sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

O que é psiquiatria? (1)

A psiquiatria é uma especialidade médica surgida na França em fins do século XVIII. Ai se dá a passagem (conforme Pinel) dos asilos aos manicômios.

No entanto, sua origem mais longínqua remete à existência de asilos no século VII (cultura árabe) e no século XVI (ocupação árabe na Espanha). Desde então passam a ser chamados de hospícios e se espalham pela Europa.

Sendo assim, a origem da psiquiatria se confunde com a origem dos asilos, dos hospícios e dos manicômios. Tudo se prepara para encolher as mentes.

A lógica dos asilos é o DNA da psiquiatria.

Já o século XIX, chamado século dos manicômios, dá origem aos hospitais psiquiátricos conforme o modelo atual.

São conhecidas as agressões e os horrores perpretados contra pacientes nos manicômios desse século. Foucault descreveu com detalhes as torturas científicas.

No Brasil, entre outros horrores, o hospital psiquiátrico de Barbacena é um registro histórico como modelo da barbárie consentida.

No período do estalinismo na União Soviética (1927/1957) presos políticos (quantos?) foram internados em hospitais psiquiátricos. 

No período da ditadura brasileira (1964/1979)  presos políticos (quantos?) foram internados em hospitais psiquiátricos.

A psiquiatria tem uma história pouco edificante.

No Brasil, veio a reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial. Diferentemente, no campo da medicina não se tem notícia de alguma reforma cardiológica, pneumológica, nefrológica, etc.

De fato, trata-se de uma especialidade que pede  um método para além do biomédico.

A psiquiatria (psicopatologia) não dispõe de uma teoria dos afetos, apesar da extrema importância desse conceito para o trabalho clínico, ou seja, da gestação do vínculo com o paciente.

O paciente psiquiátrico muitas vezes não quer ser atendido pelo psiquiatra, sendo levado à força por familiares ou terceiros. Na clínica médica, não se tem notícia de tal recusa por vezes hostil e agressiva.

O objeto de pesquisa e intervenção clínica da psiquiatria é invisível, impalpável e abstrato. Chamado de “mente” , não há nada parecido em pesquisa médica. A mente não é o cérebro.

Nos hospitais psiquiátricos (ainda existem!) é muito comum pacientes fugirem. Por que fugiriam do tratamento? Em contraste, nos hospitais gerais (clínicos) isso não existe. Pelo menos, que se saiba.

 A alta e a cura são dispositivos raros na psiquiatria clínica.

Sim, uma estranha especialidade essa.


A.M.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

(...)

Não adianta dizer “eu estou tão triste…” “eu sou inteligente…”, não adianta: ninguém vai entender, você vai ficar ali morto!… E, aliás… ainda bem, não é? Ainda bem! Quer dizer… é muito difícil a psicanálise dar certo no mundo da afecção. Não dá! Não dá porque não há questão de história pessoal… Ali você pode fazer o que Guattari pregava – uma esquizoanálise; tornar-se um explorador, um cartógrafo... e pegar os pontos afetivos, as linhas de afeto… É completamente diferente!

Aula de C. Ulpiano (27/01/1995

domingo, 19 de fevereiro de 2023

SEM  IDENTIDADE

O olhar da diferença é um olhar sutil. Ele não vê, apenas enxerga. Capta impressões vagas e exatas. Trabalha no detalhe ínfimo das coisas. Formiga por todo o corpo. Opera como quando se diz: "o amor é cego". Não que a diferença seja o amor, até porque este não existe como coisa, substância, essência, objeto sólido, propriedade, mas como o acontecimento-amar. Ir além é pois amar o acontecimento como o que não retorna jamais, e que sempre volta com a manhã profunda e leve. Isso é antigo e ao mesmo tempo novo. No exercício dos seus paradoxos, nas cambalhotas do pensamento da alegria o olhar da diferença é mais que um olhar, mais que a perspicácia e a doçura desse olhar. O "amar" enxerga nas trevas, orienta-se por sensações, é arte, pura arte. Questão ética: a potência. É uma prática de vida, um estremecimento, um frêmito, um grito silencioso, um instante lunático. Está encravado nas horas em que Virgínia Woolf captou com todas as suas forças, com todo o esplendor da poesia que viveu. Sem limites para criar. 


A.M

DA MEDICINA

Sob as condições do capitalismo aparentemente vencedor, a Medicina tornou-se uma mercadoria. E das mais caras.Qualquer avaliação de suas práticas, de suas idéias, de seus progressos, de suas maravilhas, deve considerar esse dado histórico-social, a não ser que a análise fique atrelada a uma visão liberal-humanística ( e romântica) do médico como indivíduo fazedor do bem.

A.M.


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Quem me garante que Jesus Cristo não estaria hoje na estatística da mortalidade infantil?

Escrevemos, escrevemos, escrevemos. Clamamos no deserto. O clube do poder tem as portas lacradas e calafetadas.


Otto Lara Resende

sábado, 11 de fevereiro de 2023

A alma é o corpo. Ela se compõe de dobras sobre dobras, para sempre a exterioridade dentro de nós. Um mundo que já chega jogando e jogado. Sem começo nem fim. Uma obviedade.


A.M.

TULIPAS ETERNAS

 


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Convenientemente aplicado a qualquer situação, o amor vence sempre. É um fato que se verifica empiricamente. O amor é a melhor política. A melhor não só para os que são amados, mas também para quem ama.Pois o amor é um potencial de energia.

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A felicidade real sempre parece bastante sórdida em comparação com as supercompensações do sofrimento. E, por certo, a estabilidade não é, nem de longe, tão espetacular como a instabilidade. E o fato de se estar satisfeito nada tem da fascinação de uma boa luta contra a desgraça, nada do pitoresco de um combate contra a tentação, ou de uma derrota fatal sob os golpes da paixão ou da dúvida. A felicidade nunca é grandiosa.


Aldous Huxley

A  DANÇA  DOS  CORPOS

A medicina trabalha com o corpo-organismo. Este é o seu objeto. Não apenas numa relação de exterioridade entre o médico e o seu paciente. Também numa implicação clínico-afetiva. Contudo, é preciso escapar do raciocínio tosco da visão humanitária e bem intencionada da medicina. Se ela é uma instituição como tantas outras, é preciso captar o real em si mesmo. Algo mais profundo e menos evidente acontece, dado que Michel Foucault aponta em suas pesquisas. Isso diz respeito às relações de poder. Elas preenchem a teia institucional de tão prestigiosa carreira. Tal ato profissional (técnico) intervêm no organismo humano, que por sua vez é de antemão produzido por formações do poder médico interessadas em identificá-lo individualmente. Eis "o doente paciente". Uma das consequências desse fato aparentemente banal é a surdez médica à fala do outro, já que o suposto saber ("ouça o médico porque ele estudou!") dispensa as linhas vivenciais singulares daquele que sofre e portanto encontra-se vulnerabilizado. Assim, o Organismo, concebido como uma organização/sistema dos órgãos, é o que interessa ao médico na ação clínica e/ou cirúrgica de curá-lo ou pelo menos de melhorar a sua qualidade de vida. No entanto, funcionando no lusco-fusco dos afetos oprimidos, e lado a lado com o Organismo hegemônico das praticas médicas, há o corpo invisível das intensidades afetivas, o corpo sem forma, o corpo das potências irradiantes, o corpo erógeno, o corpo composto por fibras de Luz (como diria Castañeda), o corpo vibrátil, expansivo, dançante, corpo funcionando sob o combustível desejo. Não se trata, claro, de um corpo latente ao modo da psicanálise mais antiga, a chamada "outra cena". Nada mais enganoso. O corpo está aí, está aqui, está entre nós rosnando sem cessar suas animalidades envolventes. Trata-se do corpo como expressão no mundo, numa palavra, a materialidade do espírito, o corpo-criança e sua alegria sustentada no sem-sentido do nada. A medicina não enxerga esse corpo porque os seus técnicos não foram treinados para tal, e porque suas bases epistemológicas desmoronariam se aceitassem e promovessem o que pode um corpo (como diria Spinosa).


A.M.

ALEXANDER BOLOTOV


 

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Os bens do poeta: um fazedor de inutensílios, um 

travador de amanhecer, uma teologia do traste, uma 

folha de assobiar, um alicate cremoso, uma escória 

de brilhantes, um parafuso de veludo e um lado 

primaveril.


Manoel de Barros

ÉTICA DO CUIDADO : PARA ALÉM DO TRATAMENTO

Como é óbvio, o estado de saúde de alguém não se restringe ao bom funcionamento do organismo. Isso seria por demais simplista e  até mesmo a OMS percebe ao defini-lo como "bem-estar bio-psico-social".Ainda que verdadeiro, esse enunciado estanca num nível abstrato (irreal) se não experimentarmos como funciona em práticas sociais. E mais, quais seriam as implicações subjetivas tanto para o paciente quanto para o técnico em saúde? Segundo tal linha de pensar, o tratamento em saúde refere-se antes de tudo à prevenção de doenças  do que para a obtenção da cura. isso remete a opção "tratar a sociedade". Apesar de pertinente, tal amplitude foge aos objetivos do texto. Por isso usamos o conceito "ética do cuidado" substituindo ao de"ética do tratamento". Tudo muda. A  "nova" ética passa a ser a do aumento de força ( potência) de existir, o que acontece (ou deveria acontecer) no Encontro entre o técnico em saúde e o seu paciente. Como oposto, haveria a redução da força (potência) de existir inscrita como "digital" da pratica em atendimentos serializados, mecanizados, padronizados, etc. Resumindo, a ética do cuidado vê o invisível. A ética do tratamento não vê o invisível porque o seu método não foi feito para isso, sendo cego para captar afetos. Ora, estes é que são o invisível.  Pense: será que alguém já viu a angústia ou a fobia de um paciente como imagens projetadas no écran de uma RNM de crâneo?


A.M.

IRENE SHERI

 


AFETOS E TRANSFERÊNCIA

Os afetos são o que move as relações humanas e inumanas. No campo técnico-profissional (saúde) eles adquirem um valor singular. É que a saúde se mostra como um campo existencial onde se explicitam códigos sociais vinculados a experiências-limite.  A dor física, o medo, a angústia, o desamparo, a doença, a morte, a perda da autonomia, etc. são situações que se movem e se expressam por e pelos afetos. O técnico em saúde é afetado pela experiència-limite do paciente porque ela pode também acontecer consigo. Ele, o técnico, está implicado como humano, está no mesmo universo de sentido, "mesmo que não esteja". Impossível negar esta realidade que constitui o trabalho em saúde. Os afetos precedem a técnica e estabelecem uma consistência vivencial ao ato de ajuda (terapêutico). Isso é válido num espectro de gravidade que vai das situações clínicas emergenciais complexas aos atendimentos mais simples. São níveis de intensidade vivencial: atingem o técnico como subjetivação em ato. Neste sentido o conceito de transferência ( Freud) nos é útil. O real que circunda e constitui a relação com o paciente pode ser percebido como 1- um mundo imaginário de formas sociais, códigos  estáveis,  significações prévias como por ex. "ver" o paciente como alguém da família, ou como 2- um mundo caótico de forças (portanto invisível) que flui sem cessar entre criar/destruir. São territórios a um tempo subjetivos e objetivos que vêm misturados, entrelaçados, e só critérios ético-clínicos serão capazes de discernir a escolha.


A.M.

Shoot the Moon - Sol León & Paul Lightfoot (NDT 1 | Somos)

sábado, 4 de fevereiro de 2023

LINHAS DO  INFINITO

Há um limite a partir do qual a diferença não se reconhece e não mais reconhece o mundo. Um horror tão extremo e definitivo se instala: ela, a diferença, torna-se pequena e frágil. Tudo o indica. Fala-se da história da humanidade: uma brochada cósmica. A diferença não mais reconhece aí a palavra "vida" por entre escombros da própria vida. Resta o império do medo reinando entre pessoas do mal que se acham do bem. Um dualismo pérfido. Portador de uma verdade, o monstro (sem forma) do Ressentimento assombra e contamina  o dia que nasce. Aborta as micro-revoluções internas dos sonhos azuis de uma criança. Nivela os afetos. Aniquila a política, escorraça a ética e enfeia a estética. Resta a melancolia ( como um drone) sobrevoar a paisagem das pessoas monstruosas ou dos monstros pessoais. E os adornar. E os adorar. Para os idiotizados, o Império administra  a carne fria da morte em vida. Mercadoria da alma. Tudo é disfarce. Anunciaram em rede nacional no horário nobre, o apocalipse moderno. Mas algo resiste como a diferença...


A.M.

PAUL VIRILIO - Pensar o Atual


 

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

LINGUAGEM E PODER

Na prática clínica, a linguagem técnica utilizada compõe um território importante de significação para o paciente. Ela é mediada por palavras de ordem, as quais estabelecem de modo implícito que o paciente deve obedecer para só assim ser ajudado, tratado, talvez curado. Isso não é um mal em si pois constitui toda relação humana onde está presente o especialista. Esse dado se agrava quando ocorre na clínica, já que a ação do especialista pode tocar o limite entre a vida e a morte. O sofrimento da espera (o que acontecerá?) é modulado pelo poder . Produção de angústia.  O paciente, ser vulnerável por excelência, atende pelo nome de "paciente" antes mesmo de dizer o seu próprio, uma singularidade apagada na demanda por ajuda. É óbvio  que as situações de vulnerabilidade tem variáveis múltiplas. Daí a Ordem ser impessoal, vir de fora e  preceder a técnica. Deriva da forma social "Saúde", a qual é apropriada pela medicina, profissão hegemônica. Assim o paciente sofre um efeito de subjetivação médica (pensar como um médico) na sua vivência, na expressão verbal e corporal. Não é incomum chegar com um auto-diagnóstico pronto. Esta é uma verdade importante para ele, mesmo que esteja errado. Enfim, no Encontro em saúde o poder é uma das condições de possibilidade para o ato dito terapêutico. A este se somam linhas técnicas, não-técnicas e imprevisíveis (sem nome). Toda uma multiplicidade de escolhas de intervenção se coloca na relação entre os corpos visíveis e invisíveis.


A.M.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

HENRY ASENCIO


 

CONTEXTUALIZAR O ENCONTRO

É possível situar o Encontro no campo da saúde. Significa ampliar o  significado para além da relação técnico-paciente e ao mesmo tempo usar tal relação como território de sentido em  práticas clínicas. Ou seja,  pensar a saúde num universo coletivo e  intervir sobre o paciente enquanto corpo. Contudo, distinguimos "organismo" (sistema de órgãos)  e "corpo"  (processo de vida nem sempre visível). Trata-se, no caso do encontro, de acessar novos campos de energia. Isso não é fácil. São corpos que só existem em relação com outros corpos. Uma implicação ética marca o contexto.  Onde?Quando? Para que? Por que? etc Tal base conceitual faz pensar ( e criar) o Encontro fora do modelo biomédico. A medicina, devido ao modelo positivista que adota ( organismo visível, palpável, mensurável) , e também à sua aliança com o capital (a mercadoria saúde, sempre mais lucro), costuma promover o anti-encontro disfarçado de intenções humanistas. Para ir contra esse estado de coisas, o Encontro em saúde é uma conexão diferente com  quem necessita de ajuda e não é escutado. A visão médica não é descartada, mas enriquecida. Remete a outras formas de sensibilidade, intuição e percepção clínica. 


A.M.

PARTO TRI - Nederlands Dans Theater - NDT 1 & NDT 2 - Excerpts