domingo, 28 de fevereiro de 2021

MEDICALIZAÇÃO: A MAIS-VALIA DA DOR

O conceito de medicalização da sociedade é tributário do capitalismo industrial avançado. Possui um alcance planetário, na medida em que a tecnologia médica, sustentada pela idéia de progresso, avança como oferta de produtos a serem consumidos em meio ao estilo de vida contemporâneo. Tal estilo tem como base a produção subjetiva correlata à produção econômica. Ou seja, cada vez mais inexistem divisões entre os vários setores da vida social, fazendo desta uma mera extensão dos processos do capital (sempre mais lucro), no caso médico uma semiologia do organismo doente adaptada às necessidades de controle propedêutico via equipamentos de saúde. Daí as soluções de problemas sociais se afiguram através o uso da terapêutica médica precedida pelo diagnóstico cada vez mais estabelecido por imagens (exemplo da ultra-sonografia). A medicalização não é, pois, um fenômeno médico, pelo menos na sua origem, mas um produto do funcionamento científico das relações capitalísticas, totalizadas na figura subjetiva do consumidor-padrão. A medicina segue e “obedece” ao processo histórico-social porque ela mesma é uma forma social no sentido de uma instituição poderosa que emplaca um discurso humanitário às custas da produção-consumo de pacientes. Medicalizar é, pois, um ato político antes de ser técnico.


A.M.

sábado, 27 de fevereiro de 2021

 quando minha veia poética

 estourou ela virou pra mim

 e disse "deixa sangrar"


  Nicolas Behr




O CONHECIMENTO DEIFICADO

O aparelho universitário, onde, talvez, fosse (ou devesse) ser o lugar do Pensamento, na verdade, é bem mais uma peça pregada no coração dos súditos orgulhosos do capital. Professores e pesquisadores: Eles pensam que pensam, mas não pensam. Somente reproduzem ordens implícitas. Esta é a função da conserva. Mestres, doutores, pós-doutores, toda a galera arrogante dos condutores do "pensamento do real", adotam a estratégia do refúgio controlado aos fluxos do acaso e às intempéries do capitalismo aparentemente vencedor. Todos, ou quase todos, se protegem. Normal.  É claro que é preciso salvar a própria pele e se dar bem. Sobreviver, enfim. O custo são as tetas dadivosas do Estado, sempre interessado em prover e promover justificativas honestas (financeiramente à altura) ao bem do cidadão. Mas se o Estado é o monstro, como diz Nietzsche, tal disparidade de poderes torna possível usar a camuflagem como expressão de uma vida sem guerra, mas de puro combate. Nas trevas.

A.M.

TAMBÉM JÁ FUI BRASILEIRO


Eu também já fui brasileiro

moreno como vocês.

Ponteei viola, guiei forde

e aprendi na mesa dos bares

que o nacionalismo é uma virtude.

Mas há uma hora em que os bares se fecham

e todas as virtudes se negam.


Eu também já fui poeta.

Bastava olhar para mulher,

pensava logo nas estrelas

e outros substantivos celestes.

Mas eram tantas, o céu tamanho,

minha poesia perturbou-se.


Eu também já tive meu ritmo.

Fazia isso, dizia aquilo.

E meus amigos me queriam,

meus inimigos me odiavam.

Eu irônico deslizava

satisfeito de ter meu ritmo.

Mas acabei confundindo tudo.

Hoje não deslizo mais não,

não sou irônico mais não,

não tenho ritmo mais não.


Carlos Drummond de Andrade

Maria Bethânia - Cântico Negro (1982)

O CORPO INTENSIVO

As singularizações são a materialidade subjetiva do individuo, a qual compreende elementos  visíveis e invisíveis; ela sempre  acontece  no plural. Linhas singulares funcionando  num movimento incessante. O organismo visível fornece o lastro concreto para uma subjetividade. Contudo, ele é composto por partes infinitamente divisíveis as quais chamamos corpo. O organismo  não é o corpo. Este ultrapassa os  limites do organismo  de  onde a medicina extrai a sua mais-valia de prestígio. As linhas singulares inscrevem-se num corpo não  imediatamente visível nem tampouco separado do meio por uma linha de fronteira bem demarcada. Elas são antes de tudo micropotências que  impulsionam o funcionamento motor, cognitivo, intelectual, existencial, enfim, tudo que signifique produção incessante de vida. O paciente é composto por elas e são elas que se expressam como  devires. Estes são o conteúdo do desejo.

(...)

A.M.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

ESPIRAL


A noite é um morcego manso

sobrevoando uma cidade quase adormecida,

tomando cada rua, cada casa,


como um cheiro adocicado de fruta

quase apodrecida que penetrasse uma casa,

ganhasse cada quarto, cada sala,


como cheiro morno de coisa morta

ainda há pouco se espalhando

por uma cidade quase entorpecida,


como uma noite que descesse sobre casas

mortas, como uma peste,

como se nunca houvesse havido dia.


A noite é um morcego morto.


Paulo Henriques Britto

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Cronicamente inviável

O QUE É UM ENCONTRO?

Um Encontro é composto e enriquecido por signos. De parte a parte os amantes do encontro se ligam mediante a emissão de signos nem sempre explícitos, nem sempre visíveis. Pois o amor, antes que um substantivo, bem mais que um objeto, nunca um adjetivo, é um acontecimento, o acontecimento amar. Seguimos, pois, um Deleuze proustiano ao situar o Encontro como tecido e urdido na trama secreta das relações em curso e em jogo a cada momento. A eternidade num segundo! Toda mulher é uma paisagem (há mundos desconhecidos a serem explorados), todo Encontro é um devir (há sempre sempre mais e mais desejo), como diria o pensador da diferença. Desse modo, falar de signos é o mesmo que afirmar a concepção relacional do Encontro, não entre duas pessoas, mas entre multiplicidades, usando-se aqui toda a potência de "um sim à vida" que o conceito deleuziano nos traz. Como uma criança brincando, como uma criança... deslizando pelas superfícies do mundo. 


A.M.

domingo, 21 de fevereiro de 2021

EMIL NOLDE


 

ESPIRITUAL COMO SAÍDA

Em tempos de capitalismo aparentemente vencedor, o apelo a um suposto mundo "espiritual" torna-se um efeito-subjetivo quase inevitável, invencível. Configura almas bem intencionadas. O já conhecido escapismo platônico-cristão retorna com tudo e instiga doutrinas etéreas e práticas sociais, algumas assistencialistas, outras meros objetos de uma retórica oca. Não importa. É preciso tornar a realidade suportável, e enquanto tal fabricar um sentido para a existência, ainda que esse sentido esteja para além da vida. Este é o mote e o mantra que balizam o caminho da verdade nos dias que correm. As esquerdas (sempre elas...) originalmente interessadas em mudar o mundo, são trespassadas por um niilismo sorrateiro e convincente através da simples observação do caos social. A forma-Religião entope o sujeito com o seu cortejo de culpa e ressentimento.Para completar, uma ideia de progresso (científico?) e salvação (cristã?) vem na esteira de tais processos de subjetivação. As igrejas se multiplicam. Secretam uma espécie de droga da sensibilidade. Fream e mortificam o desejo. Assim, o domínio da chamada espiritualidade se amplia muitíssimo, ao ponto de se poder dizer e sentir que ela fica como a única saída - ainda que ilusória - contra a destrutividade que assola o planeta azul. 


A.M.

sábado, 20 de fevereiro de 2021

NINGUÉM ESTÁ VENDO


Queria ser outra pessoa,


queria outro nome


e uma vida normal.


A frase acima não é minha,


é de um amigo que realmente


queria ser outra pessoa.


Eu já sou outra pessoa,


mas isso não ajuda muito.


Ele quer ser outra pessoa


sendo ele mesmo,


e não ser outra pessoa


sendo eu (e eu já sou


uma outra pessoa).


Tudo isso é muito confuso


para mim, que sigo respondendo


e-mails pela manhã


e cozinhando brócolis com arroz


para o jantar.


Sou um cara tranquilo


e queria que meu amigo


também fosse,


mas o que ele quer


é ser outra pessoa


sendo ele mesmo,


enquanto eu,


preso em mim,


não posso ajudar muito.


É mais ou menos isso.


Bruno Brum

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

QUEM É O BORDER - 1

O border é a abreviatura do diagnóstico "transtorno de personalidade tipo borderline" que consta da Classificação Internacional de Doenças nº 10. Está no capítulo da psiquiatria e é a partir desse dispositivo de poder que se estabelece o enunciado "trata-se de um border". Ele vem precedido pelo termo "personalidade", estando implícito o que é "uma personalidade". Apesar disso, nos compêndios de psiquiatria não há uma definição clara de tal conceito nem sequer um esboço que direcione a semiologia clínica. É uma máscara: a "personalidade" como objeto de centenas de teorias no campo psi, não chega à psiquiatria. Um exemplo simples: a psicanálise e seus desdobramentos edipianos. É que a psiquiatria vive de sinapses. Assim, um macro-sistema classificatório, aliado a uma ignorância conceitual instituída como saber médico, garantem a ferramenta repressiva (maquiada como ciência) de um modo de subjetivação na linha de fronteira da loucura/normalidade. Isso desemboca na questão técnica. O border é multi-sintomático e talvez por isso assombre a ordem psiquiátrica. O que fazer diante de um? Que remédios usar? Do que se trata? O que se passa? Uma perplexidade. Cá entre nós, sabe-se de um manicômio que recusa o atendimento/internação do border em nome da assepsia biomédica e sua aliada histórica, a enfermagem.Voltaremos ao tema.


A.M.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

A vida é uma ferida?

O coração lateja?

O sangue é uma parede cega?

E se tudo, de repente?


Eduardo Pitta

O QUE PODE UM CORPO?

A chamada "espiritualidade" é, hoje, concebida e tratada como entidade, coisa. Tal é o efeito devastador do modo de reificação (coisificação) inscrito no circuito de "produção-consumo-produção"capitalístico. Fala-se de espiritualidade como se alguém a possuísse:  mais espiritualidade (bondade?) ou menos espiritualidade: um atributo, uma propriedade, um objeto-virtude a ser cultivado. Não pensamos assim: a espiritualidade não existe. Só existe o corpo, não o organismo fabricado pela medicina e agências conexas (estado, família, direito, escola...), mas o corpo que nos é tomado e formatado como corpo-organismo, trabalhador, responsável e normal. Ele, o corpo-desejo, está à espreita. O investimento sócio-religioso na espiritualidade cumpre, assim, a função de tamponar a potência do corpo, esvaziá-lo da força de criar a si mesmo e ao mundo. Quando alguém fala em melhorar a sua espiritualidade (muitos falam) exala um cheiro inconfundível de conformismo social. No entanto, esse dado é difícil de constatar ou de contestar, de tal modo vem expresso em boas intenções cristãs. 


A.M.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Rugido


há quem chame melancolia

o rugido tardio das pedras

dinamitadas contra o peito


mas não há por que dizer

restos de estrondo e pólvora

(as coisas são mais que seus nomes)


a mim fere mais

esse burburinho de pássaro

movendo suas asas finíssimas

intocado pelo tempo


Daniela Delias

sábado, 13 de fevereiro de 2021


 

UMA SÓ VOZ PARA O SER

(...) Com efeito, o essencial na univocidade não é que o Ser se diga num único sentido. É que ele se diga num único sentido de todas as suas diferenças individuantes ou modalidades intrínsecas. O Ser é o mesmo para todas estas modalidades, mas estas modalidades não são as mesmas. Ele é "igual" para todas, mas elas mesmas não são iguais. Ele se diz num só sentido de todas, mas elas mesmas não têm o mesmo sentido. É da essência do ser unívoco reportar-se a diferenças individuantes, mas estas diferenças não têm a mesma essência e não variam a essência do ser  como o branco se reporta a intensidades diversas, mas permanece essencialmente o mesmo branco. Não há duas "vias", como se acreditou no poema de Parmênides, mas uma só "voz" do Ser, que se reporta a todos os seus modos, os mais diversos, os mais variados, os mais diferenciados. O Ser se diz num único sentido de tudo aquilo de que ele se diz, mas aquilo de que ele se diz difere: ele se diz da própria diferença.

(...)

G. Deleuze in Diferença e Repetição 

SOBRE A DIFERENÇA

Pergunta-se o que é a diferença.  A diferença não é o indivíduo, não é a pessoa, não é algo fixo e estável onde se possa ancorar o corpo e a alma exaustos. Nem tampouco ver, assuntar, medir, pesar, adjetivar, qualificar. Ela não é do campo do substantivo nem do adjetivo, nada tem a ver com alguma substância dura, pétrea, imóvel, formatada em ideais de valor de troca. Nada a ver com a troca, pilar e essência do capital em seu cortejo mortuário. Ela não é o ser-diferente, até porque não há o ser. Não é o estranho-em-nós. Já somos de antemão  e suficientemente estranhos, estranhos a nós e ao mundo. Não há cálculos para identificá-la. Quando há, dão sempre errado, as contas não fecham, tudo se frustra e se decompõe. Ao inverso e bem mais além aqui mesmo, há somente corpos, corpos de corpos, corpos no interior de corpos, devires, processos, passagens, relâmpagos, vertigens, intensidades, frêmitos, respirações, ardores, ardências, nomadismos, viagens anômalas no mesmo lugar. Da diferença não se alimenta o narcisismo porque não existe o narcisismo num universo terráqueo, o dela, este sim, verso encantado, encantador e cantador em estradas desertas. A diferença é o bicho. Não tem forma, não é identificável pela percepção de representações exatas ou imagens-clichês. A diferença é o bicho na espreita. Percorre o mundo em linhas finas de sensibilidade. Com delicadeza foge de todos os dualismos, de todos os títulos, de todas as hierarquias, de todos os senhores, de todas as pátrias, de todas as pretensões e boas intenções da racionalidade, da consciência e do pensamento da autoridade, mesmo a mais admirável e mansa. Brinca com o poder, com a morte e com o amor. Faz disso a própria natureza do seu percurso invisível e silencioso pelos caminhos desconhecidos do Encontro. Composta de multiplicidades ingênuas e encravada na irreversibilidade do tempo, se tece e se faz inglória e pura. Mas quem a suporta?


A.M

Rita Benneditto - É D'Oxum (Pontos de Oxum)

NÃO EXISTE GOVERNO DE ESQUERDA (*)

Garantir o emprego e os direitos trabalhistas poderia ser uma outra diferença visível, mas o desemprego voltou a crescer e os direitos do trabalhador começaram a ser cortados já no governo de Dilma Rousseff, a última experiência que a população teve de um governo de esquerda. A reforma agrária poderia ser outra diferença, mas ela não avançou de forma significativa no governo de esquerda. O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que hoje está sendo criminalizado pelo governo de extrema direita, se domesticou quando o PT estava no poder. O mesmo aconteceu com grande parte dos movimentos sociais, que viraram governo em vez de continuar sendo movimentos sociais, o que teria sido importante para garantir a vocação de esquerda do partido no poder. Esta, aliás, é uma história que precisa ser melhor contada.Também nos governos do PT foram fortalecidos os laços com a bancada ruralista, que foi ganhando cada vez mais influência no cotidiano do poder, e se iniciou um claro projeto de desmantelamento da Funai (Fundação Nacional do Índio). Não é permitido esquecer nenhuma palavra de Gleisi Hoffmann atacando a Funai, quando era ministra da Casa Civil de Dilma Rousseff, assim como não é permitido esquecer nenhuma palavra da ruralista Kátia Abreu, ministra da Agricultura de Dilma, sobre as terras indígenas.

(...)


Eliane Brum, El País, 19/12/2018, 17:21 hs


(*) Gilles Deleuze in "Abecedário"

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Céu azul. Cores vivas. Você rindo

de alguma coisa ou alguém que está à esquerda

do fotógrafo. É talvez domingo.

É claro que essa sensação de perda



não está na foto, não – não está na imagem

extremamente, absurdamente nítida.

E se fosse menor a claridade,

ou se estivesse sem foco, ou tremida,



ou se fosse em sépia, ou preto e branco,

talvez a foto não doesse tanto?

Você, às gargalhadas. O motivo



você não lembra. A foto é muito boa.

Naquele tempo você ria à toa,

você lembra. Você ainda era vivo.



Paulo Henriques Britto

O RISCO DA INSÂNIA

Tomemos a psiquiatria biológica: uma compreensão da mente a partir do funcionamento cerebral não é um erro. É só uma visão incompleta e reducionista da realidade psíquica. E mais: pelo lugar de poder que a psiquiatria ocupa, tal manobra se transforma em danos irreversíveis sobre o paciente. Estamos na área obscura dos biopoderes que formigam por todos os cantos. Desse modo, fabrica-se em escala industrial um organismo físico-químico que consome verdades prontas. "Tome esse comprimido que é para o seu bem". A invisível engrenagem semiótica,  para funcionar e funcionar bem (asséptica e sem travamentos), conta com a adesão (inconsciente) de segmentos sociais "bem intencionados" em suas respectivas subjetivações. Um padre, um juiz, um delegado, um burocrata, um pastor, um pai de família, um empresário, um diretor de RH, um médico, um professor, uma mãe, entre outros, são personagens sociais que sustentam o desejo de ordem e harmonia. Alguém que ouse quebrar o circuito afetivo da normalidade naturalizada arrisca-se a mergulhar nas trevas da insânia.


A.M.

 .

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Brasil salvaria cerca de 90.000 vidas em 2021 se vacinasse toda a população em fevereiro, aponta estudo

Pesquisa coordenada por professor da USP e da FGV mostra, a partir de um modelo matemático, o impacto da imunização no número de mortes pela covid-19. Se toda a população fosse vacinada em fevereiro, um cenário impossível, ainda assim o país teria 41.000 novas mortes até o fim do ano.

(...)


Felipe Betim, El País, São Paulo,10/02/2021,15:02 hs

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

PSIQUIATRIA: SAIR DE SI MESMA

Para ser possível pensar ( e não refletir sobre...) a Saúde Mental, é necessário fugir da psiquiatria como "concepção de mundo". Tal manobra conceitual só se torna possível abrindo-a aos fluxos de saber que estão fora, que são o fora, e com ela compõem agenciamentos produtivos de desejo. Desejo é produção. Tal é o caso da arte. Não como arte mercantil, monumental ou contemplativa, mas como expressão subjetiva de modos de viver. Mas não só a arte. Outros saberes, mil saberes circulam livres "à espera"de encontros com a clínica que travou a psiquiatria num nó neurobiológico e capitalistico. Seus compromissos políticos (às vezes implícitos e inconfessáveis) com agências de poder (Estado, Escola, Direito, Família, Polícia, Mídia, Mercado, etc), fazem dos possíveis encontros desencontros, ou simplesmente maus encontros. Sob tais condições, fazer uma psiquiatria da Diferença e não da Semelhança, e não da Academia, e não dos Remédios químicos, e não do Eu, e não da Verdade científica, implica em práticas isoladas e heteróclitas. Talvez sob camuflagem.


A.M.

El arte como acto de resistencia - Gilles Deleuze

domingo, 7 de fevereiro de 2021

Uma prece pelos rebeldes de coração enjaulados.


Tennessee Williams

pôr de lua


estou naquela fase

cheia de resumo


foge-me o verso

a rima escapole-me


peço a são jorge

lave-me leve-me


love me



Líria Porto

Miles Davis - So What

COVID ARRASA PORTUGAL

Portugal conheceu o céu e o inferno nesta pandemia de coronavírus. O chamado “milagre português” manteve o vírus sob controle durante a primeira onda, mas, quase um ano depois, este país com mais de 10 milhões de habitantes é o líder mundial em contágios e em média de mortes por dia. Teve que pedir ajuda internacional. “A palavra ‘milagre’ foi a pior que poderíamos ter usado, porque aquilo se conseguiu com trabalho”, lamenta Aurora Viães, vereadora na localidade de Vila Nova de Cerveira (norte), onde um asilo geriátrico passou de não ter nenhum caso de covid-19 a registrar o adoecimento de todos os pacientes e funcionários.Os dados são pavorosos. Metade das mortes por covid-19 em Portugal ocorreram em janeiro, e a incidência por 100.000 habitantes em 14 dias chega a cifra nunca vistas: 1.438, seguido por Israel, com 1.060, e República Tcheca, com 902, segundo os dados reunidos pela Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos. O recorde é em Penedono, no norte do país, com mais de 7.400 casos por 100.000 habitantes. O número de mortes por covid-19 em proporção à população também deixa o país na liderança mundial na última semana, seguido por Líbano e Reino Unido, segundo a mesma universidade.

(...)


Sonia Vizoso, El País, Viana do Castelo, (Portugal), 06/02/2021, 17:59 hs

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

ANNA RAZUMOVSKAYA


 

O livro sobre nada

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.

Tudo que não invento é falso.

Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.

Tem mais presença em mim o que me falta.

Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.

Sou muito preparado de conflitos.

Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.

O meu amanhecer vai ser de noite.

Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.

O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.

Meu avesso é mais visível do que um poste.

Sábio é o que adivinha.

Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.

A inércia é meu ato principal.

Não saio de dentro de mim nem pra pescar.

Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.

Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.

Peixe não tem honras nem horizontes.

Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.

Eu queria ser lido pelas pedras.

As palavras me escondem sem cuidado.

Aonde eu não estou as palavras me acham.

Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.

Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja.

A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.

Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.

Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim.

Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.

Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.

O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.

Por pudor sou impuro.

O branco me corrompe.

Não gosto de palavra acostumada.

A minha diferença é sempre menos.

Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.

Não preciso do fim para chegar.

Do lugar onde estou já fui embora.


Manoel de Barros

O CORPO INVISÍVEL

A figura de Deus tomada como uma pessoa, ou mais precisamente, como uma Forma, nos remete a uma discussão infértil e rebaixada a um pensamento da representação, ou seja, do previamente designado, manifestado, significado em algo, no caso, um Ser Supremo. No entanto, o exercício do pensar sem limites prévios, o pensar-aventura, " seguindo sempre a linha de fuga do vôo da bruxa" implica em assumir o processo de pensar vindo de fora do sujeito. Este não pensa. Algo (invisível) é que o força a pensar: pode ser qualquer coisa, ou seja, um signo. Pensar, portanto, é uma atividade mental que ultrapassa as coordenadas de um eu ou de uma consciência, em prol da exposição dos mesmos aos signos que compõem a realidade. Esta é feita de signos e há sempre exposição a eles. Mesmo na solidão mais extrema, o pensamento é extraído das imagens-signos que rodopiam em torno da experiência de si consigo mesmo, Neste sentido, a concepção de Deus ou de um Deus, para ser inteligente (leia-se: criativa) compõe-se de uma aura invisível dotada de uma velocidade infinita ao ponto de que para pensar é preciso enlouquecer (não como psicose ou outro transtorno, mas como singularização) sob os efeitos de um espírito que nos constitui como corpo. Esse corpo não é o corpo "encarnado" de que falam os espíritas, mas o espírito como o corpo (não o organismo) em si mesmo, o corpo espiritual ou o espirito corporal, aquilo que move os processos enigmáticos e expansivos da vida. Resumindo,o conceito de Deus abrange um complexo de forças que se multiplica como espírito que se multiplica como corpo que se expressa como o sem-forma. O corpo é Deus.


A.M.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Diferença e Repetição

A SOLIDÃO DO ESCREVER

Quando escrever é descobrir o interminável, o escritor que entra nessa região não se supera na direção do universal. Não caminha para um mundo mais seguro, mais belo, mais justificado, onde tudo se ordenaria segundo a claridade de um dia justo. Não descobre a bela linguagem que fala honrosamente para todos. O que fala nele é uma decorrência do fato de que de uma maneira ou de outra, já não é ele mesmo, já não é ninguém. O "Ele" que toma o lugar do "Eu", eis a solidão que sobrevêm ao escritor por intermédio da obra.

(...)

M. Blanchot - in  O espaço literário


onde anda a política

que muda?

onde  anda a muda

que floresce?



A.M.

Barry White Love Unlimited Orchestra Love's Theme 1974 Remasterizado

O ENCONTRO 


Quando se diz "relações interpessoais", está embutido o conceito de "pessoa humana" de origem intrinsecamente cristã. No entanto, ao se pensar o encontro entre duas pessoas, é possível agenciar o Encontro entre multiplicidades, aquele que remete ao movimento dos corpos (visíveis e invisíveis) enfiados no livre fluxo dos acontecimentos. Trata-se de uma torção do discurso, um desvio da fala banal em prol dos afetos e da potência de ser afetado. Silêncio! A chamada pessoa já não se sustenta, já não recolhe energia de uma suposta unidade de ação (o eu, a consciência...), exceto se estiver sob a égide dos códigos estabelecidos em dispositivos de controles tecno-burocráticos ou de despotismos morais. De todo modo, o Encontro real é composto por linhas de singularização que se ligam umas às outras, constroem territórios afetivos e ficam à espreita... Então, a coisa é assim: cada pessoa não é una, não é uniforme, mas múltipla, multiplicada e multiplicante por "n" mil. Seja o objeto de uma paixão. Não é o objeto o que importa ou o que faz funcionar o mundo e o universo, não é o que encanta e  faz renascer a realidade a cada segundo, mas os signos que são enviados por ele (sem cessar) para o amante. Tampouco este é "uma pessoa", mas uma multiplicidade de linhas afetivas movidas à alegria em viagens de perdição. É o segredo revelado no cerne do Encontro real entre o Amante e o Objeto da sua paixão. Ou melhor seria dizer: o encontro com a paixão por seu objeto. Tudo passa, pois, pelos signos e pela força de sua expressão livre nos cantos e encantos de uma natureza impassível e esplendorosa. É a arte do encontro, um alumbramento.


A.M.

O QUE É DEVIR-MULHER

Quando se interroga Virgínia Woolf sobre uma escrita propriamente feminina, ela se espanta com a idéia de escrever "enquanto mulher". É preciso antes que a escrita produza um devir-mulher, como átomos de feminilidade capazes de percorrer e de impregnar todo um campo social, e de contaminar os homens, de tomá-los num devir. Partículas muito suaves, mas também duras e obstinadas, irredutíveis, indomáveis. A ascensão das mulheres na escrita romanesca inglesa não poupará homem algum: aqueles que passam por mais viris, os mais falocratas, Lawrence, Miller, não pararão de captar e de emitir por sua vez essas partículas que entram na vizinhança ou na zona de indiscernibilidade das mulheres. Eles tornam-se-mulher escrevendo. É que a questão não é, ou não é apenas, a do organismo, da história e do sujeito de enunciação que opõem o masculino e o feminino nas grandes máquinas duais. A questão é primeiro a do corpo — o corpo que nos roubam para fabricar organismos oponíveis. Ora, é à menina, primeiro, que se rouba esse corpo: pare de se comportar assim, você não é mais uma menininha, você não é um moleque, etc. É à menina, primeiro, que se rouba seu devir para impor-lhe uma história, ou uma pré-história. A vez do menino vem em seguida, mas é lhe mostrando o exemplo da menina, indicando-lhe a menina como objeto de seu desejo, que fabricamos para ele, por sua vez, um organismo oposto, uma história dominante. A menina é a primeira vítima, mas ela deve também servir de exemplo e de cilada. É por isso que, inversamente, a reconstrução do corpo como Corpo sem órgãos, o anorganismo do corpo, é inseparável de um devir-mulher ou da produção de uma mulher molecular. Sem dúvida, a moça torna-se mulher, no sentido orgânico ou molar. Mas, inversamente, o devir-mulher ou a mulher molecular são a própria moça. A moça certamente não se define por sua virgindade, mas por uma relação de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, por uma combinação de átomos, uma emissão de partículas: hecceidade. Ela não pára de correr num corpo sem órgãos. Ela é linha abstrata ou linha de fuga. Por isso as moças não pertencem a uma idade, a um sexo, a uma ordem ou a um reino: elas antes deslizam entre as ordens, entre os atos, as idades, os sexos; elas produzem n sexos moleculares na linha de fuga, em relação às máquinas duais que elas atravessam de fora a fora. A única maneira de sair dos dualismos, estar-entre, passar entre, intermezzo, é o que Virgínia Woolf viveu com todas suas forças, em toda sua obra, não parando de devir. A moça é como o bloco de devir que permanece contemporâneo de cada termo oponível, homem, mulher, criança, adulto. Não é a moça que se torna mulher, é o devir-mulher que faz a moça universal; não é a criança que torna-se adulto, é o devir-criança que faz uma juventude universal. Trost, autor misterioso, fez um retrato de moça ao qual ele liga o destino da revolução: sua velocidade, seu corpo livremente maquínico, suas intensidades, sua linha abstrata ou de fuga, sua produção molecular, sua indiferença à memória, seu caráter não figurativo — "o não figurativo do desejo" .

(...)

G. Deleuze e F. Guattari in Mil platôs, vol 4

Helen Mirren - The Cook, The Thief, His Wife and Her Lover.

O problema era que você precisava ficar constantemente escolhendo entre uma opção horrível e outra pavorosa, e, independente da sua escolha, eles cortavam mais um pedaço da sua carne, até que não restasse mais nada para descarnar.

(...)


Charles Bukowski

FIT - Alexander Ekman (NDT 2 | Significant Moments)

Rápido e Rasteiro


Vai ter uma festa

que eu vou dançar

até o sapato pedir pra parar.


aí eu paro

tiro o sapato

e danço o resto da vida.



Chacal

A FUNÇÃO DO DIAGNÓSTICO

Já que a psicopatologia vem de fora, do mundo, na psiquiatria clínica trabalhamos com síndromes. Elas constituem um sistema aberto à serviço da Diferença. Não usamos o diagnóstico psiquiátrico no sentido de essência, rótulo, marca, estigma ou natureza do transtorno, da doença, do problema, da crise, etc. O real que nos chega numa consulta, por exemplo, está prenhe de significações que excedem os enunciados simples do tipo"você sofre de pânico; você é depressivo, você é psicótico, você é bipolar". Estas são "verdades baixas" (às vezes implícitas na fala técnica) que alimentam a servidão do paciente. Melhor seria dizer: seja impaciente! No entanto, como estes mesmos diagnósticos são oficiais, legais, estatais, juridicamente constituídos (inclusive pela maquinaria científica), faz-se necessário reduzi-los a peças semiológicas de um agenciamento coletivo: o Encontro. Se o cimento do Encontro são os afetos (desejos), os dados coletivos, contingenciais (onde? quando? como? quem? por que? para que?) mapeiam tais afetos (conhecidos ou a se conhecer) em prol de vivências ímpares, singularizações. Desse modo, diagnosticar não é conhecer, mas ligar entre si elementos subjetivos heterogêneos que inventam modos de subjetivação. Para tal acontecer, é essencial traçar linhas do rizoma, linhas de risco em busca do acaso, do desconhecido e do  indeterminado.


A.M.

Dorival Caymmi - O Vento - Heineken Concerts - 1996

COMO PENSAR

É muito difícil o exercício de pensar. Não basta ter um cérebro, não basta ter conhecimento. O cérebro mente, o conhecimento entorpece. Antes, pensar é empreender uma espécie de raspagem no solo idealista das categorias platônicas e cartesianas. Entre outras doutrinas,  e contra elas, pensar é partir... para além do cais... "seguir sempre a linha de fuga do vôo da bruxa." Esta frase do livro "O que é a filosofia?" (Deleuze e Guattari, 1992) coloca o pensamento no tempo infinitivo, aquilo que faz vivenciar na carne o vôo da bruxa. Ora, para onde, mesmo, estaria ela indo? Pensar é um ato corpóreo, visceral, material, inscrito como prática social de uma maquinação desejante. Pensar é desejar. Não sendo isso, estamos e estaremos afundados no universo da representação das coisas (humanas e inumanas). Aí o pensamento não entra, ou só entra se for convertido aos códigos estáveis da razão, da consciência e do eu. E seguindo as leis do Estado e/ou do Mercado.


A.M.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

A  DANÇA  DOS  CORPOS

A medicina trabalha com o corpo-organismo. Este é o seu objeto. Não apenas numa relação de exterioridade entre o médico e o seu paciente. Também numa implicação clínico-afetiva. Contudo, é preciso escapar do raciocínio tosco da visão humanitária e bem intencionada da medicina. Se ela é uma instituição como tantas outras, é preciso captar o real em si mesmo. Algo mais profundo e menos evidente acontece, dado que Michel Foucault aponta em suas pesquisas. Isso diz respeito às relações de poder. Elas preenchem a teia institucional de tão prestigiosa carreira. Tal ato profissional (técnico) intervêm no organismo humano, que por sua vez é de antemão produzido por formações do poder médico interessadas em identificá-lo individualmente. Eis "o doente paciente". Uma das consequências desse fato aparentemente banal é a surdez médica à fala do outro, já que o suposto saber ("ouça o médico porque ele estudou!") dispensa as linhas vivenciais singulares daquele que sofre e portanto encontra-se vulnerabilizado. Assim, o Organismo, concebido como uma organização/sistema dos órgãos, é o que interessa ao médico na ação clínica e/ou cirúrgica de curá-lo ou pelo menos de melhorar a sua qualidade de vida. No entanto, funcionando no lusco-fusco dos afetos oprimidos, e lado a lado com o Organismo hegemônico das praticas médicas, há o corpo invisível das intensidades afetivas, o corpo sem forma, o corpo das potências irradiantes, o corpo erógeno, o corpo composto por fibras de Luz (como diria Castañeda), o corpo vibrátil, expansivo, dançante, corpo funcionando sob o combustível desejo. Não se trata, claro, de um corpo latente ao modo da psicanálise mais antiga, a chamada "outra cena". Nada mais enganoso. O corpo está aí, está aqui, está entre nós rosnando sem cessar suas animalidades envolventes. Trata-se do corpo como expressão no mundo, numa palavra, a materialidade do espírito, o corpo-criança e sua alegria sustentada no sem-sentido do nada. A medicina não enxerga esse corpo porque os seus técnicos não foram treinados para tal, e porque suas bases epistemológicas desmoronariam se aceitassem e promovessem o que pode um corpo (como diria Espinosa).


A.M.

MADRIGAL


Desista: não vai dar certo.

O mundo é o mesmo de sempre,

desejo é uma coisa cega.

Desista, enquanto é tempo.


As mãos não sabem o que pegam,

os pés vão aonde não sabem.

As cartas estão marcadas:

vai dar desgraça na certa.


O mundo é sempre a esmo,

desejo é uma porta aberta.

Desista, que a vida é incerta.

Ou insista. Dá no mesmo.



Paulo Henriques Britto

"Rodrigo Maia será vítima da mesma turma que derrubou a Dilma", diz Tale...