segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

SOBRE SPINOSA

Mas o que é um corpo? Esse seria o objeto de um curso específico, e eu não vou desenvolvê-lo. A teoria sobre o que é um corpo, ou então uma alma, dá no mesmo, encontra-se no livro II da Ética. Para Spinoza, a individualidade de um corpo se define assim: é quando uma relação composta ou complexa (eu insisto nisso, muito composta, muito complexa) de movimento e de repouso se mantém através de todas as mudanças que afetam as partes desse corpo. É a permanência de uma relação de movimento e de repouso através de todas as mudanças que afetam todas as partes, ao infinito, do corpo considerado. Vocês compreendem que um corpo é necessariamente composto ao infinito. Meu olho, por exemplo, meu olho e a relativa constância de meu olho, se define por uma certa relação de movimento e de repouso através de todas as modificações das diversas partes do meu olho; mas meu próprio olho, que já tem uma infinidade de partes, é uma parte entre as partes do meu corpo, ele é uma parte do rosto, e o rosto, por sua vez, é uma parte do meu corpo, etc. Portanto vocês têm todos os tipos de relações que irão se compor umas com as outras para formar uma individualidade deste ou daquele grau. Mas em cada um desses níveis ou graus, a individualidade será definida por uma certa relação composta de movimento e de repouso. 

O que pode acontecer se meu corpo é feito desse modo, uma certa relação de movimento e de repouso que subsume uma infinidade de partes? Podem acontecer duas coisas: eu como alguma coisa que eu adoro, ou então, outro exemplo, eu como alguma coisa e caio envenenado. Literalmente, em um caso eu fiz um bom encontro, e no outro, fiz um mau encontro. Tudo isso refere-se à categoria do "occursus". Quando eu faço uma mau encontro, isso quer dizer que o corpo que se mistura com o meu destrói minha relação constitutiva, ou tende a destruir uma de minhas relações subordinadas. Por exemplo, eu como alguma coisa e tenho dor de barriga, e isso não me mata; mas isso destruiu ou inibiu, comprometeu uma das minhas sub-relações, uma das relações que me compõe. Depois eu como alguma coisa e morro: nesse caso, isso decompôs minha relação composta, decompôs a relação complexa que definia minha individualidade. Isso não destruiu simplesmente uma das minhas relações subordinadas que compunha uma de minhas sub-individualidades, isso destruiu a relação característica do meu corpo. Quando eu como alguma coisa que me convém, se dá o inverso.

G. Deleuze, fragmento de aula, Cours Vincennes,  sur Spinosa, 24/01/1978

domingo, 25 de fevereiro de 2024

A MARCHA DA ESTUPI -10 - EDUARDO BUENO

O QUE É UMA PSIQUIATRIA MENOR?

É uma psiquiatria da alma. Não a alma usada nas religiões, mas a alma do mundo das coisas,  a que se desloca veloz e invisível: o pensamento. A psiquiatria cuida disso. Ou deveria. Pelo menos, quando enlouquece.

Uma psiquiatria menor busca captar o paciente através de percepções finas e encontrá-lo onde jamais alguém o encontrou. Uma ética de força e criação guia suas ações, mesmo as farmacológicas.

Seu instrumento de pesquisa e intervenção prática (clínica) é uma psicopatologia aberta às mil influências (saberes) do que está longe e ao mesmo tempo tão perto. Seu objetivo é sondar o fora ( não como espaço) mas como ligação ao cosmos aqui em terra firme. É uma psiquiatria do real.

Considera antes de tudo, os corpos-em-relação, os corpos-em-vibração,  o que move o paciente e o técnico: afetos. 

A política existe como trama de poder onde a psiquiatria está incluída. No entanto, para além ou aquém do regime binário direita/esquerda, ela é apaixonada pela diferença, pela singularidade e pelo múltiplo.

Uma psiquiatria menor é grande. Necro-psiquiatras lhe são estranhos.


A.M.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

uno


eu não sou eu sou nosotros

formamos um coletivo

lutamos todos por todos

por semelhantes motivos


tua fome é minha fome

teus medos meus calafrios

somos homens somos bichos

nasceu de ti é meu filho


(couro pele pena escama

precisamos proteger-nos

dos terríveis predadores

de todo e qualquer perigo)


Líria Porto  

Rehearsal world premiere - Simon McBurney ICW Crystal Pite (NDT 1 | From...

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

A DIFERENÇA É UMA CLÍNICA

A  análise dos afetos e dos sistemas de crenças substitui o insípido exame mental. Começa  pelo corpo em ação, mesmo que este esteja imóvel. Linhas do corpo não são as do  organismo físico-químico.Os afetos se traduzem em movimentos às vezes imperceptíveis. Preenchem outro corpo, o corpo das intensidades. Os olhos. O paciente é olhado nos olhos. Eles revelam algo do nível  da consciência naquele momento. Ora, o nível da consciência está em contínua mudança, mesmo que tal  fato não  seja  percebido. E geralmente não é, exceto  em situações clínicas “grosseiras” como nos quadros organo-cerebrais.A consciência está sujeita à flutuações. Estas escapam à visão do médico. A análise da consciência é atravessada pelos afetos e suas  expressões. O  corpo visível, enquanto  sujeito e objeto  do pragmatismo  social,  se  apresenta de  imediato. “Ele está pragmático?”, pergunta  nem sempre  formulada, mas sempre pensada. No  cara a cara  psiquiatra-paciente (um antigo dispositivo) a  questão  básica é a  do  poder. Esse dado, tão  discutido por Foucault, tem na proposta de uma clínica  da diferença, o  valor da realidade fabricada  pela  psiquiatria.  Valor relativo  pois  o  paciente  de  fato  necessita   de ajuda  ou  pelo menos  algo  deve  ser  feito em  prol  da vida. Ora, o Encontro  torna-se  uma  sensibilidade não codificada  em manuais de  psiquiatria. Nada  a  propor  senão linhas anormais da existência.A hora do tempo a-temporal se afirma. Um paradoxo. É a temporalidade como matéria irreversível, devir. Esta é a base (o tempo) para se pensar o paciente  como um agenciamento  de forças,  estranho  encontro regido pelo  acaso, mas do qual não há como escapar. O  paciente traduz  um  certo  comportamento. Sob  um  olhar-clichê,  ele  se  constitui  como  comportamento  preso  num regime  de visibilidade. Não mais. Daí a  rigidez do exame  mental clássico  ceder lugar a  uma percepção fina  construida na  prática  com  o outro. Apesar  de  reconhecer a importância da fenomenologia,  aqui  não se trata  dela. Tampouco  se  trata de um espiritualismo travestido de clínica. Buscamos construir um plano não  hierarquizado. As relações de poder compõem esse  plano junto a outras relações num continuum empírico sem forma. Tudo  se passa num  lugar  sem  lugar. Ao  seguir a  trilha   do  inconsciente produtivo em suas expressões  à  luz  do  dia,  o percurso  da  diferença se  defronta com  o ato  de criar.  Ou  seja,  trata-se  de  algo  que  (ainda)  não  existe. Na  verdade,  o ato  de  criar é o  ato  de diferenciar-se.   O formato da  clínica não é o  do psiquiatra atrás de uma mesa defronte  ao  paciente.  Pode ser  qualquer coisa, até mesmo a tradicional,  desde  que  torcida e transformada.  O que  muda neste caso é  a sua  atitude e  o  rearranjo dos  elementos vivenciados pelo  paciente. Este não é um nome, mas uma vida, cerne da ética. A “garimpagem” dos signos-sintomas acontece no fluir da conversa. Uma atitude empática do psiquiatra amplia-se...Isto implica  na  construção de um campo perceptivo  que não se restringe  à  pessoa, mas ao que  a  precede e lhe determina: o universo. A diferença não é uma coisa, mesmo se a coisa  “valiosa” da visão  humanista. A diferença torna-se. Ela é processo do desejo inscrito nas  ações do paciente, mesmo que  sejam  inadequadas e  bizarras. É um grito. Mas um psiquiatra biológico, em geral,  quer calar ou  afastar o grito. "Nada de grito", diria. Então, o método da diferença, para driblar a necro-psiquiatria e ao mesmo  tempo usar os  fármacos,  é outro, trilha  desconhecida a explorar. Uma traição à psiquiatria. Neste sentido, o percurso do tratamento é incerto. As garantias técnicas se dissolvem. A clínica tradicional desabituou-se a encarar o vazio como resposta aos problemas ditos mentais. Voltamos à perda das referências pontuais e à subjetividade não individuada em papéis demarcados. Quem é o paciente? Quem é o psiquiatra?  A partir de vivências múltiplas, o paciente talvez  não queira ser  normal, mas diferente. Não há o ser-paciente. Não há o ser-psiquiatra.

(...)

A.M. in Trair a psiquiatria

A arte é o que resiste: ela resiste à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha. 

Gilles Deleuze



HELOISA HARIADNE


 

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

CONCEITO DE NECRO-PSIQUIATRIA

É a psiquiatria atual. Ela ocupa a hegemonia nas relações institucionais (mais que a psicologia ou a psicanálise) em saúde mental. Isto quer dizer que 1- Concebe os transtornos mentais como originários do cérebro. Tudo é orgânico. 2- Trata os pacientes apenas com remédios químicos ou mediante técnicas que atuam sobre o organismo físico-químico como, por exemplo, a estimulação magnética transcraniana (EMT) o eletrochoque (ECT), entre outras. 3-Prioriza a internação em hospitais psiquiátricos para as patologias moderadas e graves, desconsiderando o valor dos Caps e de formas de tratamento em liberdade. 4-Estabelece alianças institucionais com a indústria farmacêutica internacional ( e nacional), além das farmácias comerciais, na volúpia pela obtenção de lucros às custas do sofrimento mental. 5-Dissemina-se como modo de ocultar problemas sociais na medida em que vê o mundo apenas sob a ótica psiquiátrica. Tudo é psiquiatrizável! 6- Reduz o conceito de saúde mental ao âmbito da psiquiatria, donde a equação saúde mental=saúde torna-se equivalente a cerebral=saúde psiquiátrica. 7-Adota de forma subliminar o axioma positivista (romântico) da ciência moderna de teor salvacionista para a humanidade. 8- Organiza-se na sociedade civil em associações psiquiátricas, produzindo corporativismos que atendem aos interesses de lucro, prestígio e poder dos seus pares. 9- Na universidade, usa as neurociências como referência de verdade científica rumo a construção de uma clínica psiquiátrica sempre  e cada vez mais farmacologizada. 10-Na relação com os demais técnicos em saúde mental funciona na verticalidade do poder que o psiquiatra outorga a si mesmo como médico da mente.


Obs.: o termo "necro-psiquiatria" foi criado pelo brilhante psiquiatra e psicoterapeuta Manoel Campelo, a quem sou grato.


A.M.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Miles Davis, "Time after time", live in Chicago, 1989

O QUE É A MENTE?  parte 2

1- Na clínica em psicopatologia (ou para além dela) é possível afirmar  que o delírio vem do social. Atribuir ao cérebro a origem do delírio não só é um equívoco etiológico como também um pretexto para que a psiquiatria atual atue como serva da máquina de poder disfarçada de ciência neurobiológica. 

2- A linha (percurso) do delírio do social até a forma de expressão num discurso individual torna-se possível porque a mente é um sistema conceitual aberto; abarca múltiplas realidades, determinações que efetuam uma variação contínua e subjetiva (afetiva).

3-Desse modo, a pesquisa da mente é correlata à pesquisa do delírio; isso porque a questão da verdade está no centro da discussão; qual é a verdade? existe uma verdade única? a mente acredita em delírios?

4-Ora, a mente é o delírio do universo; exposta aos fluxos de signos de toda ordem ( sociais, pessoais, familiares, religiosos, éticos, políticos, históricos, espirituais, etc) a mente é ela própria delirante mesmo que não esteja a delirar; ou que não pareça delirar.

5-Observe: tudo pode estar nos trilhos (uma marcha militar impecável, operários numa linha reta de montagem, servos ajoelhados diante do um chefão impassivel, fiéis num grupo rezando etc) : a depender de uma visão de perspectiva, de uma análise de desejo, tudo isso poderá ser considerado delirante.

6-Eis pois a máquina social que nos dias atuais é a máquina do capital; ela codifica a experiência do universo em prol de um único sistema de valores econômicos e semióticos: o Deus-capital.

7-A linguagem é uma instituição muito antiga. Ela chega de fora e produz a mente; o cérebro não produz a  linguagem: é o inverso; no entanto, ele é condição orgânica (biológica) para a expressão subjetiva:  representa, replica, informa e comunica; mas não pensa.

8-O pensamento, composto de afetos recolhidos do universo, é um pathos ( sensibilidade), ato (veloz) de pensar, prática de corpo, fazedor de mundos, sentido de vida.

9-Só que é muito difícil pensar; normalmente se pensa que pensa; nada, nada, só uma pálida representação do real.

10- Isso porque a máquina do capital, aliada da ciência e da tecnologia (instituições de grande prestígio social), impede a mente de exercer a sua função de pensar: por isso a adoram.


A.M


(texto revisado em 19/02/2024)

sábado, 17 de fevereiro de 2024

A Demora


O amor nos condena: 

demoras 

mesmo quando chegas antes.

Porque não é no tempo que eu te espero.


Espero-te antes de haver vida

e és tu quem faz nascer os dias.


Quando chegas

já não sou senão saudade

e as flores

tombam-me dos braços

para dar cor ao chão em que te ergues.


Perdido o lugar

em que te aguardo,

só me resta água no lábio

para aplacar a tua sede.


Envelhecida a palavra, 

tomo a lua por minha boca

e a noite, já sem voz

se vai despindo em ti.


O teu vestido tomba

e é uma nuvem.

O teu corpo se deita no meu,

um rio se vai aguando até ser mar.


Mia Couto

Zanin suspende decretos em SC que liberavam alunos irem à escola sem vac...

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

A DIFERENÇA EM SAÚDE MENTAL - VIII

Conforme a diferença, o diagnóstico psiquiátrico é funcional e não essencial. Isto significa dizer que a pergunta-chave passa a ser: a quem ou para que serve tal diagnóstico? Ora, a psiquiatria tem ao seu dispor um manancial extensíssimo de diagnósticos, um sistema classificatório de sintomas e comportamentos. Objetivam um controle sobre os corpos e as mentes. Tudo, claro, com respaldo jurídico e institucional.  Por outro lado, a diferença em saúde mental vai na contra-corrente. Não que traga uma verdade pronta para se opor à verdade da psiquiatria. Nada seria mais tosco. Ao contrario, a diferença não usa o conceito de verdade, e sim o de criação. Neste sentido a prática da diferença em psicopatologia se caracteriza pelo ato de experimentar o novo, inventar, arriscar. Adota o critério da ética da potência de viver e da estética dos corpos em relação. Em outros termos, a diferença na psicopatologia é a clinica da diferença: cuidar do outro (e de si mesmo) se traduz numa ética como prática concreta. É que o Encontro com o outro (não só a pessoa do paciente, mas o mundo) expressa um estilo singular de captar signos (mesmo os terríveis, os destrutivos) e transformá-los em arte. A diferença é uma produção de arte. Poucos a suportam.


A.M.

ESPINOSA: o príncipe dos filósofos


 

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

ORAI

O Brasil tem mais igrejas e templos religiosos do que hospitais e escolas juntos, segundo dados do Censo 2022. Uma pesquisa de 2021 do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) trouxe também a informação de que a cada dez estabelecimentos religiosos com CNPJ ativo no país, sete eram de igrejas evangélicas…

(...)

Ranieri Costa, 15/02/2024, 4 :00 hs,para o UOL

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Rehearsal 'Jakie' - Sharon Eyal and Gai Behar (NDT 1 | From Here Now Far)

DEVIR-MULHER

Todo rosto é uma paisagem.  Mulheres povoam o deserto sem oásis. Paixões são deixadas no caminho dos tuaregues. Encontrei passagens  secretas. Me deixei ir. Dormi com as algas. Salguei nas  entranhas. Escorri  com a  chuva.  O tempo  avisou: a hora  nunca chega. É difícil  encontrar uma  mulher anunciando  o vento, arrastando   enseadas. Lá vem ela  em plena  manhã de  sol. Olho seus olhos. Como posso achá-los senão através de uma  “longa preparação”? Me perco em romances e imagens. Protelo encontros cruéis. Essa alegria  tão alegre,   dói.  Onde  achei   mulheres  de  rosto cósmico,  as  expressões  do mal foram  do  bem.  Fui direto às  que  teceram  vidas e   camas  em   espaços  quentes. Adornei  veias com traços heróicos de coxas lisas.  Olhos  graúdos me ensinaram a nadar  na secura  dos  lábios.  Cabelos muito  pretos cheiravam aos perfumes do orvalho. Eles enlaçavam  a alma viajante das intensidades em brechas do desejo.  Pongando no seu corpo, saí a passear  por planícies infinitas. Isso me trouxe a alegria em pequenos potes. Quantas vezes naufragamos? Toda mulher é uma paisagem. Afirma as horas que chegam doadas em películas de ouro. Nada volta. Estou aqui. Um  coração professa  o anti-romantismo disfarçado de suavidades. Uma voz rouca ecoa musical.  Estágio zero. Nunca se ama uma mulher, mas os seus signos enviados. Os nômades, os feiticeiros, os mágicos, os poetas acendem as tardes translúcidas e luzidias da cidade. Tudo arde, tudo treme na busca da anti-cura para o desvario mais selvagem. As mulheres são melhores.


A.M.

A história da mulher é a história da pior tirania que o mundo conheceu: a tirania do mais fraco sobre o mais forte.

Oscar Wilde

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Philip Glass - I'm Going to Make a Cake | The Hours

DIAGNÓSTICOS LUCRATIVOS

A psicopatologia é uma ferramenta importante da psiquiatria clínica.Ou, pelo menos, deveria ser. No entanto, em neurotempos atuais ocorre o inverso. Não se fala e não se pesquisa psicopatologia. Só há transtornos mentais orgânicos, mesmo não sendo, e suas descrições encaixotadas e encaixotantes. A psicopatologia tornou-se a neuromania dos crâneos. Olhe em torno: o vazio epistemológico deixado é preenchido pela vontade de controle da psiquiatria cido-biológica. Tal vontade opera no cadastramento dos desvios de conduta, do mau comportamento social, do irracionalismo do eu-individual e se traduz como diagnóstico-verdade. Em tal contexto, a loucura se alastra por toda parte, não como experiência de abertura a novas semióticas, a novas terras aqui-mesmo, ao novo, mas como esvaziamento do sentido da existência, fim de mundo, apocalipse, noite eterna. Confira a alta cotação das religiões no mercado espiritual do medo. A ideação suicida, o próprio suicídio, ou a auto-flagelação de jovens são apenas faces da angústia inominável do tecido social em decomposição. Uma psiquiatria sem pesquisa psicopatológica não só cauciona o sofrimento psíquico como o produz e dele retira lucro, poder, prestígio, reverência e status social.


A.M.

Militares & Bolsonaro: delírio golpista sendo comprovado pela PF aponta ...

Que sorte têm os atores! Cabe a eles escolher se querem participar de uma tragédia ou de uma comédia, se querem sofrer ou regozijar-se, rir ou derramar lágrimas; isto não acontece na vida real. Quase todos os homens e mulheres são forçados a desempenhar papéis pelos quais não têm a menos propensão. O mundo é um palco, mas os papéis foram mal distribuídos.


Oscar Wilde

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Self Preservation

A DIFERENÇA NA SAÚDE MENTAL 

Para discutir a diferença na saúde mental há uma questão conceitual básica. A "mente" não é o cérebro. Ninguém nunca viu a mente, ninguém nunca pegou, mediu ou pesou a mente. Lidamos com um objeto abstrato, ou seja, com o sem-forma. Para acessá-lo, o método científico da psiquiatria  não só é limitado como muitas vezes se faz nocivo ao paciente. É que em função do lugar de poder que ocupa, o discurso psiquiátrico produz verdades subjetivadas como transtorno mental. Num quadro conceitual que representa a saúde mental como saúde do cérebro, como inserir a diferença? Ora, a diferença concebe a mente enquanto mundo, já que o mundo não tem uma forma única, não tem modelo. Ao contrário e bem mais, o mundo é composto de processos sociais (forças) que se cruzam, se aliam, se destroem, se alimentam, configurando o que chamamos de inconsciente-produção no sentido em que Deleuze-Guattari trabalham. A diferença está imersa no inconsciente. "O inconsciente é órfão, ateu e anarquista". Bem entendido, não o psicanalítico, mas o inconsciente- produção e sem-forma (a mente) que se corporifica em práticas sociais concretas (a clínica). 


A.M.

Vídeo de reunião de Bolsonaro mostra atuação de uma organização criminos...

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

O CORPO INVISÍVEL - II

A existência do corpo invisível nos leva a uma opção ética. Ao contrário da ética idealista que reflete sobre a moral, teoriza sobre a moral, trabalhamos todo o tempo com a ética como linha prática no aumento da força de existir ou na redução desta mesma força. Isso é Spinosa. Neste limiar da ação o pensamento, como força da natureza, faz por dissolver personalidades estanques demasiado humanas em prol de linhas imperceptíveis do espirito. A ética do pensamento, ao contrário do que parece, é uma ética do corpo. E se este espirito é invisível por sua própria natureza, seguindo as "pegadas" de um Deus não hierarquizado, a ética traça linhas de potência misturadas às da impotência. O que irá "dissecar" e triar esse nó de opções  existenciais é a força de um espirito que na falta de uma palavra menos gasta, chama-se Deus. Isso autentica um nivelamento absoluto entre os humanos como força de existir no cruzamento opaco entre as linhas do infinito espaço/tempo. A ética , qualquer que seja ela, está atrelada a esses infinitos, pelo que não há uma ética pura nem tampouco uma ética única e verdadeira que abarque todas as demais. De novo, o corpo-espírito aprofunda-se no pensamento-Deus como o que não tem nome, forma, rosto ou identidade. E ao mesmo tempo está dentro de nós. Pensar (não refletir) é um exercício perigoso porque lida com terremotos da alma, com a loucura, e portanto está na beira de uma linha sem fim chamada Deus. Este não estrutura nem referencia nada, ao contrário, ele é já a Força dos processos de vida que se expressam como fluxo espiritual multiplicado e multiplicante pelos quatro cantos do mundo. Deus está no mundo, Deus é o mundo. Não pensar assim é afundar numa ética do eterno adiamento de uma revolução, a socialista.


A.M.

ORQUÍDEAS ETERNAS

 


segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

O ESTADO E SEUS POLOS

(...) Donde o caráter muito particular da violência de Estado: é difícil assinalar essa violência, uma vez que ela se apresenta como já feita. Não é nem mesmo suficiente dizer que a violência reenvia ao modo de produção.Marx observava  no caso do capitalismo: há uma violência que passa necessariamente pelo Estado, que precede o modo de produção capitalista, que constitui a "acumulação original" e  torna possível esse próprio modo de produção. Se nos instalamos dentro do modo de produção capitalista, é difícil dizer quem rouba e quem é roubado, e mesmo onde está a violência. É que o trabalhador nasce aí objetivamente todo nu e o capitalista "vestido", proprietário independente. O que formou assim o trabalhador e o capitalismo nos escapa, uma vez que já é operante em outros modos de produção. É uma violência que se coloca como já feita, embora ela se refaça todos os dias.

(...)

G. Deleuze e F. Guattari - in Mil Platôs

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

O QUE É A MENTE?  parte 2


1- Na clínica em psicopatologia (ou para além dela) é possível afirmar  que o delírio vem do social. Atribuir ao cérebro a origem do delírio não só é um equívoco etiológico como também um pretexto para que a psiquiatria atual atue como serva da máquina de poder disfarçada de ciência neurobiológica. 

2- A linha (percurso) do delírio do social até a forma de expressão num discurso individual torna-se possível porque a mente é um sistema conceitual aberto; abarca múltiplas realidades, determinações que efetuam uma variação contínua e subjetiva.

3-Desse modo, a pesquisa da mente é correlata à pesquisa do delírio; a questão da verdade está no miolo; mentes que acreditam em delírios?

4-Se a mente é o universo, o delírio também o é; exposta aos fluxos de signos de toda ordem ( sociais, pessoais, familiares, éticos, políticos, históricos, espirituais, etc) a mente é ela própria delirante mesmo que não esteja a delirar.

5-Observe: tudo pode estar nos trilhos ( uma marcha militar impecável, por exemplo) mas a depender de uma análise de perspectiva, isso será delirante.

6-Eis então a máquina do capital; ela codifica a experiência do universo em prol de um único sistema de valores econômicos e semióticos: o Deus-capital.

7-A linguagem vem de fora e produz a mente; o cérebro não produz a  linguagem: é o inverso; no entanto, ele é condição para a expressão subjetiva:  representa, replica, informa e comunica; mas não pensa.

8-O pensamento, composto de afetos recolhidos do universo, é um pathos, ato de pensar, prática de corpo, fazedor de mundos.

9-Só que é muito difícil pensar; normalmente se pensa que pensa; nada, nada, só uma pálida representação do real.

10- Isso porque a máquina do capital, esperta e aliada da ciência e da tecnologia, impede a mente da sua função de pensar: por isso a adoram.


A.M

Insensatez - Tom Jobim

CLÍNICA E TECNOLOGIA DA IMAGEM - IV

Como F. Guattari previu, vivemos tempos esquizofrênicos. Isso faz retirar do conceito de Capitalismo Mundial Integrado (Guattari, 1982) elementos teóricos contingentes e necessários a uma análise institucional. A produção social (econômica) estendeu-se à produção subjetiva (semiótica) como matéria prima, ou, como diz Foucault,  biopoder. A vida passa a ser produzida, e com ela, tudo que parece imitá-la. Antigos códigos sociais (por ex., na Idade Média, o código teológico) cedem lugar à auto-dissolução numa espécie de esquizofrenização generalizada do corpo social (socius). Não há mais eu, mesmo que pareça. Há, sim, um eu voltado às logísticas de manutenção do cotidiano. É possível olhar em torno: o cenário de dissolução do sentido é devastador. Indagações da alma ("estarei vivo?") atracam-se no território do corpo-imagem. Assim, pensar para além da simples cognição da realidade só se torna possível mediante a representação dessa realidade e não com e através dela. A realidade "real", o corpo das intensidade mundanas, cede a sua vez, seu número e seu lugar à teatralidade de um mundo em decomposição. Notícias de toda a parte chegam instantâneas. Registram as  linhas subjetivas do consumidor (orgulhoso) de ordens implícitas. Sem saber, é o desejo encalacrado nas dobras da alma: o capital.


A.M

E, aquele

Que não morou nunca em seus próprios abismos

Nem andou em promiscuidade com os seus fantasmas

Não foi marcado. Não será exposto

Às fraquezas, ao desalento, ao amor, ao poema.


Manoel de Barros