quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

A DIFERENÇA É UMA CLÍNICA

A  análise dos afetos e dos sistemas de crenças substitui o insípido exame mental. Começa  pelo corpo em ação, mesmo que este esteja imóvel. Linhas do corpo não são as do  organismo físico-químico.Os afetos se traduzem em movimentos às vezes imperceptíveis. Preenchem outro corpo, o corpo das intensidades. Os olhos. O paciente é olhado nos olhos. Eles revelam algo do nível  da consciência naquele momento. Ora, o nível da consciência está em contínua mudança, mesmo que tal  fato não  seja  percebido. E geralmente não é, exceto  em situações clínicas “grosseiras” como nos quadros organo-cerebrais.A consciência está sujeita à flutuações. Estas escapam à visão do médico. A análise da consciência é atravessada pelos afetos e suas  expressões. O  corpo visível, enquanto  sujeito e objeto  do pragmatismo  social,  se  apresenta de  imediato. “Ele está pragmático?”, pergunta  nem sempre  formulada, mas sempre pensada. No  cara a cara  psiquiatra-paciente (um antigo dispositivo) a  questão  básica é a  do  poder. Esse dado, tão  discutido por Foucault, tem na proposta de uma clínica  da diferença, o  valor da realidade fabricada  pela  psiquiatria.  Valor relativo  pois  o  paciente  de  fato  necessita   de ajuda  ou  pelo menos  algo  deve  ser  feito em  prol  da vida. Ora, o Encontro  torna-se  uma  sensibilidade não codificada  em manuais de  psiquiatria. Nada  a  propor  senão linhas anormais da existência.A hora do tempo a-temporal se afirma. Um paradoxo. É a temporalidade como matéria irreversível, devir. Esta é a base (o tempo) para se pensar o paciente  como um agenciamento  de forças,  estranho  encontro regido pelo  acaso, mas do qual não há como escapar. O  paciente traduz  um  certo  comportamento. Sob  um  olhar-clichê,  ele  se  constitui  como  comportamento  preso  num regime  de visibilidade. Não mais. Daí a  rigidez do exame  mental clássico  ceder lugar a  uma percepção fina  construida na  prática  com  o outro. Apesar  de  reconhecer a importância da fenomenologia,  aqui  não se trata  dela. Tampouco  se  trata de um espiritualismo travestido de clínica. Buscamos construir um plano não  hierarquizado. As relações de poder compõem esse  plano junto a outras relações num continuum empírico sem forma. Tudo  se passa num  lugar  sem  lugar. Ao  seguir a  trilha   do  inconsciente produtivo em suas expressões  à  luz  do  dia,  o percurso  da  diferença se  defronta com  o ato  de criar.  Ou  seja,  trata-se  de  algo  que  (ainda)  não  existe. Na  verdade,  o ato  de  criar é o  ato  de diferenciar-se.   O formato da  clínica não é o  do psiquiatra atrás de uma mesa defronte  ao  paciente.  Pode ser  qualquer coisa, até mesmo a tradicional,  desde  que  torcida e transformada.  O que  muda neste caso é  a sua  atitude e  o  rearranjo dos  elementos vivenciados pelo  paciente. Este não é um nome, mas uma vida, cerne da ética. A “garimpagem” dos signos-sintomas acontece no fluir da conversa. Uma atitude empática do psiquiatra amplia-se...Isto implica  na  construção de um campo perceptivo  que não se restringe  à  pessoa, mas ao que  a  precede e lhe determina: o universo. A diferença não é uma coisa, mesmo se a coisa  “valiosa” da visão  humanista. A diferença torna-se. Ela é processo do desejo inscrito nas  ações do paciente, mesmo que  sejam  inadequadas e  bizarras. É um grito. Mas um psiquiatra biológico, em geral,  quer calar ou  afastar o grito. "Nada de grito", diria. Então, o método da diferença, para driblar a necro-psiquiatria e ao mesmo  tempo usar os  fármacos,  é outro, trilha  desconhecida a explorar. Uma traição à psiquiatria. Neste sentido, o percurso do tratamento é incerto. As garantias técnicas se dissolvem. A clínica tradicional desabituou-se a encarar o vazio como resposta aos problemas ditos mentais. Voltamos à perda das referências pontuais e à subjetividade não individuada em papéis demarcados. Quem é o paciente? Quem é o psiquiatra?  A partir de vivências múltiplas, o paciente talvez  não queira ser  normal, mas diferente. Não há o ser-paciente. Não há o ser-psiquiatra.

(...)

A.M. in Trair a psiquiatria

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