PODE ENTRAR QUE A CASA É SUA
para Klecia e Lício, companheiros de visita
Na visita à Residência Terapêutica, alguém me chama a atenção. Trata-se de Renato (nome fictício). Ele tem 32 anos, alto, forte, fascies enigmático, corpo na terra suspenso no espaço. É que, ao mesmo tempo ele circula pelos espaços curvos dos cômodos da casa, pronuncia frases soltas, busca um destino onde já nem mais há destino. Aqui e ali expressa risos focais (a psiquiatria canônica chama isso de "risos imotivados") como se ele visse algo engraçado onde ninguém vê. Renato convive com cuidadores e outros pacientes e suas ações e reações trazem algo dos afetos desinteressados pelo aqui-agora e até por você enquanto pessoa que se acha importante. Intenso ele: parece viajar por mundos não sonhados sequer por ele próprio. Parece não portar um eu. Renato se deixa capturar por fluxos do real cotidiano (uma residência) que o lançam para limiares afetivos insólitos e desgarrados da realidade mais comezinha. Muito estranho esse rapaz! Seu olhar não se fixa a um objeto único, ao contrário, viaja dentro dele, no interior de si num brilho de eternidade que traz a sensação do próprio non sense compor o ar da Residência. Um céu impassivel pode fazer uma chuva forte, uma tempestade, ou um dia de sol luminoso e festivo, tanto faz. Tudo lhe é indiferente e ao mesmo tempo seu corpo liso compõe o ritmo do andar em círculos numa fala desconcertante. Aí é onde a sintaxe discursiva exibe padrões de construção bizarros. A semãntica segue-lhe os passos e os gestos (caretas) tornam-se desconectados à ordem das regras sociais. Compreendê-lo requer a tarefa prática de adentrar num devir-loucura sem ficar louco. Renato não pára. Seu pensamento alça um vôo cego. No olhar e no movimento do corpo fragmentado ele flui um desejo sem pouso. Processo abortado. É um movimento quase imóvel à espera de um tempo que passa e não passa. Lá fora a cidade arrota princípios de verdade e ergue sem qualquer pudor suas garras naturais, suas violências delicadas. Mas Renato não está nem aí para todo esse caos de sentido já que ele é o próprio sentido fabricado por agências manicomiais seculares da saúde mental oficial. Daqui do meu canto, contemplo Renato imerso num vazio brutal da existência, mas sem melancolia. Ele saiu dos trilhos de uma razão cultural travestida de razão médica, ou pior, de razão cerebral. Regresso da visita com o corpo crivado de projéteis idealizados no fundo sem fundo do pesadelo da história humana. E me pergunto: por que tudo isso? como foi possível?
A.M.
Por que tudo isso? Como foi possível?
ResponderExcluirNão descartando a "fabricação" da loucura, há coisas que a razão nunca alcançará. Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia... William Shakespeare