domingo, 22 de dezembro de 2024

O EXTERMÍNIO DA ALMA - 5

Trata-se da atualização pífia da sociedade moderna, com suas máquinas cerebrais encaixotadas em série. Ora, se a alma é o pensamento, aterra e vegeta no endoplasma dos neurônios apáticos. Trata-se do entorpecimento dos afetos como matéria prima do pensar, mesmo e principalmente o mais abstrato. Se a alma é uma abstração pura,  não se dobra aos valores de troca do mercado. " Não se troca de alma". Todavia, a devastação dos afetos prossegue o empreendimento da morte disfarçado em pessoa, mormente o discurso político de instituições conservadoras:  estado, mercado,  escola, direito, e sobretudo o eu e o organismo. Não importa: a orquestra continua tocando até que a água chegue aos ouvidos serenos. De olhos abertos, o nosso Titanic singra no pesadelo.


A.M. 

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

O homem de bem é um cadáver mal-informado. Não sabe que morreu.

 

Nelson Rodrigues 


terça-feira, 17 de dezembro de 2024

A DIFERENÇA NA PSIQUIATRIA

(...) Um processo subjetivo é múltiplo e segue linhas de vida que se constituem como um sistema de crenças e o desejo como produção. As linhas moleculares  “fervilham” diante dessas  vivências (a crença e o desejo), oscilando entre o endurecimento prático (a  tirania do verbo  “ser”) e o deslizamento prático  longe das  formações estabelecidas (linhas  de fuga). O paciente encontra-se pois, numa encruzilhada de linhas existenciais  inseridas num dado  contexto. Os  quadros  nosológicos  se submetem a esse contexto e não  o contrário. Por  isso, é inútil  o uso da  CID-10 quando se trata de encontrar o paciente. Entre a linha molar e a molecular, a linha  de fuga surge (ou surgiu?) como um processo irreversível. Quem é você? A questão da singularidade do    portador de um transtorno mental  vem à  baila  como o objeto da  intervenção terapêutica, seja qual  for a modalidade  (psicofarmacológica, psicoterápica,etc). A singularidade é o que está em questão. Assim, as linhas que constituem a subjetividade ganham toda a pertinência na medida em que o paciente não é um sujeito egóico, mas uma multiplicidade que se expressa em singularizações. A linha de fuga percorre o Encontro e faz do mesmo uma via de mão dupla. O técnico e o paciente estão envoltos em multiplicidades que ultrapassam o enquadre simples da  clínica enquanto bipessoalidade. A forma-paciente (um rosto visível) cede lugar a mil formas  expressas em mapas a serem explorados. Já que as linhas de fuga são as primeiras, umas  estancam no sedentarismo molar.Outras disparam em direção às intensidades moleculares. O molde diagnóstico se aferra ao molar e passa a operar ao  gosto reducionista. Não é um erro. É uma opção de trabalho tendo em vista certos objetivos do momento, como o de acudir o paciente   num sintoma grave (uma depressão com tentativa  de suicídio, por exemplo).Ocorre  que  as linhas  molares ressoam na forma-técnico, levando-o a se manter fixo em condutas conservadas. A técnica  bem sucedida  remete a um modelo implícito de subjetividade. Quem é  o paciente? O que  é ser  normal? Voltamos ao círculo teórico expresso no paciente cerebralizado. Consertar  o  cérebro a partir  da sua  manipulação  fina é a tarefa em  que a psiquiatra biológica acredita .Como contraditá-la?

(...)

A.M.

domingo, 15 de dezembro de 2024

américa

uma mulher não é um território

mesmo assim

lhe plantam bandeiras

uma mulher não é um souvenir

mesmo assim

lhe colam etiquetas

mais que nuvem

menos que pedra

uma mulher não é uma estrada

não lhe penetre as cavidades

com a fúria

de um minerador hispânico

o ouro que lhe brota da tez

é antes oferenda

que moeda

uma mulher descende do sol

ainda que

forçada à sombra


Luiza Romão

A imprensa brasileira sempre foi canalha. Eu acredito que se a imprensa brasileira fosse um pouco melhor poderia ter uma influência realmente maravilhosa sobre o País. Acho que uma das grandes culpadas das condições do País, mais do que as forças que o dominam politicamente, é nossa imprensa. Repito, apesar de toda a evolução, nossa imprensa é lamentavelmente ruim. E não quero falar da televisão, que já nasceu pusilânime.

Millôr Fernandes

LUGAR DE GOLPISTA É NA CADEIA - EDUARDO BUENO

REALIDADE  DAS FORÇAS

A política é constituida por forças. Forças em relação com forças. Neste sentido, "tudo é política" desde que o elemento humano se faça presente. Em termos macrossociais (grandes conjuntos) e microssociais (pequenos conjuntos), a política funciona como um a priori das relações humanas. As forças se "ocultam" nas formas sociais, muitas delas produtivas e necessárias, digamos, a um "bom viver". É o caso da família, instituição muito antiga que "garante" a continuidade de outras instituições como a do eu, da subjetividade, da sexualidade, entre outras. Um axioma se impõe: toda instituição (cujo combustível é o poder) só funciona em  relação com outras instituições, formando redes de conexões imprevisíveis. Mesmo na composição do organismo humano (o fenótipo) e do corpo invisível (o sem modelo), instituições-força se relacionam muito mais para compor, conectar e não para destruir. Territórios são criados.  Assim, há ambiguidade no cerne do processo institucional. Inexiste "bem "  ou "mal" como essências dadas, mas como usos de afirmação ou negação da vida: processo da natureza sem fim. Dissecar esse entrelaçamento de linhas não é fácil e por vezes impossível. No fim, tudo conduz à ação politica segundo análises das forças em jogo. Desde um conflito entre estados nacionais até uma separação conjugal litigiosa, as forças são essencialmente fluidas à serviço de interpretações descoladas (ou não) do real conforme  interesses de toda ordem. Podemos chamar tal processo de micropolítico, mesmo que. por exemplo, seja uma crise do Estado de direito. A geopolítica. Eis o quantum desejante que move os corpos nas relações entre si. A moral comparece, mesmo que se a negue, principalmente por isso.


 A.M.

Persona (Ingmar Bergman, 1966)

O QUE PODE A ALMA?

Parece que a mente humana funciona por seleção e exclusão. Faz sentido pensar assim na vida prática, porque depois de virar à esquerda não podemos virar à direita; ou seja, ao escolher o caminho A, o caminho B fica automaticamente excluído. Fazemos escolhas diariamente, isso é natural e necessário, o problema começa quando, seguindo este raciocínio, precisamos escolher sobre o que pensar e o que não pensar.

Foi Deleuze quem transformou a afirmação espinosista em uma pergunta: afinal o que pode o corpo? Esta questão ficou famosa. Muitos tagarelam sobre a mente, dizia Espinosa, e parece que se esquecem do corpo. Deleuze levou ao limite esta afirmação e se esforçou para excluir do corpo todas as fórmulas tradicionais da filosofia. Desde então, muito se tagarelou sobre o corpo também! E a pergunta contrária de repente ficou proibida, ninguém ousava questionar: afinal, o que pode a alma? Esta curiosidade soava barroca, ou melhor, cristã. Certamente o pensador holandês, tão equilibrado em suas deliberações, jamais nos proibiria de fazer esta outra pergunta. Afinal, o problema não é sobre o que se pode ou não se pode falar. O que nos interessa é se podemos ou não podemos pensar bem uma questão.

Todos conhecem a parábola de Deus formando o homem do pó da terra e lhe soprando nas narinas o fôlego da vida. Esta é provavelmente uma das primeiras afirmações psicológicas da história do pensamento ocidental: o ser humano ganhando vida através da intervenção divina. este mito exacerba nossa concepção da separação entre alma e corpo. E pior, se a alma é presente divino e transcendente, então o corpo só pode nos parecer decaído, pecador. Estas interpretações ganharam força na tradição religiosa e invadiram vários aspectos da cultura e da filosofia, mas é preciso cuidado, estas histórias antigas não podem ser interpretadas com as ideias que temos hoje.

Imagina-se que o gênesis tenha sido escrito no século V a.C. Nesta época, andava pelas ruas da Mileto, na grécia, um antigo pensador pré-socrático chamado Anaxímenes, discípulo de Tales. Ele dizia algo muito parecido: uma força primordial (arché) carrega todas as coisas e por ela nos sentimos levantados, transportados, arrastados, conduzidos. Algo nos atravessa, como o vento que levanta uma folha e a faz dançar. A existência, como um todo, é uma lenta respiração que tudo invade; um eterno inspirar e expirar… um contrair-se e dispersar-se. Ou seja, a divindade aqui não aparece como uma entidade superior e punitiva, ela é o próprio soprar da existência, contínuo e infindável.

O ar é alma do mundo, é o que dá vida e movimento a ele. O ar atravessa o mundo da mesma maneira que um ser vivo a respirar. Trata-se de um pensamento hilozoísta, palavra que tem origem no grega: hyle que significa matéria e zoe que significa vida. Mas a vida aqui não é pensada no sentido estritamente biológico que estamos acostumados, porque os deuses e mesmo a natureza também são esta força. Sendo assim, trata-se muito mais de um impulso vivo que atravessa a matéria até onde consegue. Poderíamos chamar, como Bergson o fez, de Elã Vital. Seja qual for a palavra, o cosmos se mantém por um sopro de ar que o atravessa.

Às vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido” – Alberto Caeiro

Pois bem, é deste ar que estamos falando. A natureza é este sopro que se espalha em todas as direções, ela é um impulso de propagação que ao mesmo tempo mantém as várias partes deste impulso unidas. Pensemos por exemplo no nosso corpo, esta coleção de átomos, moléculas, proteínas, organelas, células, tecidos, órgãos. Como isso tudo funciona? Muitos biólogos diriam que o corpo funciona como um relógio, e quando uma peça quebra, ele se desregula e pode até parar de funcionar se um médico qualificado não atuar. Claro, este raciocínio é válido quando quebramos o braço ou algo parecido, mas nós sentimos bem fundo no peito que a vida é mais do que uma relação ajustada de peças.

Existe alguma coisa que atravessa todo esse conjunto, uma energia, alguns diriam, como o choque que o Dr. Frankestein descarregou em sua criatura feita de várias partes diferentes de corpos humanos. O que é essa força que dá vida? O que faz um corpo vivo ser diferente de um corpo morto? Neste caso, diríamos que o conjunto é maior que a soma das partes. Para onde segue esta força e o que quer de nós? Estas são as perguntas que nos fazem pensar sobre a alma.

No limite, poderíamos dizer: não amamos corpos, amamos almas, o que nos interessa é a força que atravessa um corpo e dá vida a ele. Tanto faz o nome, pode ser psiquê, mente, alma, espírito. Nos perguntamos o que é isso que faz um cadáver ser diferente de um ser vivo. Ao longo do desenvolvimento das ciências médicas, nos tornamos muito bons em falar do corpo, mas aos poucos parece que perdemos a relação com a vida em seu sentido mais filosófico.

Qual o valor da alma? Uma resposta inicial é possível: um boneco empoeirado encostado no canto do sotão não fala e não nos faz rir. Basta o Ventríloco segurá-lo em seu colo que ele começa a se mover e brincar com todos os presentes. A vida é uma força de interação, de criação; no seu ato de afirmar-se ela cria caminhos novos. O que pode a alma? Diríamos que ela é a emanação mais potente dos corpos.

Uma síntese pode ser feita, pensando numa trégua com os deleuzianos mais aguerridos. Reformulemos a pergunta: o que pode o corpo vivo? Ora, pode expressar a essência de um mundo afirmativo e criador. A alma é o corpo levado aos seus limites, e queremos saber até onde pode ir. Como o vento levanta a folha, nós também somos um sopro, apenas um suspiro, uma brisa efêmera, mas tudo isso importa, e muito.


Rafael Trindade, do site Razão Inadequada, acessado em 15/12/2024



sábado, 14 de dezembro de 2024

Vanishing Twin - Jiří Kylián (NDT 1 | Sometimes, I wonder)

Uma coisa branca,

Eis o meu desejo.


Uma coisa branca

De carne, de luz,


Talvez uma pedra,

Talvez uma testa,


Uma coisa branca.

Doce e profunda,


Nesta noite funda,

Fria e sem Deus.


Uma coisa branca,

Eis o meu desejo,


Que eu quero beijar,

Que eu quero abraçar,


Urna coisa branca

Para me encostar


E afundar o rosto.

Talvez um seio,


Talvez um ventre,

Talvez um braço,


Onde repousar.

Eis o meu desejo,


Uma coisa branca

Bem junto de mim,


Para me sumir,

Para me esquecer,


Nesta noite funda,

Fria e sem Deus.



Dante Milano

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Travessia da sexualidade

O SENTIDO DAS DEPRESSÕES

As depressões atuais se espalham num amplo espectro de acontecimentos, onde a etiologia (causa) e o quadro clínico (sintomas) são múltiplos. Desse modo, é essencial para uma clínica da diferença em psiquiatria não considerar as depressões no sentido biomédico. Dupla traição: trair a psiquiatria como especialidade médica e à psiquiatria como instituição (forma social). As depressões não são, pois, uma doença do cérebro, mesmo que este se mostre alterado em seu funcionamento. Ora, qualquer afeto produz efeitos sobre o cérebro, mesmo e principalmente  um "bom" afeto, por exemplo, a alegria. Ela embriaga. Assim, na análise semiológica do Encontro com o paciente, as perguntas devem partir do mundo para o eu, e não o contrário. De onde você veio, onde você vive, com quem vive, como vive, trabalha, como trabalha, em que acredita, amores, quais seus amores, etc. São linhas existenciais que mapeiam singularidades. Sim, talvez haja necessidade de um anti-depressivo...e se houver, será na contextualização de um tempo desejante. Pena que as cronificações depressivas circulem e se mostrem cada vez mais explícitas. No entanto, como poderia ser diferente se a própria psiquiatria anda deprimida? Sinapses esgotadas...  neurônios aflitos... angústia... A alma em colapso.


A.M.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Erroll Garner - Laura

COMO  RECONHECER  O  NEOFASCISMO


Há 102 anos (Itália, 1922)  nascia o fascismo de Mussolini.Ao seguir na história, esse movimento político inspirou outros regimes (Alemanha, Portugal, Espanha, etc) tornando-se referência até para a dita esquerda. No entanto, à medida em que a sociedade industrial avança, e com ela a tecnologia da imagem, o fascismo se fez diferenciar do totalitarismo. Para obter a dominação e o controle de milhões, formas sociais (instituições) passaram a utilizar métodos com micro-efeitos nas populações, no que Félix Guattari chama de microfascismo. Sem esse dispositivo de “persuasão mental” o controle dos corpos e mentes se revelaria ineficaz. O fascismo tornou-se microfascismo. Dominar de modo explícito cedeu lugar ao controle sobre sujeitos sem que estes saibam que estão sendo controlados e mais, gostem de ser controlados. Óbvio que dominar “por dentro” sempre existiu, ainda que pelo terror induzido na mente dos supliciados. Mas falamos de outra coisa. 102 anos de fascismo foram suficientes para a produção em série (escala planetária) de pessoas humanas que adotam e adoram o capital com ponto hegemônico de subjetivação e desejam isso não só para si, mas para todos, ou seja, para o restante da população mundial. Um processo “natural” é induzido por agências de controle, mormente os Estados nacionais e o grande sistema financeiro e internético com suas mídias afiadas como serviços num plantão ad aeternum. É difícil identificá-lo no coração das pessoas de bem. Se este sentimento de “viva a morte” se instaura e age à revelia do seu portador, a impossibilidade de auto-crítica surge como pressuposto subjetivo. “Que eu morra, mas que permaneçam os valores em que acredito”. Tal foi o refrão macabro do cidadão comum para, por exemplo, para apoiar o governo federal brasileiro de 2018 a 2022. O mito é um desejo funéreo. Trata-se de uma linha suicidária que passa a ser o dado natural da vida. Morrer pela pátria equivale a morrer pela família, pela escola, pela religião, por Deus, por todas as formas sociais, enfim, de transcendências ( o além da vida).  Isso credita e legitima a existência da sociedade regida pelo capital,  não só como categoria de lucro econômico, mas como  fábrica de imagens para um gozo paranóico. O fascista é um paranóico. Este sentimento se interiorizou a um ponto tal que até parece ter deixado de existir, mas existindo mais do que nunca: teorias da conspiração tamponam o buraco do sentido. Estaremos num universo linguístico de redundâncias e paradoxos? Na linha de montagem da subjetividade capitalística, surge, então, como irreal, delirante, impossível e inconcebível, o parto (uma revolução?) de um outro mundo no interior deste. Pensar assim se tornou obsceno.


A.M.

ISSO NÃO PÁRA

dentadura perfeita, ouve-me bem:

não chegarás a lugar algum.

são tomates e cebolas que nos sustentam,

e ervilhas e cenouras, dentadura perfeita.

ah, sim, shakespeare é muito bom,

mas e beterrabas, chicória e agrião?

e arroz, couve e feijão?

dentinhos lindos, o boi que comes

ontem pastava no campo. e te queixaste

que a carne estava dura demais.

dura demais é a vida, dentadura perfeita.

mas come, come tudo que puderes,

e esquece este papo,

e me enfia os talheres.


Angélica Freitas

AS LINHAS

E, depois, há linhas, uma vez mais, de um outro tipo: linhas de fuga. As linhas que criamos, e sobre as quais nós criamos. Às vezes, nós nos dizemos: mas elas estão como que encalhadas, elas estão como que bloqueadas. Às vezes, elas se desvencilham, elas passam por verdadeiros buracos, elas se destacam. Às vezes, elas estão perdidas … Os outros dois tipos de linhas as engoliram. E, depois, elas podem sempre ser retomadas. O que é esse terceiro tipo de linha? Se dizemos: fazer uma esquizoanálise de alguém. Isso seria chegar a determinar essas linhas, e os processos dessas linhas. Ora, para responder, enfim, à questão, uma coisa muito simples: chamemos “esquizofrenia” o traçado de linhas de fuga. E esse traçado de linhas de fuga é estritamente coextensivo ao campo histórico-mundial. Eu, pequeno burguês francês que não saí do meu país; o que eu deliro, ainda uma vez? Eu deliro a África e a Ásia, à guisa de vingança. E, por quê? Pois é isso o delírio… E não é preciso ser louco para delirar.

Então, se chamo isso de processo: é esse fluxo que me carrega pelo campo histórico-social a partir de vetores. Chamemos isso de viagem, à maneira de Laing e Cooper. Não vejo nisso um inconveniente, pois, com efeito, posso, também, muito bem delirar a pré-história, posso muito bem ter algo a tratar com a pré-história. De toda maneira, é isso que deliramos. Então, o que se passa? Eu digo que cada tipo de linha tem seus perigos. Eu creio que o perigo próprio à linha de fuga, a essas linhas de delírio, é qual? É, com efeito, uma espécie de verdadeiro desmoronamento. O que é um desmoronamento? E, bom, o perigo próprio às linhas de fuga – e é fundamental, é o mais terrível perigo – é que a linha de fuga se torne uma linha de abolição, de destruição. Que a linha de fuga que, normalmente, e enquanto processo, é uma linha de vida, e que deve traçar como que novos caminhos de vida, se torne uma pura linha de morte. E, finalmente, há sempre essa possibilidade. Há sempre a possibilidade de que a linha de fuga cesse de ser uma linha de criação e gire em círculos, como que se pondo a girar sobre si mesma, e desmoronando naquilo que chamamos um ano de “buraco negro”. Ou seja, tornando-se uma linha de destruição pura e simples. E é isso que, a meu ver, explica um certo número de coisas. Isso explica, por exemplo, a produção esquizofrênica enquanto entidade clínica, a esquizofrenia enquanto doença. E creio que o esquizofrênico é fundamentalmente e profundamente doente. É aquele que “apreendido” pelo processo, carregado por seu processo, por um processo… não aguenta o golpe. Ele não resiste ao golpe. É duro demais … É duro demais.

(...)

Trecho de aula - G. Deleuze, "O anti-édipo e outras reflexões, Vincennes, maio de de 1980

sábado, 7 de dezembro de 2024

Xeque-mate


Quando menos se espera, já são horas.

A dama de espadas perde o gume

e o pássaro pousado vai embora. 


Quando menos se espera, o que se anuncia

não é a sorte grande, a estrela Aldebarã

ou a sagração da primavera.

São tempos de abutre

e o coração, músculo bélico, fraqueja. 


De repente, já é sábado,

há uns assuntos desagradáveis para resolver

e, sobre a pele confusa da alma,

uma densa crosta de óxido e desalento.


Quando menos se espera, o rei está em xeque,

e é dezembro.

Há uma complicação de trânsito

na avenida

uma artéria que não dá passagem.

Quando menos se espera, já é tarde.



Carlos Machado

Daniel Castro - I'll Play The Blues For You

A TRAPAÇA ESPIRITUAL

A chamada "espiritualidade" é, hoje, concebida e tratada como entidade, coisa. Tal é o efeito devastador do modo de reificação (coisificação) inscrito no circuito de "produção-consumo-produção"capitalístico. Fala-se de espiritualidade como se alguém a possuísse:  mais espiritualidade (bondade?) ou menos espiritualidade: um atributo, uma propriedade, um objeto-virtude a ser cultivado. Não pensamos assim: a espiritualidade não existe. Só existe o corpo, não o organismo fabricado pela medicina e agências conexas (estado, família, direito, escola...), mas o corpo que nos é tomado e formatado como corpo-organismo, trabalhador, responsável e normal. Ele, o corpo-desejo, está à espreita. O investimento sócio-religioso na espiritualidade cumpre, assim, a função de tamponar a potência do corpo, esvaziá-lo da força de criar a si mesmo e ao mundo. Quando alguém fala em melhorar a sua espiritualidade (muitos falam) exala um cheiro inconfundível de conformismo social. No entanto, esse dado é difícil de constatar ou de contestar de tal modo vem expresso em boas intenções cristãs. 


A.M.