O QUE É DEVIR-MULHER
Quando se interroga Virgínia Woolf sobre uma escrita propriamente feminina, ela se espanta com a idéia de escrever "enquanto mulher". É preciso antes que a escrita produza um devir-mulher, como átomos de feminilidade capazes de percorrer e de impregnar todo um campo social, e de contaminar os homens, de tomá-los num devir. Partículas muito suaves, mas também duras e obstinadas, irredutíveis, indomáveis. A ascensão das mulheres na escrita romanesca inglesa não poupará homem algum: aqueles que passam por mais viris, os mais falocratas, Lawrence, Miller, não pararão de captar e de emitir por sua vez essas partículas que entram na vizinhança ou na zona de indiscernibilidade das mulheres. Eles tornam-se-mulher escrevendo. É que a questão não é, ou não é apenas, a do organismo, da história e do sujeito de enunciação que opõem o masculino e o feminino nas grandes máquinas duais. A questão é primeiro a do corpo — o corpo que nos roubam para fabricar organismos oponíveis. Ora, é à menina, primeiro, que se rouba esse corpo: pare de se comportar assim, você não é mais uma menininha, você não é um moleque, etc. É à menina, primeiro, que se rouba seu devir para impor-lhe uma história, ou uma pré-história. A vez do menino vem em seguida, mas é lhe mostrando o exemplo da menina, indicando-lhe a menina como objeto de seu desejo, que fabricamos para ele, por sua vez, um organismo oposto, uma história dominante. A menina é a primeira vítima, mas ela deve também servir de exemplo e de cilada. É por isso que, inversamente, a reconstrução do corpo como Corpo sem órgãos, o anorganismo do corpo, é inseparável de um devir-mulher ou da produção de uma mulher molecular. Sem dúvida, a moça torna-se mulher, no sentido orgânico ou molar. Mas, inversamente, o devir-mulher ou a mulher molecular são a própria moça. A moça certamente não se define por sua virgindade, mas por uma relação de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, por uma combinação de átomos, uma emissão de partículas: hecceidade. Ela não pára de correr num corpo sem órgãos. Ela é linha abstrata ou linha de fuga. Por isso as moças não pertencem a uma idade, a um sexo, a uma ordem ou a um reino: elas antes deslizam entre as ordens, entre os atos, as idades, os sexos; elas produzem n sexos moleculares na linha de fuga, em relação às máquinas duais que elas atravessam de fora a fora. A única maneira de sair dos dualismos, estar-entre, passar entre, intermezzo, é o que Virgínia Woolf viveu com todas suas forças, em toda sua obra, não parando de devir. A moça é como o bloco de devir que permanece contemporâneo de cada termo oponível, homem, mulher, criança, adulto. Não é a moça que se torna mulher, é o devir-mulher que faz a moça universal; não é a criança que torna-se adulto, é o devir-criança que faz uma juventude universal. Trost, autor misterioso, fez um retrato de moça ao qual ele liga o destino da revolução: sua velocidade, seu corpo livremente maquínico, suas intensidades, sua linha abstrata ou de fuga, sua produção molecular, sua indiferença à memória, seu caráter não figurativo — "o não figurativo do desejo" .
(...)
G. Deleuze e F. Guattari in Mil platôs, vol 4
Nenhum comentário:
Postar um comentário