos são o que impulsiona os modos de subjetivação (pessoa). Eles funcionam em dobras e misturas subjetivas de toda ordem, ao ponto de alguém dizer: "não sei o que estou sentindo". São fruto das relações humanas e inumanas. A psiquiatria tecnológica, sob a grosseria semiótica habitual no trato com eles, despreza-os, já que não escuta o paciente, ou só escuta atrás de uma grade nosológica. No entanto, o que importa para uma clínica psicopatológica que enfatize a diferença, é que os afetos são inomináveis, por isso mesmo expressão trágica (não comunicável) e extrema (radical) da condição humana. O acesso à existência do outro só se fará, então, por meio da linguagem da arte e da poesia, mesmo que não sejamos artistas ou poetas. Para "chegar" ao paciente, é preciso um devir-outro , um devir-alma, um devir-alegria para inventar linhas de risco ao conteúdo do desejo. Elas funcionam em expansão incessante ao mundo (como na criança) criando-o enquanto território singular.
A.M.
sexta-feira, 22 de setembro de 2023
SEM CORPO, SEM AFETO
A psiquiatria produz o corpo-organismo, tomando-o como base da propedêutica clínica: o que fazer com (do) o paciente ? Este organismo tem uma forma que lhe autentica a “natureza” do humano, algo que interage com o mundo fabricando a chamada subjetividade. A inscrição do mecanicismo no funcionamento do organismo é estabelecida pelas relações entre os sistemas (renal, endócrino, nervoso, cárdio-circulatório, etc) que supostamente “antecedem” a realidade do mundo. Portanto, quando em psiquiatria se fala em desejo é em nome de sentimentos humanos que constituem o “estar vivo”. A equação sentimento=alma=espírito é dada como natural, ultrapassando a animalidade em prol de uma espécie de divinização do humano através da instituição da Consciência. “Só o homem tem uma alma”. Desse modo, o que se chama “organismo” é automaticamente ligado à “consciência” como lugar da verdade. Tal percurso conceitual (invisível, pois está encravado em práticas institucionais) une a ausência de corpo à ausência de desejo. Uma psiquiatria sem corpo e sem desejo é possível? Como isso funciona?
A psiquiatria funciona não funcionando. Tal paradoxo operacional compreende alianças institucionais poderosas. Citemos 5: a família, a escola, o direito, o estado e a polícia. Há outras... Usamo-las como referência à produção de um organismo-verdade ajustado aos funcionamentos de manutenção fisiológica e bioquímica que lhe dizem respeito. “Não funcionar” significa estar sem corpo e sem afeto e ao mesmo tempo produzir organismos centrados na consciência. O filho, o aluno, o réu, o cidadão e o bandido (respectivos às instituições nomeadas acima) oferecem um organismo e uma consciência como suportes de verdade à psiquiatria esvaziada de conceitos, mas prenhe de poderes. É que ela se insinua e se inscreve num campo social capturado pelo capital semiótico hegemônico (significância) e só funciona graças a esses suportes (territórios) expressos no visível (organismo) e no dizível (consciência). Buscamos outra coisa: criar síndromes psiquiátricas a partir da escuta e do olhar clínico mais diretos: um estado selvagem ético-estético. Uma psiquiatria da diferença ou a diferença na psiquiatria.
A.M.
terça-feira, 19 de setembro de 2023
domingo, 17 de setembro de 2023
sábado, 16 de setembro de 2023
SEM ANESTESIA
O conceito de medicalização da sociedade é tributário do capitalismo industrial avançado. Possui um alcance planetário, na medida em que a tecnologia médica, sustentada pela ideia de progresso, avança como oferta de produtos a serem consumidos em meio ao estilo de vida contemporâneo. Tal estilo tem como base a produção subjetiva correlata à produção econômica. Ou seja, cada vez mais inexistem divisões entre os vários setores da vida social, fazendo desta uma mera extensão dos processos do capital (sempre mais lucro, mais domínio, mais controle e exploração...), no caso médico uma semiologia do organismo doente adaptada às necessidades de controle propedêutico pelos equipamentos de saúde. Daí as soluções de problemas sociais se afiguram através o uso da terapêutica médica precedida pelo diagnóstico cada vez mais estabelecido por imagens (exemplo da USG). A medicalização não é, pois, um fenômeno médico, pelo menos na sua origem, mas um produto do funcionamento científico das relações capitalísticas, totalizadas na figura subjetiva do consumidor-padrão. A medicina segue e “obedece” ao processo histórico-social porque ela mesma é uma forma social no sentido de uma instituição poderosa que emplaca um discurso humanitário às custas da produção-consumo de pacientes. Medicalizar é, pois, um ato político antes de ser técnico.
AM.
quarta-feira, 13 de setembro de 2023
segunda-feira, 11 de setembro de 2023
Prefácio
Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) —
sem nome.
Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos errados de cor caíam no mar.
A voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos apertavam mangues.
Vendo que havia na terra
dependimentos demais
e tarefas muitas —
os homens começaram a roer unhas.
Ficou certo pois não que as moscas iriam iluminar
o silêncio das coisas anônimas.
Porém, vendo o Homem
que as moscas não davam conta de iluminar o
silêncio das coisas anônimas —
passaram essa tarefa para os poetas.
Manoel de Barros
sábado, 9 de setembro de 2023
sexta-feira, 8 de setembro de 2023
O QUE É UMA PSIQUIATRIA MENOR? 3ª parte
Ela se divorciou da psiquiatria maior (neuro-biológica). Não sob tumulto ou oposição tipo "melhor ou pior", mas como linha prática e clínica produzida na relação com o paciente. Antes de ser técnica, uma aposta ética lhe move ao fazer o Cuidado cuidar.
A psiquiatria menor intervêm no universo oculto ou semi-oculto dos humilhados afásicos. Isso inclui os excluídos ao ar livre, os que vegetam, trastes familiares, párias da mente. Cárceres privados são só um exemplo.
A saúde mental é o objeto de pesquisa dessa psiquiatria (talvez inglória) que se deixa afetar por gritos de angústia, fobia e pânico e por delírios, alucinações de fim de mundo, apocalipse e suicídio.
Uma psiquiatria menor funciona, pois, em equipe, em grupo, no coletivo, mesmo quando o psiquiatra está só. Principalmente quando está só.
Ela não busca reconhecimento científico, intelectual, acadêmico, pretígio, poder, money. Opera no silêncio dos encontros, no risco das terapêuticas criativas e na loucura do mundo.
Não faz política porque em si mesma já é política, inteiramente política, dos pés à cabeça política e por isso mesmo cultiva alma clandestina e corpo guerreiro. Nem mesmo o grande abraço das camisas de força farmacológicas a intimidam.
Quando sente que o barco vai virar (ou já virou) sai a nado em direção a outros mares. Sem terra à vista.
A.M. (20/02/2022)
quinta-feira, 7 de setembro de 2023
Primeiro levaram os negros, Mas não me importei com isso. Eu não era negro. Em seguida levaram alguns operários, Mas não me importei com isso. Eu também não era operário. Depois prenderam os miseráveis, Mas não me importei com isso, porque eu não sou miserável. Agora estão me levando. Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo.
Bertolt Brecht
SOBRE O ÓBVIO
Saúde mental não é saúde do cérebro. A mente não é um órgão. A mente é um construto teórico composto por mil processos afetivos e semióticos que circulam livres para o funcionamento dos códigos sociais. Mente é trabalho, família, política, saúde, escola, mídia, entre outras instituições. Assim, tal questão conceitual (simples mas essencial) estabelece condições de enunciação para a prática da psiquiatria e dos saberes chamados psi. Falamos da clínica e seus efeitos sobre as pessoas.
A.M.
segunda-feira, 4 de setembro de 2023
domingo, 3 de setembro de 2023
sábado, 2 de setembro de 2023
quinta-feira, 31 de agosto de 2023
QUEM É POETA?
A experiência poética não é só a de quem escreve o poema, mas também a de quem o lê. Em tempos de tecnologia industrial avançada e aparentemente vencedora, a poesia ocupa um lugar de criação "menor" e por isso, maior. Maior só o menor, o ínfimo. Não no sentido de uma forma "pequena", mas o "sem forma", como nos espaços infinitesimais do filme "O incrível homem que encolheu" ( Jack Arnold, 1957). A experiência poética se dá num processo de criação subjetiva (bem entendido, no mundo) onde a violência feita à sintaxe e à semântica afronta o caos no próprio terreno que é o da semiótica. Produzir signos a-significantes talvez seja a função do poeta/leitor como aventureiro dos universos indizíveis. Por isso experimenta o gosto das paixões sem dono. Ler um poema é ligar-se ao poema numa linha de fuga existencial, nem que por um segundo. Zero para a possibilidade de interpretar ou compreendê-lo, ele, o sem-razão e sem-governo, o sem-sentido, o poema. O sentido é o que é produzido pelo leitor. Assim, a experiência poética é acessivel a todos. Basta sentir a pulsação das horas no coração da Terra. Não é fácil, mas vale a pena.
A.M.
quarta-feira, 30 de agosto de 2023
Minha mulher e eu temos o segredo para fazer um casamento durar:
Duas vezes por semana, vamos a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa, uma boa bebida e um bom companheirismo. Ela vai às terças-feiras e eu, às quintas.
Nós também dormimos em camas separadas: a dela é em Fortaleza e a minha, em SP.
Eu levo minha mulher a todos os lugares, mas ela sempre acha o caminho de volta.
Perguntei a ela onde ela gostaria de ir no nosso aniversário de casamento, "em algum lugar que eu não tenha ido há muito tempo!" ela disse. Então, sugeri a cozinha.
Nós sempre andamos de mãos dadas...
Se eu soltar, ela vai às compras!
Ela tem um liquidificador, uma torradeira e uma máquina de fazer pão, tudo elétrico.
Então, ela disse: "nós temos muitos aparelhos, mas não temos lugar pra sentar".
Daí, comprei pra ela uma cadeira elétrica.
Lembrem-se: o casamento é a causa número 1 para o divórcio. Estatisticamente, 100 % dos divórcios começam com o casamento. Eu me casei com a "senhora certa".
Só não sabia que o primeiro nome dela era "sempre".
Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la.
Mas, tenho que admitir: a nossa última briga foi culpa minha.
Ela perguntou: "O que tem na TV?"
E eu disse: "Poeira".
Luis Fernando Verissimo
terça-feira, 29 de agosto de 2023
CUIDADO: Zolpidem
A bancária Angélica Prado, 34, tem dificuldades para dormir desde a infância. Mas o diagnóstico de insônia crônica só veio em 2014, junto à recomendação de tomar zolpidem, um remédio indutor do sono. Esse foi o começo de uma relação problemática. Angélica desenvolveu dependência ao medicamento e em uma crise de abstinência tomou 85 doses de uma vez. Ao VivaBem, ela compartilha sua história e a jornada para deixar de usar o remédio.
(...)
Viva Bem, São Paulo, 29/08/2023, 04:20 hs
domingo, 27 de agosto de 2023
sábado, 26 de agosto de 2023
A NOITE É UMA CRIANÇA
Um amante e seu desejo percorrem as linhas tênues e invisíveis dos corpos, não só humanos. Um amante vive de acontecimentos na borda dos territórios de vida. Há sempre o perigo dele despencar num vazio brutal sem remédio. Mas os sons da estrada nua ou do mato chegam antes e tamponam o tal vazio com a música da natureza. Ela se incorpora ao amante como gosto de experimentar o deslimite das bocas num bar do fim do mundo. Um amante viaja em si, consigo mesmo, por si mesmo na imensidão do fora de si. Até que o dia amanheça sem culpa e fora do tempo.
A.M
quinta-feira, 24 de agosto de 2023
DEVIR-MULHER
Todo rosto é uma paisagem. Mulheres povoam o deserto sem oásis. Paixões são deixadas no caminho dos tuaregues. Encontrei passagens secretas. Me deixei ir. Dormi com as algas. Salguei nas entranhas. Escorri com a chuva. O tempo avisou: a hora nunca chega. É difícil encontrar uma mulher anunciando o vento, arrastando enseadas. Lá vem ela em plena manhã de sol. Olho seus olhos. Como posso achá-los senão através de uma “longa preparação”? Me perco em romances e imagens. Protelo encontros cruéis. Essa alegria tão alegre, dói. Onde achei mulheres de rosto cósmico, as expressões do mal foram do bem. Fui direto às que teceram vidas e camas em espaços quentes. Adornei veias com traços heróicos de coxas lisas. Olhos graúdos me ensinaram a nadar na secura dos lábios. Cabelos muito pretos cheiravam aos perfumes do orvalho. Eles enlaçavam a alma viajante das intensidades em brechas do desejo. Pongando no seu corpo, saí a passear por planícies infinitas. Isso me trouxe a alegria em pequenos potes. Quantas vezes naufragamos? Toda mulher é uma paisagem. Afirma as horas que chegam doadas em películas de ouro. Nada volta. Estou aqui. Um coração professa o anti-romantismo disfarçado de suavidades. Uma voz rouca ecoa musical. Estágio zero. Nunca se ama uma mulher, mas os seus signos enviados. Os nômades, os feiticeiros, os mágicos, acendem as tardes translúcidas e luzidias de Salvador: tudo arde, tudo treme na busca da anti-cura do desvario mais selvagem. As mulheres são melhores.
A.M.
terça-feira, 22 de agosto de 2023
domingo, 20 de agosto de 2023
SIGNOS DO AMOR
Apaixonar-se é individualizar alguém pelos signos que traz consigo ou emite. É tornar-se sensível a esses signos, aprendê-los (como a lenta individualização de Albertina no grupo das jovens). É possível que a amizade se nutra de observação e de conversa, mas o amor nasce e se alimenta de interpretação silenciosa. O ser amado aparece como um signo, uma "alma": exprime um mundo possível, desconhecido de nós. O amado implica, envolve, aprisiona um mundo, que é preciso decifrar, isto é, interpretar. Trata-se mesmo de uma pluralidade de mundos; o pluralismo do amor não diz respeito apenas à multiplicidade dos seres amados, mas também à multiplicidade das almas ou dos mundos contidos em cada um deles. Amar é procurar explicar, desenvolver esses mundos desconhecidos que permanecem envolvidos no amado. É por essa razão que é tão comum nos apaixonarmos por mulheres que não são do nosso "mundo", nem mesmo do nosso tipo. Por isso, também as mulheres amadas estão muitas vezes ligadas a paisagens que conhecemos tanto a ponto de desejarmos vê-las refletidas nos olhos de uma mulher, mas que se refletem, então, de um ponto de vista tão misterioso que constituem para nós como que países inacessíveis, desconhecidos: Albertina envolve, incorpora, amalgama "a praia e a impetuosidade das ondas". Como poderíamos ter acesso a uma paisagem que não é mais aquela que vemos, mas, ao contrário, aquela em que somos vistos? "Se me vira, que lhe poderia eu significar? Do seio de que universo me distinguia ela?"
(...)
Gilles Deleuze in Proust e os signos