sexta-feira, 22 de novembro de 2019

ÉTICA E CLÍNICA


A  psiquiatria oficial chama o  seu  paciente de  “portador de  transtorno mental”. Nem  sempre explícito,  tal enunciado está na bíblia  dos diagnósticos, a  CID-10. A expressão “mental”  é usada de modo naturalizado, ou seja, todo mundo  sabe  o que é “mental”. A  metonímia “ele  é  um mental”expõe o nervo do estigma.Contudo, no encontro com a loucura, acontece outra  coisa: a mente desaparece como substância ou como algo palpável.Dilui-se num vazio sem  forma.Encontrar o  paciente seria possível? Sim, na medida em que se adentre ao acaso, ao  indeterminado e ao desconhecido.Esta é a condição. Como, então,trabalhar a clínica? A experiência da prática mostra que ela  só existe como abertura ao mundo, ou mais ainda como fazedora de mundos. Por  outro  lado, a  ética – essência da clínica - sustenta-se  na alegria.  É  a  força maior. “O regime da alegria é  o do tudo  ou  nada: não  há senão alegria total  ou nula” (C.Rosset). A clínica da  diferença busca, então, atuar em linhas existenciais desprezadas pela razão. Lida com o incurável, o imprestável e com discursos submetidos às formações de poder.  Requer um desejo não apoiado na realidade objetiva pois o desejo é a própria realidade objetiva. No  universo sedutor-violento do capital, a aposta num trabalho com pacientes graves capta o ritmo das canções sem dono. Tudo é impessoal e  coletivo. O caps  torna-se, então, a procura  de saídas não cadastradas pela psiquiatria canônica. A ótica da diferença é a do novo. A ética  precede a técnica. Legiões de psiquiatrizados de toda parte ajoelham-se no altar dos psicofármacos e dos cérebros à mão. Tudo conspira a favor do consumo de pacotes cientificamente autorizados para ações lucrativas.No entanto, mesmo desbotada e segregada nos grilhões cidológicos , a diferença resiste. A ética da potência  de viver afirma-se como ética  de poetas itinerantes.O discurso e a prática da diferença exploram o avesso da ordem do  universo capitalista. Quem se  interessa  em criar,  fazer nascer?  Pergunta talvez insana na  medida em que os poderes investem na repetição do Mesmo e  no  rigor  mortis  do pensamento. Por isso, a prática da diferença considera as determinações micro-sócio-políticas como a superfície da ação mais concreta. O ato clínico. Em suas pesquisas, não encontra respostas  exatas, mas problemáticas abertas. Se a loucura é a experiência que atravessa a subjetividade, (mesmo que não estejamos loucos, podemos entrar num devir-loucura), tudo muda na  percepção fina da realidade da saúde mental .Um novo universo se desvela.
(...)


A.M.



Obs.- texto republicado

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