SEM CORPO, SEM AFETO
A psiquiatria produz o corpo-organismo, tomando-o como base da propedêutica clínica: o que fazer com (do) o paciente ? Este organismo tem uma forma que lhe autentica a “natureza” do humano, algo que interage com o mundo fabricando a chamada subjetividade. A inscrição do mecanicismo no funcionamento do organismo é estabelecida pelas relações entre os sistemas (renal, endócrino, nervoso, cárdio-circulatório, etc) que supostamente “antecedem” a realidade do mundo. Portanto, quando em psiquiatria se fala em desejo é em nome de sentimentos humanos que constituem o “estar vivo”. A equação sentimento=alma=espírito é dada como natural, ultrapassando a animalidade em prol de uma espécie de divinização do humano através da instituição da Consciência. “Só o homem tem uma alma”. Desse modo, o que se chama “organismo” é automaticamente ligado à “consciência” como lugar da verdade. Tal percurso conceitual (invisível, pois está encravado em práticas institucionais) une a ausência de corpo à ausência de desejo. Uma psiquiatria sem corpo e sem desejo é possível? Como isso funciona? A psiquiatria funciona não funcionando. Tal paradoxo operacional compreende alianças institucionais poderosas. Citemos 5: a família, a escola, o direito, o estado e a polícia. Há outras... Usamo-las como referência à produção de um organismo-verdade ajustado aos funcionamentos de manutenção fisiológica e bioquímica que lhe dizem respeito. “Não funcionar” significa estar sem corpo e sem afeto e ao mesmo tempo produzir organismos centrados na consciência. O filho, o aluno, o réu, o cidadão e o bandido (respectivos ás instituições nomeadas acima) oferecem um organismo e uma consciência como suportes de verdade à psiquiatria esvaziada de conceitos, mas prenhe de poderes. É que ela se insinua e se inscreve num campo social capturado pelo capital semiótico hegemônico (significância) e só funciona graças a esses suportes (territórios) expressos no visível (organismo) e no dizível (consciência). Buscamos outra coisa: criar síndromes psiquiátricas a partir da razão clínica mais direta: um estado selvagem ao olhar ético-estético. Uma psiquiatria da diferença ou a diferença na psiquiatria. Quem topa?
A.M.